Os 50 Melhores Álbuns de 2023
Depois da saturação de lançamentos extasiantes e altamente badalados que marcou a grande maioria de 2022, os últimos 12 meses de lançamentos conseguiram ser, em primeira análise, agradavelmente surpreendentes. De Caroline Polachek a Amaarae, Jessie Ware a Olivia Rodrigo, foram vários os que, dentro e fora da esfera comercial, conseguiram moldar o que consideramos ser música pop. Com uma vertente mais mainstream do hip-hop claramente em queda de qualidade, coube a nomes como billy woods, MIKE ou JPEGMAFIA cimentar a sua posição entre os demais. Abraçou-se o frenetismo ao lado dos 100 gecs, redescobriu-se o poder revigorador das pistas de dança com Kelela e Sofia Kourtesis. Foi o ano em que Sufjan Stevens, Sampha, ANOHNI e boygenius tiveram regressos estrondosos, em contraste com as estreias promissoras de Kara Jackson, Nourished by Time e Model/Actriz.
A lista que se segue reflete o poder da diversidade na indústria artística, onde a melhor música consegue, por vezes, surgir de onde menos se espera e influenciar os sons do presente e, talvez mesmo, do futuro. Para o crítico musical e editor-chefe da CONTRABANDA, Rui Cunha, estes são os 50 melhores álbuns de 2023 – alguns deles já foram objeto de foco na rubrica ‘Destaques do Mês’.
50. Helena Deland – Goodnight Summerland
Género: Indie Folk
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: Chivi Chivi
Fantasmagórico e onírico, o segundo trabalho da cantautora Helena Deland despe a sua sonoridade de instrumentação adicional – ainda mais do que Someone New, editado em 2020. Este minimalismo, longe de ser involuntário, lança as bases para o espaço hipnótico e reconfortante de Goodnight Summerland, com a voz quase meditativa da canadiana e as suas reflexões cuidadosamente silenciosas sobre finalidade e aceitação a envolver o luto que aqui expõe num universo sónico pautado pela serenidade.
49. Slowdive – everything is alive
Género: Dream Pop; Shoegaze
Data de Lançamento: 01/09/2023
Editora: Dead Oceans
Após terem feito um grandioso regresso aos discos em 2017, o primeiro lançamento dos Slowdive em praticamente seis anos volta a entrar na essência do que faz da banda uma das referências duradouras do shoegaze. Ondulando entre a vivacidade floreada de kisses, os crescendos sonhadores de shanty e a ambiência pesarosa de skin in the game ou prayer remembered, everything is alive emana reflexão através de uma paisagem sonora mais eletrónica (na mesma linha do longínquo Pygmalion, por exemplo), enquanto o revivalismo da banda continua a introduzir melhorias no seu som clássico, à medida que envelhecem com enorme graciosidade.
48. Lil Yachty – Let’s Start Here.
Género: Psychedelic Rock
Data de Lançamento: 27/01/2023
Editora: Quality Control Music; Motown
Ainda que a ousada incursão de Lil Yachty pelo universo do rock psicadélico seja mais pastiche do que propriamente inovadora, o que é conseguido ao longo do seu quinto álbum de estúdio é, na pior das hipóteses, louvável e, na sua maioria, incrivelmente magnético. Desde o título até à música em si, Let’s Start Here. prospera com a reinvenção artística em mente, repensando os sons do passado sob a ótica de uma hip-hop progressista e sem fronteiras. É uma raridade ver alguém com o estatuto de Yachty comprometer-se de forma tão plena e convincente com a estética que decide agora adotar, assinalando assim o começo de um novo capítulo para um artista muitas vezes enredado na sua unidimensionalidade.
47. Hozier – Unreal Unearth
Género: Singer-Songwriter; Pop Soul
Data de Lançamento: 18/08/2023
Editora: Island Records
Por mais mítica que pareça a figura de Hozier aos ouvidos de quem o escuta, o terceiro longa-duração do cantautor irlandês parece igualmente enraizado em tradições terrenas, ligando vagamente a matriz do Inferno de Dante a uma homenagem imponente à sua terra natal e língua materna. Unreal Unearth, poético e epopeico, remete para locais e sentimentos imensuráveis, incontíveis pelo próprio paraíso, mas, ainda assim, ligados aos pecados e complexidades do mais comum dos mortais. E no que toca a mediar o idioma dos deuses e dos humanos, poucos a traduzem de forma tão magnificamente catártica como Hozier.
46. Carly Rae Jepsen – The Loveliest Time
Género: Dance Pop
Data de Lançamento: 28/07/2023
Editora: Interscope; School Boy
Quebrando o seu hábito de seguir os seus discos principais com uma coleção de demos e b-sides, The Loveliest Time apresenta-se imediatamente como um contraponto ainda mais consistente do que o seu disco-irmão The Loneliest Time, mais alegre, atrevido e efervescente na sua natureza, mas igualmente reflexivo quando a canadiana assim o requer. O novíssimo trabalho de Carly Rae Jepsen transforma as paisagens sonoras do disco e do dance pop em canções que palpitam com a adrenalina do prazer e da intimidade, mantendo um cuidado fenomenal com a componente melódica que, mais uma vez, a distingue como uma voz maior na música pop da última década, continuando a deformar a sua identidade artística com resultados igualmente encantadores.
45. feeble little horse – Girl with Fish
Género: Noise Pop
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: Saddle Creek
Implacável no seu dinamismo e frenético na sua execução, o segundo álbum dos feeble little horse vê o quarteto de Pittsburgh a dominar a sua abordagem errática ao indie pop (quase como se os Florist ou Frankie Cosmos perseguissem uma estética mais ruidosa), permeando a maior parte dos seus 26 minutos de duração com vinhetas instantaneamente memoráveis, que imploram para serem repetidas até à exaustão. Quer sejam as guitarras imensamente distorcidas ou as mutações vocais de Lydia Slocum (ora calmamente melódica, ora destemidamente implodindo contra a parede abrasiva de instrumentação), Girl with Fish tanto acolhe docilmente como cerca por completo a nossa atenção, sem remorsos de maior, formando uma coleção de temas orgulhosamente desorientadora e imensamente prazerosa.
44. Lankum – False Lankum
Género: Avant-Folk
Data de Lançamento: 24/03/2023
Editora: Rough Trade
Tendo como pano de fundo os elementos basilares do folk irlandês, False Lankum encontra habilmente uma interseção entre experimentação e tradição, ao deformar os elementos que definem o género em paisagens sonoras fúnebres que ilustram de forma inquietante a história tumultuosa do país e do seu povo. Tudo o que o quarteto retrata não é apenas assombroso e profundamente genuíno, mas consegue equilibrar o peso incontornável da tragédia histórica, lembrando ao ouvinte que uma relação complicada com o patriotismo não fica, contudo, desprovida da perspetiva de um futuro melhor.
43. MSPAINT – Post-American
Género: Post-Hardcore; Synth Punk
Data de Lançamento: 10/03/2023
Editora: Convulse
Post-American é, inegavelmente, um passo refrescante no domínio da música hardcore. O uso intensivo de sintetizadores por parte dos MSPAINT, juntamente com os vocais enfáticos do vocalista DeeDee, podem revelar-se um obstáculo para os mais puristas, mas Post-American certamente encontrará um porto de abrigo em quem esteja disposto a abraçar a estética radicalmente fluida do grupo do Mississipi, tão colorida como ríspida, mas inegavelmente revigorante de absorver. Uma visão compassivamente progressiva e humanista de um planeta à beira do colapso e, se nada mais, o primeiro capítulo de uma banda projetada para servir de banda sonora de um futuro que se apresenta corroído.
42. Geese – 3D Country
Género: Indie Rock; Alt-Country
Data de Lançamento: 23/06/2023
Editora: Partisan
Distanciando-se da crueza dos hinos post-punk de Projetor, 3D Country reapresenta os Geese em modo reinvenção, com 11 faixas onde o caos passa a ser palavra de ordem e nenhuma influência musical está fora dos limites ou aplicada à exaustão. Agregando muitos dos fundamentos do rock clássico e infectando-os com um toque de country, o agora quarteto de Brooklyn oferece meticulosidade através do excesso e teatralidade pela via das suas dinâmicas explosivas, tornando a experiência de ouvir este seu segundo álbum tão desorientadora como jovial.
41. Lonnie Holley – Oh Me Oh My
Género: Soul; Spoken Word
Data de Lançamento: 10/03/2023
Editora: Jagjaguwar
Aos 73 anos de idade, o músico e artista visual Lonnie Holley recruta um elenco invejável de colaboradores – do produtor Jacknife Lee às participações vocais de Justin Vernon, Sharon Van Etten, Moor Mother ou Michael Stipe – para construir uma ode cristalizadora e profundamente poética à compreensão humana, à espiritualidade e ao pilares básicos da vida, examinando as experiências passadas de Holley para dar forma a uma coleção de composições com mensagens profundamente vitais e comoventes, dignas de serem refletidas, tanto em tempos pacíficos como conturbados.
40. Maria BC – Spike Field
Género: Psychedelic Folk
Data de Lançamento: 20/10/2023
Editora: Sacred Bones
O sucessor de Hyaline, envolto em inquietude e surrealismo, tenta reconciliar-se com os conflitos interiores, a evolução do eu e os terrores de uma vida passada, muitas vezes pontuados por melodias de piano e guitarra angustiantes e pelas passagens vocais trémulas de Maria BC, esticadas até ao limite da compreensão. Há um certo vigor que Spike Field retém com cada rutura subtil da sua instrumentação e, com ele, advém tanto uma beleza inexplicável como uma aceitação da verdade agonizante do envelhecimento.
39. Victoria Monét – JAGUAR II
Género: R&B; Neo-Soul
Data de Lançamento: 25/08/2023
Editora: RCA
Compositora elementar na base de múltiplos êxitos de Ariana Grande ou Chloe x Halle, Victoria Monét ganha finalmente o seu momento na ribalta com o segundo capítulo de JAGUAR, editado em 2020. Infundindo os sons opulentos e vintage do R&B da era Motown, recorrendo, por igual, à voracidade do southern rap, Monét afirma-se como uma intérprete de vanguarda com uma proeza sem remorsos. Ao longo das 11 faixas do seu disco de estreia, inegavelmente imaculadas e inescapáveis, vemos um talento antigo a florescer em tempo real, gravando, ao fim de uma década e meia de atividade, o seu nome entre as estrelas para quem anteriormente contribuiu.
38. Glockenwise – Gótico Português
Género: Alternative Rock
Data de Lançamento: 17/02/2023
Editora: Vida Vã
37. Paramore – This Is Why
Género: Dance Punk
Data de Lançamento: 10/02/2023
Editora: Atlantic
O sexto disco dos Paramore é um caso sério de evolução pessoal e artística em plena ação, enquanto mantêm o vínculo com a aura pulverizadora que os tornou numa das mais proeminentes bandas rock dos anos 2000. Abandonando as influências new-wave que permearam After Laughter em favor de uma estética mais punk, This Is Why apresenta despretensiosamente as duas faces da idade adulta: a confiança de uma banda que se aproxima das duas décadas no ativo (e a soarem tão galvanizadores como no início da carreira) e as ansiedades quotidianas que tentam atenuar.
36. Fever Ray – Radical Romantics
Género: Art Pop
Data de Lançamento: 10/03/2023
Editora: Rabid Records; Mute
A música de Karin Dreijir, desde sempre heterogénea e abrasiva, traz à vida uma “realidade tão alienígena como humana, fazendo-nos questionar onde acaba uma dimensão e começa a seguinte” e contorcendo progressivamente os pilares políticos de sexualidade e género, para neles encontrar um sentido e linguagem própria. O regresso de Fever Ray aos discos, seis anos após o lançamento de Plunge, disseca a complexidade e hibridez da intimidade em tempos modernos, sem filtros nem correntes, transpondo, através da sua produção eletrizante, fantasiosa e camaleónica, “a tentadora chama do amor, em todas as suas formas e feitios”.
35. Jeff Rosenstock – HELLMODE
Género: Pop Punk; Power Pop
Data de Lançamento: 31/08/2023
Editora: Polyvinyl
O mais recente lançamento de Jeff Rosenstock volta-se para a anarquia neurótica da atualidade, de forma a dar azo a um fluxo de consciência isenta de filtros, mas não de ansiedades. Tal como nos seus melhores feitos, HELLMODE transforma a angústia do dia-a-dia em dissecações cínicas e catárticas movidas pelo poder da relatividade. Quase que de imediato, os problemas de Rosenstock fundem-se com os do ouvinte e, com cada refrão bombástico ou revelação sombria, a esperança de uma salvação pessoal e coletiva parece consideravelmente menos diminuta.
34. yeule – softscars
Género: Glitch Pop
Data de Lançamento: 22/09/2023
Editora: Ninja Tune; Bayonet Records
No sucessor de Glitch Princess, yeule – ainda fascinada pela natureza escapista do mundo digital – vira o foco para os conflitos e motivos interiores da consciência humana. Ao substituir alguns dos processamentos eletrónicos já expectáveis por referências basilares do rock alternativo da década de 90, softscars abre espaço para a emoção da voz analógica e, sobretudo, para as próprias sensibilidades de yeule, abordando as implicações perturbadoras da memória e do trauma e como lidar com as cicatrizes que nos marcam a carne.
33. King Krule – Space Heavy
Género: Art Rock; Jazz Rock
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: XL; Matador
No quarto e mais recente trabalho de Archy Marshall sob o rótulo artístico de King Krule, o britânico vê-se novamente assombrado pelo existencialismo, inteiramente manifestado na aura nebulosa das suas composições (em muito semelhante às encontradas em The OOZ e Man Alive!). Space Heavy nivela com frequência a densidade e a crueza do post-punk de faixas como Hamburgerphobia ou Pink Shell com a penumbra amorfa do jazz rock de If Only It Was Warmth ou Seagirl, mas Marshall opera quase sempre na base da angústia e da exaustão, ainda que ocasionalmente afugentada pela sua parentalidade e pela afeto que daí retira.
32. Model/Actriz – Dogsbody
Género: Noise Rock
Data de Lançamento: 24/02/2023
Editora: True Panther
O ferocíssimo álbum de estreia dos nova-iorquinos Model/Atriz cruza todas as extremidades da emoção humana e manifesta-as através da fisicalidade, do confronto e de uma boa dose de teatralidade. Tanto nas performances catárticas do vocalista Cole Haden como na instrumentação gritante que lhe dá suporte, Dogsbody vai rapidamente do erótico ao destrutivo, dando sentido ao desejo carnal – com um traço assumidamente queer, diga-se – e às memórias perturbadoras que nos suscitam uma vontade inerente de libertação da forma mais reveladora, ousada e eletrizante possível.
31. Tim Hecker – No Highs
Género: Ambient; Drone
Data de Lançamento: 07/04/2023
Editora: Kranky
Como qualquer um dos feitos maiores de Tim Hecker, No Highs exige uma aceitação do seu cariz desconcertante. A magia hipnótica de Hecker, porém, “nunca se torna num desgastante exercício de concentração, num teste à paciência humana que não nos consegue derivar do mundo em redor”. Não é só um regresso às sonoridades que coroaram o canadiano como “um dos verdadeiros maestros da música eletrónica em pleno século XXI”, mas um reflexo intencional da contemporaneidade: sem altos nem baixos, onde cada peça do puzzle complementa e desconcerta um universo antagónico por natureza.
30. Armand Hammer – We Buy Diabetic Test Strips
Género: Abstract Hip-Hop
Data de Lançamento: 29/09/2023
Editora: Backwoodz Studioz; Fat Possum
Um de dois lançamentos triunfantes do rapper Billy Woods nos últimos 12 meses, We Buy Diabetic Test Strips serve como pretexto para, mais uma vez, unir forças com ELUCID, naquele que é o sexto álbum da dupla sob o nome Armand Hammer. Mais do que uma maravilhosa exibição de tecnicidade e crítica social cortante, abordada com ferocidade e um sentido de humor inteligente, os nova-iorquinos olham para a distopia da civilização moderna, circundados por um manta de sons caótica e impressionista e com a participação entusiástica de um grupo alargado de contemporâneos. Entre a produção de JPEGMAFIA ou El-P dos Run The Jewels, os versos de convidados como Junglepussy e Pink Siifu ou as melodias de flauta do virtuoso Shabaka Hutchings, a dupla mantém-se calma, confiante e arrojada numa celebração do melhor que a esfera mais underground do hip-hop tem para oferecer.
29. Nourished By Time – Erotic Probiotic 2
Género: Bedroom Pop; Alternative R&B
Data de Lançamento: 21/04/2023
Editora: Scenic Route
O álbum de estreia de Marcus Brown consegue a rara proeza de revitalizar os sons do passado e, ao mesmo tempo, fazer avançar os padrões a que se compromete. Concebido inteiramente na cave dos seus pais em Baltimore, Erotic Probiotic 2 é minimalista e deambulante por natureza, mas adequadamente revigorante, canalizando o synth pop do final dos anos 80 e início dos anos 90 e algumas nuances de R&B contemporâneo e bedroom pop – algures entre Arthur Russell, The Blue Nile e Blood Orange – e reposicionando suavemente cada uma das suas influências para criar algo simultaneamente nostálgico e único.
28. Oneohtrix Point Never – Again
Género: Progressive Electronic
Data de Lançamento: 29/09/2023
Editora: Warp
Numa época em que o cunho de Daniel Lopatin na música eletrónica contemporânea (e não só) já é praticamente indiscutível, o cérebro por detrás de Oneohtrix Point Never “olha destemidamente para as origens do homem, da máquina e do homem por detrás da máquina, procurando dar resposta à incerteza do que se segue”. Lopatin, neste seu estado saudosista, prioriza a emoção nos seus mundos sintetizados. São sucessivas as homenagens aos traços estéticos que marcaram várias andanças artísticas e tantas outras as reflexões sobre o potencial da inteligência artificial (e as suas eventuais falhas), sem esquecer os vários arranjos orgânicos que corrompem os restantes fragmentos do disco. Não é de agora que a humanidade e a tecnologia são indissociáveis e, ainda assim, incapazes de se replicar, mas aos comandos de Lopatin, vemos a complexidade desta sinergia personificada por um dos seus intermediários mais assinaláveis.
27. Tinashe – BB/ANG3L
Género: Alternative R&B
Data de Lançamento: 08/09/2023
Editora: Nice Life
Os últimos anos têm sido incrivelmente revigorantes para Tinashe. A mesma artista que viu o seu início de carreira limitado pelas restrições da indústria em que opera ressurge agora no pico da sua emancipação criativa, permutando as convenções tradicionais do R&B com uma minuciosidade cabal. Entre os breakbeats eletrizantes de Gravity e Tightrope ou a produção quase divinal de Talk To Me Nice, BB/ANG3L certamente abraça esta sua costela vanguardista, mas fá-lo com a eficiência de poucos discos dos últimos 12 meses. São 20 minutos de música contagiante e altiva, onde “a convicção com que conduz cada um dos seus motivos é facilmente equiparável ao próprio renascimento artístico”. “Se BB/ANG3L não se estende para além das medidas, é porque Tinashe faz bom uso da sua fugacidade”, mesmo que esta se possa tornar, por igual, no seu maior defeito.
26. Danny Brown – Quaranta
Género: Conscious Hip-Hop
Data de Lançamento: 17/11/2023
Editora: Warp
Se XXX, em 2011, marcou a viralidade de um Danny Brown já a atravessar a meia-idade, a sua prometida sequela serve de remate a toda uma trajetória pessoal e artística, recontando uma das evoluções mais graciosas do hip-hop como a carreira que tanto salvou a sua vida como a condenou. À medida que Quaranta progride por uma série de instrumentais erraticamente discordantes (tão multifacetados como a sua complexidade emocional), Brown, agora com 42 anos, olha destemidamente para trás: para a sua vida, para as suas decisões profissionais e lutas pessoais. Canalizando um estado de introspeção determinado e incessantemente convincente, o rapper de Detroit enfrenta sem medo o seu próprio trauma, ressurgindo, no final de Quaranta, em paz com o passado e determinado a tirar o melhor partido daquilo que o futuro lhe possa trazer.
25. Olivia Rodrigo – GUTS
Género: Pop Rock
Data de Lançamento: 08/09/2023
Editora: Geffen
Foi há quase três anos que uma Olivia Rodrigo ainda adolescente se transformou, da noite para o dia, num dos maiores e mais promissores nomes da pop mundial, forçada a lidar com os marcos infernais da juventude sob o escrutínio mediático e reajustar-se às expectativas subitamente impostas por qualquer subida ao estrelato. Perante a pressão e necessidade intimidantes de apelar a tudo e todos, Rodrigo, agora com 20 anos, faz de GUTS um regresso absolutamente estrondoso, envergando os efeitos sufocantes que resultam tanto da fama como da idade adulta e cuspindo-os de volta com a angústia visceral dos grandes ícones do pop punk e riot grrrl da década de 90. É um raro e refrescante caso de uma artista da sua dimensão que não só personifica como encoraja as complexidades e inseguranças, os riscos e más decisões de qualquer mulher da sua geração. Afinal, Rodrigo sabe da sua idade e age como tal e, com GUTS, vemo-la perder e retomar o comando da desordem que daí advém com uma autenticidade, auto-consciência e sentido de humor indiscutíveis.
24. L’Rain – I Killed Your Dog
Género: Psychedelic Soul
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: Mexican Summer
Dois anos após a edição de Fatigue, Taja Cheek volta a fazer da sua música um turbilhão de colagens sonoras, texturas ricas e, acima de tudo, ideias que respiram maximalismo. Empregando uma vasta linhagem de referências estilísticas, a música de L’Rain mantém (e bem) a aposta no seu fator-surpresa, cruzando tendências mais abstratas e psicadélicas com composições de R&B e art pop sumptuosas e vulneráveis, sem nunca se perder nas suas contradições ou alienar possíveis recetores. A graciosidade com que conduz a I Killed Your Dog, aliás, é de louvar, num álbum que, tal como já é habitual no percurso de Cheek, continua a revelar novos segredos com cada novo mergulho neste seu mundo surrealista, eternamente ousado e que dá prazer em desvendar.
23. Lana Del Rey – Did you know that there’s a tunnel under Ocean Blvd
Género: Singer-Songwriter; Art Pop
Data de Lançamento: 24/03/2023
Editora: Interscope; Polydor
Da extensão do título à duração do álbum, Lana Del Rey faz de Did you know that there’s a tunnel under Ocean Blvd um longo e contemplativo enquadramento do seu mundo interior, seguido pelo seu olhar profundamente poético e dissecado em reflexões igualmente profundas (e frequentemente deambulatórias) sobre si mesma: algumas apaziguadoras, outras inquietantes, e todas elas dignas de investimento. Capturando novamente as texturas ornamentadas e serenas que ilustraram os melhores momentos de Norman Fucking Rockwell!, Ocean Blvd é inegavelmente o projeto mais emocionalmente despido da sua carreira, mas também o mais volátil, recusando-se a ficar dentro de um só campo de exploração e entregando-se alegremente à multiplicidade instrumental, temática e até colaborativa. Uma abordagem ideal para os fluxos de consciência a quem Ocean Blvd orgulhosamente cede o palco principal, ponderando questões maiores que a vida ou a fé e tão cativantes quanto a persona que tanto tem fascinado a esfera mediática na última década.
22. Ana Frango Elétrico – Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua
Género: MPB; Sophisti-Pop; Disco
Data de Lançamento: 20/10/2023
Editora: Risco; Mr Bongo; Think! Records
21. Earl Sweatshirt & The Alchemist – Voir Dire
Género: Abstract Hip-Hop; Drumless
Data de Lançamento: 25/08/2023
Editora: ALC; Tan Cressida
Tendo em conta o longo historial de colaborações entre Earl Sweatshirt e The Alchemist e a possível existência de um projeto conjunto perdido nos confins do YouTube, uma reunião em pleno tem estado na ordem do dia há praticamente meia década. Dada a antecipação, Voir Dire navega quase sempre por terreno fértil, para se centrar única e exclusivamente nos traços característicos dos dois artistas, com os beats ríspidos e minimalistas do produtor a servirem como complemento ideal para os versos inebriantes e elaborados do rapper. Igualmente familiar e magistral, os melhores momentos de Voir Dire trazem consigo a química ímpar que a dupla possui, algo que nem uma edição inicial numa plataforma de NFT’s e as subsequentes diferenças com a versão disponível nos serviços de streaming conseguem ofuscar.
20. 100 gecs – 10,000 gecs
Género: Hyperpop; Pop Punk
Data de Lançamento: 17/03/2023
Editora: Dog Show; Atlantic
Com o avizinhar de uma sequela do disco de estreia dos 100 gecs, as ondas de choque que os colocaram na retaguarda do hyperpop pareciam escorregar por entre os dedos de Laura Les e Dylan Brady. Afirmar que este estaria condenado logo à partida, contudo, é ignorar toda a sua genialidade imprevisível. “10,000 gecs é desmedido, absurdo, cómico”, tem tanto de shitpost musical como de sincero. Face à evolução natural de uma estética que agora os ultrapassa, o grupo colide com as suas fundações, introduzindo “uma nova série de ingredientes, violentamente atirados contra a parede num animado (e definitivamente bem-sucedido) concurso para ver o que cola.” Também ajuda, claro está, que “nada precise de ser remotamente sério” para ganhar vida própria: “as canções em si, os estilos musicais que a dupla tão fielmente reutiliza, os seus concertos”, até mesmo a sua identidade. A confusão hiperativa e estranhamente ilustrativa da era moderna que 10,000 gecs concentra não engana: não só estão muito longe de ser a dupla mais ridícula no ativo como mostram ser, uma vez mais, absurdamente brilhantes.
19. McKinley Dixon – Beloved! Paradise! Jazz!?
Género: Jazz Rap
Data de Lançamento: 02/06/2023
Editora: City Slang
Adotando o título de uma trilogia de obras da escritora Toni Morrison, o monumental e moralmente empoderador Beloved! Paradise! Jazz!? vê McKinley Dixon explorar minuciosamente a dinâmica de se ser um objeto da nossa história e de, contra todas as adversidades, criar um caminho de autossuperação que escape aos ciclos venenosos que moldam os nossos ecossistemas pessoais e sociais. Oferecendo testemunhos vibrantes de resistência e otimismo, Dixon debate-se com temas centrais como a memória, a morte, o racismo e a comunidade, ligando-as entre si através de uma narrativa de proporções cinematográficas e fazendo da instrumentação orquestral de Beloved! Paradise! Jazz!? um belíssimo mote para uma celebração comunitária que não só inspira como comove.
18. boygenius – the record
Género: Indie Rock
Data de Lançamento: 31/03/2023
Editora: Interscope
Quando Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers se juntaram no estúdio em 2018, a sintonia entre as três foi quase um amor à primeira vista: seis canções (todas elas impactantes), três vozes agora consideradas como geracionais e algo especial a nascer à nossa frente. E dada a ascensão ao estrelato que marcou cada um dos seus respetivos percursos nos cinco anos que se seguiram ao autointitulado EP de estreia, a inevitabilidade de uma ressurreição das boygenius rapidamente se tornou num evento comunitário, assente nos mesmos pilares que deram origem ao elo inquebrável que, durante meia década, pareceu irrepetível. No cerne de the record, “encontram-se pedaços desse amor – nas suas histórias, nas memórias que motivaram estas doze faixas. Não é só uma forma de o cristalizar na música, mas sim o que motiva a sua existência. Por lá, coabita uma gratidão mútua” e uma intimidade clara como a água, transformando toda esta camaradagem, nascida de “vivências partilhadas e talentos em comum”, numa celebração em uníssono da “amizade que as uniu”.
17. Yves Tumor – Praise A Lord Who Chews But Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds)
Género: Neo-Psychedelia; Art Rock
Data de Lançamento: 17/03/2023
Editora: Warp
São poucos os artistas da presente geração que revitalizam tão bem o rótulo de rockstar como Sean Bowie. Cada fase artística de Yves Tumor traz consigo a garantia de uma erupção de sons e texturas díspares, carregadas de “ambição colossal, monstruosidade e perfecionismo” desmedido, e, claro está, uma dose opulenta de música rock, do mais extasiante e vanguardista que se pode desvendar na atualidade. Não surpreende ninguém, a este ponto, que Praise A Lord Who Chews But Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds) volte a partilhar tanto a mesma fórmula como os mesmos resultados de excelência. Bowie, todavia, faz deste seu quinto trabalho o mais interdimensional até à data, cruzando estratos de glam e art rock, post-punk sintético, grunge ou R&B num circo sensual e alucinante de proporções bíblicas.
16. Wednesday – Rat Saw God
Género: Indie Rock, Alt-Country
Data de Lançamento: 07/04/2023
Editora: Dead Oceans
No decorrer do quinto álbum dos Wednesday, a vocalista Karly Hartzman carrega cada canção com uma história e cada confissão como se fosse um pacto inquebrável. Escondidas na sua caixa de memórias, estão as vivências e os sons profundamente enraizados no meio provinciano do sul dos Estados Unidos, intimamente traduzidas nos episódios mundanos e trágicos enfrentados a sós ou partilhados em conjunto. Hartzman, ao embarcar nesta catártica viagem de autodescoberta por todos os pedaços marcantes da sua vida, consegue sarar feridas comuns pela via da relatividade, “e mesmo que, como ouvintes, estejamos distantes das memórias aqui narradas, revela-se uma certa transcendência nesta capacidade de compreender inteiramente o que nos é alheio”. A beleza de Rat Saw God revela-se nessas imprecisões e entrelinhas, ecoando “as camadas dispersas e contraditórias, os episódios triunfantes e os segredos humilhantes” da experiência humana (e o poder que advém de as enfrentar) como poucos.
15. Laurel Halo – Atlas
Género: Ambient; Electroacoustic
Data de Lançamento: 22/09/2023
Editora: Awe
Após concentrar-se nos sons etéreos da música clássica e electroacústica com Raw Silk Uncut Wood, Laurel Halo aperfeiçoa, logo à primeira, um projeto inteiramente entregue à aura sedativa da música ambiente. Atlas, que põe fim a um hiato de cinco anos, “vira precisamente o foco para a translucidez do subconsciente”, trazendo consigo uma longa lista de colaboradores e uma meticulosidade ímpar para um vácuo “onde o tudo e o nada se fundem num só”. “Centra-se aí, aliás, o maior elo atrativo de Atlas: um álbum cauteloso, mas sem forma; elegante, não haja dúvida, mas eternamente intrigante. Novos corpos vão surgindo e dissolvendo perante a curiosidade de quem os tenta percecionar”, num trabalho que, ao não sucumbir inteiramente à hipnose característica do seu género, recompensa os que se dispõem a uma imersão empenhada.
14. Sofia Kourtesis – Madres
Género: House
Data de Lançamento: 27/10/2023
Editora: Ninja Tune
A música de Sofia Kourtesis sempre esteve sujeita a uma lente autobiográfica, ora conectada à estética noturna dos clubes de Berlim (onde atualmente reside), ora enraizada nas suas origens peruanas, dando a tudo o que cria uma universalidade assente nos pilares da conexão humana, algo raramente priorizado no mundo da eletrónica. Madres compreende inteiramente o poder libertador da terapia na história de vida de Kourtesis e na música house como um todo, “atingindo, pelo caminho, uma conjuntura inabalável entre as suas progressões extasiantes e a vulnerabilidade que dá alento ao seu ofício”. Ao longo das suas dez faixas, Kourtesis nunca nega o contexto pessoal que envolve o seu disco inaugural, mas “evoca-o como algo purificante”. Quer se fale das múltiplas dedicatórias à sua mãe (ou ao neurocirurgião que a salvou do cancro), da inclusão do seu ídolo Manu Chao ou então do seu “cuidado meticuloso com a curadoria de texturas” (onde “a sua costela latino-americana salta para primeiro plano”), Madres retira da sua multidimensionalidade “uma compaixão ímpar, tão inerente às pistas de dança à espécie humana como um todo”.
13. MIKE – Burning Desire
Género: Abstract Hip-Hop
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: 10k
Os últimos anos de Michael Jordan Bonema têm sido de transições artísticas e pessoais drásticas, ganhando um lugar estimado na órbita mais underground do hip-hop nova-iorquino enquanto tenta “fazer sentido do seu próprio martírio”, perante o olhar acarinhado dos seus fãs e contemporâneos. E dado o caráter prolífico de MIKE, a essência fúnebre dos distantes Tears of Joy e Weight of the World em muito contrasta com a “faceta mais esperançosa e otimista, mas igualmente autoanalítica e instigante”, que tem sinalizado a caminhada prolífica de discos em que agora se encontra. Apenas 10 meses após Beware of the Monkey, ressurge num expoente máximo de confiança e urgência emocional. Por entre as “deambulações líricas pelo seu estado de consciência”, Bonema refina as “tendências estilísticas de outrora” e dá um salto triunfante em termos de maturidade criativa, nomeadamente ao nível dos instrumentais que conduzem Burning Desire. Mais do que uma extensão do seu percurso triunfante, é “um encaixe clarividente de tudo o que o torna numa voz inegavelmente cheia de alma e, agora mais do que nunca, orgulho”.
12. Kara Jackson – Why Does the Earth Give Us People to Love?
Género: Singer-Songwriter; Contemporary Folk
Data de Lançamento: 14/04/2023
Editora: September
O álbum de estreia de Kara Jackson encara as relações humanas como uma prática do quotidiano e como uma fonte infinita de sofrimento, arrastando a ternura sentida em Why Does the Earth Give Us People to Love? para um abismo solitário, e encontrando, no confronto direto com a sua tempestade emocional, fontes duradouras de humor e autossuperação. Com uma voz rouca e crua tão envolvente como os sentimento que capta, o dom natural de Jackson para a arte musical também deriva da sua formação poética, subvertendo cada esquema de rimas e palavras devastadoras em contemplações cândidas sobre o custo do amor ganho e do amor perdido e o porquê de, enquanto espécie, ansiarmos eternamente pelo privilégio de nos ligarmos num mundo fragmentado.
11. Squid – O Monolith
Género: Art Rock
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: Warp
Dois anos após a estreia nos discos do quinteto liderado pelo vocalista e baterista Ollie Judge, O Monolith desconstrói a sonoridade angular dos Squid e reintroduz muitos dos seus elementos-chave – os ritmos possantes, os crescendos eruptivos ou o registo cínico e caricatural de Judge – com uma dose reforçada de dinamismo e maturidade artística. “Tão discretamente feroz, assertivo e, para os pacientes, não menos recompensador do que o deslumbrante Bright Green Field”, o segundo trabalho dos britânicos mantém a “estética vibrante e extremamente imediata de outrora”, mas favorece, mais do que nunca, uma fusão entre o post-punk eletrizante que colocou o grupo na órbita e as tão necessárias deambulações pelos campos da eletrónica e do art rock. “E como qualquer banda que realmente desafia os seus ouvintes a se ajustarem a novas ideias tão ou mais imprevisíveis e distintivas, O Monolith vê os Squid a reformularem-se em tempo real, sem nunca virarem as costas ao que sempre deu mostras de resultar”.
10. Kelela – Raven
Género: Alternative R&B; Electronic
Data de Lançamento: 10/02/2023
Editora: Warp
Depois de ter feito dos cinco anos que se seguiram ao lançamento de Take Me Apart uma oportunidade para repensar o seu envolvimento e compromisso enquanto pioneira de uma fachada mais camaleónica e neo-futurista do R&B, a mais recente evolução musical de Kelela manifesta-se como um escape, onde a dor e a tensão se transformam gradualmente em êxtase purificado. Submersos por ambientes etéreos e pela energia cinética tão característica dos clubes noturnos, Raven estende a mão ao ouvinte para que se deixe sucumbir à sua atmosfera envolvente como pelo prazer avassalador que floresce nos seus segmentos mais enérgicos. Tanto pode servir como “música para suavizar a alma ou para incendiar discotecas, mas a linguagem mais falada neste seu segundo disco é mesmo a da conformidade. Ao fim de uma viagem de pouco mais de uma hora, Kelela renova-se à custa dos seus feitiços e, pelo meio, nós também”.
09. Jessie Ware – That! Feels Good!
Género: Disco; Dance Pop
Data de Lançamento: 28/04/2023
Editora: EMI; Universal Music
Num regresso orgulhoso à efervescência das pistas de dança e à euforia das festas debaixo de bolas de cristal, o novo trabalho de Jessie Ware, depois de ter renascido das chamas com What’s Your Pleasure?, volta a presidir uma celebração hedonista dos princípios do prazer por intermédio das sonoridades glamorosas do disco sem “nunca se assumir simplesmente como mais do mesmo”. E “se ainda restassem dúvidas de que a britânica consegue vestir o papel de diva da música pop na era moderna, as 10 faixas eletrizantes que dão forma a That! Feels Good! vêm confirmá-lo de vez.” Ao seu comando, o charme e a luxúria, bem como a sensualidade e a natureza efervescente da vida noturna “passam a ser duas cartas do mesmo baralho”, transformando um amplificar de teatralidade e glamour em odes magnetizantes à “auto-libertação da mente e do corpo” ‘Freedom is a sound and pleasure is a right!’: os encantos de That! Feels Good! vão dando alento a uma discoteca que se promete “eterna – pelo menos enquanto o amor prevalecer”.
08. billy woods & Kenny Segal – Maps
Género: Abstract Hip-Hop
Data de Lançamento: 05/05/2023
Editora: Backwoodz Studioz
O rapper nova-iorquino billy woods e o produtor Kenny Segal voltam a unir forças, depois de se terem estreado nas colaborações com Hiding Places em 2019, para um diário fragmentado que recai sobre a agenda conturbada de qualquer digressão no mundo artístico e das contínuas viagens a que obriga. Navegamos, ao lado das rimas entrelaçadas de woods e do seu carisma inimitável, “por estados de jetlag, viagens de Uber, a caminho de concertos e novos destinos”, numa rotina inegavelmente desorientante e em constante movimento que se vê perfeitamente traduzida nas vinhetas instrumentais de Segal. Maps bem pode ser simples e acessível para os padrões de Woods, mas as suas 17 faixas constroem uma narrativa não menos inventiva e aliciante de analisar que os seus lançamentos mais densos, oferecendo-nos uma “intrigante dinâmica entre o artista e a sua profissão. Vindo de uma figura ímpar no universo contemporâneo do hip-hop (e visivelmente em dissonância com a exposição mediática associada a estes espaços), as suas observações são puramente refrescantes.”
07. ANOHNI and the Johnsons – My Back Was A Bridge For You To Cross
Género: Singer-Songwriter; Soul
Data de Lançamento: 07/07/2023
Editora: Secretly Canadian; Rough Trade
Pela primeira vez em mais de uma década, ANOHNI reúne-se com os seus The Johnsons para desenhar uma tese de soul contundente, numa época onde a catástrofe parece inevitável e os apelos à ação – decorrentes do colapso ambiental, das regressões sócio-políticas, bem como da luta queer e trans pela emancipação – vão perdendo efeito. Ecoando os mesmos sentimentos expressos por Marvin Gaye em What’s Going On, ANOHNI lidera o caminho por entre as cinzas da contemporaneidade, sem nunca esconder o puro pesar que vai rasgando a sua voz maternal. À medida que My Back Was A Bridge For You To Cross reconta histórias implacáveis de amor monumental e empatia perante a divisão global, inflamadas por interacções com os falecidos Lou Reed e Martha P. Johnson (um retrato da ativista é, inclusive, usado na capa do álbum), a ferocidade de cada exigência por um futuro melhor dá lugar à beleza agridoce de partilharmos uma devastação universal. E com declarações tão perpétuas como aquelas com que ANOHNI se debate, esse sentimento rapidamente se transforma em empoderamento.
06. Sampha – Lahai
Género: Alternative R&B
Data de Lançamento: 20/10/2023
Editora: Young
O tempo é crucial: para encontrar o caminho da nossa existência, para a auto-realização, para sarar feridas. Lahai encontra Sampha a lidar com “a sua natureza finita e em como escolhemos honrar a vida de que dispomos”, depois de já se fazer adivinhar, para além dos “testemunhos envoltos de pesar” que marcaram Process, um regresso aos holofotes pintado de fé, existencialismo e, acima de tudo, a vulnerabilidade que o torna num artista tremendamente singular à luz dos seus conterrâneos. Enquanto o britânico volta a levantar voo na sua viagem de autodescoberta de proporções oníricas (espelhando, em grande medida, as lições metafóricas de Jonathan Livingston Seagull, a famosa fábula de Richard Bach), ouvimo-lo renovado pela sua recente paternidade, “com uma vontade incansável de valorizar o que o rodeia”, e elevado aos céus pela instrumentação oscilante e cinemática, ora orgânica ora sintética, que vai cimentando a ponte entre o domínio do sonho e da realidade. “Para fazer sentido do nosso ser, em todo o seu esplendor sentimentalista e incrivelmente caótico, é preciso tempo e Sampha certamente soube fazer bom uso do seu.”
05. Amaarae – Fountain Baby
Género: Afrobeats; Alternative R&B
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: Interscope
Nos últimos 12 meses de novos lançamentos, poucos são os exemplos que encarnam na perfeição o poder da globalização na arte como Amaarae e o seu segundo álbum, “pouco dado a convencionalismos, sempre seguro de si mesmo” e determinado em colocá-la nas bocas do mundo. Falar de Fountain Baby é falar de afrofuturismo e, sobretudo, de heterogeneidade. Na recorrente interseção entre soberania, opulência e sexo, unidos pelo registo vocal agudo e sedutor de Amaarae, cruza-se afrobeats com R&B, adiciona-se uma pitada de folk nipónico ou então uma inesperada secção de punk, reapropriam-se clássicos intemporais dos Clipse e analisa-se atração pela via da astrologia. E dada as suas “raízes ganesas e norte-americanas ou a enorme ubiquidade das suas influências, torna-se imediatamente aparente que, mais do que um simples moodboard de conceitos soltos, Amaarae faz da sua linhagem ponto assente e da sua música um reflexo de todas as experiências e descobertas que daí decorrem”. O que resulta dos 14 temas de Fountain Baby, contudo, é algo muito mais significativo do que a herança que respira. É o expoente máximo da fluidez na música, sem nunca se tornar demasiado excessivo ou perder o seu caráter contagiante, atravessando estilos, culturas e continentes, e anulando, pelo caminho, quaisquer noções preconcebidas sobre o que a música pop deve ser ou soar.
04. Mitski – The Land Is Inhospitable and So Are We
Género: Indie Folk; Singer-Songwriter
Data de Lançamento: 15/09/2023
Editora: Dead Oceans
Da última vez que se mostrou ao mundo, Mitski atingia um novo pico de popularidade e, por outro lado, parecia ameaçar um fim de carreira trágico. Por entre a “euforia sónica” de Laurel Hell, mostrava-se, mais do que nunca, “visivelmente angustiada: com a sua fama, com o seu ofício e até mesmo com a forma como as suas criações são ou podem ser percecionadas, consumidas.” E numa época em que tanto a humanidade como tudo aquilo com que interage (fale-se da arte ou da própria natureza) se vê ameaçada pela sua hostilidade, as questões levantadas pelo seu sétimo disco emanam da necessidade incessante de voltar a encontrar o encanto no ‘poema’ da vida, tanto para a artista como para a humanidade em geral. Trocando as minúcias do synth pop por uma sonoridade orgânica e serena, The Land Is Inhospitable and So Are We vê Mitski encarar a reinvenção em frente à ruína inescapável. No centro da sua proeza emocional (constantemente sintonizada com os arranjos orquestrais, dignos “da era dourada de Hollywood”) estão as meditações arrepiantemente poéticas que irrompem das profundezas da subconsciente, enquadrando o amor como algo celestial, para ser partilhado e perdurado bem para além da morte física, mas “não menos indefeso às calamidades” do nosso ser. Novamente no auge dos seus dotes, a escrita poética de Mitski é de uma elegância comovente, transformando a incerteza da condição humana em réstias de esperança, mesmo quando rodeada pela escuridão do existencialismo. “Para conseguir encontrar o verdadeiro encanto no mundo, talvez seja necessário aceitar, lá está, a brutalidade do nosso ser e, acima de tudo, o modo como inevitavelmente sabotamos o que torna a espécie humana tão antagonicamente bela. Neste regresso a lugares inóspitos, Mitski convida-nos a fazer o mesmo”.
03. JPEGMAFIA & Danny Brown – SCARING THE HOES
Género: Experimental Hip-Hop
Data de Lançamento: 24/03/2023
Editora: AWAL; PEGGY
Predestinado a ser o equivalente às partilhas majestosas de KIDS SEE GHOSTS ou Watch the Throne, para uma “fação cronicamente online”, a existência de um álbum conjunto entre JPEGMAFIA e Danny Brown, embora não seja surpreendente, faz simplesmente sentido. Nas suas respectivas carreiras a solo, ambos os rappers sempre prosperaram na arte da “provocação através da inconvencionalidade”, algo que nem a diferença de idades aparenta contrariar. Há muito que ser desconcertante corre nas veias da sua música anárquica e as reações viscerais que conseguem provocar já fazem, lá está, parte do processo. É claro que o resultado final de qualquer colaboração não servirá, definitivamente, de banda sonora “para eventos familiares ou festas mais casuais – e de bom grado. Rotular SCARING THE HOES como algo ‘fora-da-caixa’ é, contudo, só ver a imagem pela metade. Assemelha-se mais a um parque de diversões recheado de beats explosivos e exibicionismos, com uma dose de insanidade à mistura”. No leme, lá estão dois filhos prediletos e respetivos baluartes do hip-hop experimental “a cruzarem finalmente os seus caminhos, atirando orgulhosamente gasolina para a fogueira durante 35 minutos consecutivos”. Aproximando-se sempre mais do estilo-base de JPEGMAFIA, a produção hermética de SCARING THE HOES é do mais hiperativo e contundente que se pode encontrar em qualquer trabalho equiparável dos últimos 12 meses e a combinação perfeita para a energia furiosa da dupla, sem medo de adicionar ainda mais frenetismo à tempestade de samples de Kelis, antigos anúncios publicitários de Hokkaido, orquestras sinfónicas inteiras e gospel distorcido. Contra tudo e contra todos, “lá vão contorcendo a realidade ao seu próprio gosto. Ditam as suas quebras, o seu início, o seu repentino fim. Pelo meio, sacodem-se os sentidos, rebentam-se os corpos e, acima de tudo, assustam-se os que ficaram (ou não) de ouvidos pregados”.
02. Caroline Polachek – Desire, I Want To Turn Into You
Género: Art Pop
Data de Lançamento: 14/02/2023
Editora: Perpetual Novice
Nos momentos iniciais do muito-aguardado sucessor de Pang, Caroline Polachek dá-nos as boas-vindas à sua ilha de maravilhas sensoriais, com uma obrigação de permanência disfarçada de cartão de visita. E da primeira à última estação do itinerário, Desire, I Want To Turn Into You não para de deslumbrar, numa viagem esotérica e de comando único que rapidamente se quer interminável. Com Polachek e o co-produtor Danny L Harle “a incorporarem diversos estilos musicais e influências como se estivessem a colher flores do jardim do Éden”, convocam guitarras e gaitas-de-foles em Blood and Butter, “enaltecem os ritmos do flamenco” em Sunset, trazem os microbeats para a dianteira com Pretty in Possible e I Believe. Tudo em prol de uma “impecável curadoria estética” e, acima de tudo, da essência exuberante e carnal do prazer. Uma romântica incurável, Polachek pinta vividamente o desejo como uma erupção vulcânica, a proximidade como o entalhe de uma tatuagem e marinheiros que amam como pintores, num segundo disco ancorado em solo humano, mas com prazeres e mitos que nos levam “para junto dos portões do paraíso”. É tudo parte do verdadeiro milagre que sustenta cada fio retorcido e habilmente executado deste seu mundo vivo e respirável, mantendo-se totalmente em sintonia com a sua visão singular e, por extensão, a criação de uma obra que abalroa assertivamente os limites da inovação, dentro e fora do espetro da música pop. “Se o desejo permanecer bem para além do seu fim, então deixemo-nos consumir por Desire, I Want To Turn Into You, é o melhor remédio”.
01. Sufjan Stevens – Javelin
Género: Indie Folk; Singer-Songwriter
Data de Lançamento: 06/10/2023
Editora: Asthmatic Kitty
Quando Sufjan Stevens anunciou o seu décimo e mais recente disco, rotulou-o como um regresso em pleno ao “estilo cantautor” de Carrie & Lowell, uma das suas múltiplas obras-primas, onde vemos o norte-americano a conduzir uma “reflexão arrepiantemente silenciosa” sobre os eventos traumáticos desencadeados pelo falecimento da mãe. Conforme se avizinhava, porventura, o lançamento de Javelin, cedo se tornou claro que, tal como grande parte da sua monumental caminhada artística nas últimas duas décadas, seria novamente assombrado por contornos fúnebres. “A um diagnóstico e subsequente recuperação do Síndrome de Guillain-Barré (uma doença autoimune que limitou temporariamente a sua capacidade motora), seguiu-se o anúncio da morte do companheiro de longa data, Evans Richardson (a quem dedica o álbum), em abril deste ano, ao passo que também confirma publicamente a sua homossexualidade”. São revelações, algumas delas, incrivelmente trágicas que, ao arredar a intimidade do artista da sua privacidade, dão às suas composições, mais do que nunca, um caráter imensamente autobiográfico.
Nas faixas que dão forma a Javelin, ouvimos Stevens a lidar com o luto como um símbolo eterno das profundezas da conexão humana, transformando o sentimento da perda na mais digna celebração da atemporalidade do amor, “para sempre distante da sua forma física, mas não da alma. Uma forma de relembrar a sua beleza, os pequenos detalhes e memórias e retirar daí razões para prosseguir”, colocando a devoção eterna a par da natureza, do corpo ou da religião. É, de igual forma, um englobar de todas as essências artísticas da sua carreira, cruzando harmoniosamente as suas tendências electrónicas com o tom sombrio e melancólico dos seus trabalhos mais devastadores. Mais do que o culminar de tudo o que tem sido considerado imagem de marca ao longo da sua carreira, as emoções expressas em Javelin transcendem a própria finalidade da humanidade, inscrevendo miraculosamente a esperança, mesmo quando rodeado pelos efeitos duradouros da morte. É, aliás, o sentimento que mais transparece nos instantes finais de Javelin. “A complexidade do amor volta a afirmar-se na ótica de Stevens, num lindíssimo tributo à vida (e a como resistir ao seu término) tão difícil de digerir como de conceber”.