Os Destaques de Maio e Junho 2023
Os novos lançamentos de billy woods & Kenny Segal, dos Squid e de Amaarae são os destaques em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.
billy woods & Kenny Segal – Maps
Género: Abstract Hip-Hop
Data de Lançamento: 05/05/2023
Editora: Backwoodz Studioz
Não é de agora que o rapper novaiorquino billy woods é mestre na arte de espelhar as copiosas falhas e injustiças da existência humana. Assim tem sido ao longo da grande maioria da sua já longa e estonteante carreira, tanto nos seus trabalhos a solo como no seu projeto colaborativo com ELUCID, a outra cara-metade dos Armand Hammer. É, aliás, o que lhe trouxe um novo pico criativo em 2022 e o que fez de Aethiopes um dos grandes destaques desse mesmo ano, “com o passado histórico a assombrar o presente e o colonialismo a lançar uma sombra atormentadora sobre cada minuto do mesmo”. O futuro imediato de woods passa, no entanto, não só por uma nova reunião com o produtor Kenny Segal, mas por uma mudança de foco em várias óticas.
Mesmo numa primeira análise, torna-se claro que Maps é tudo menos uma mera sequela do enigmático Hiding Places (editado em 2019), para além das suas figuras centrais. O reflexo, desta vez, recai sobre a vida atribulada do mundo artístico e das contínuas viagens a que obriga. Navegamos, ao lado das rimas entrelaçadas de woods, por estados de jetlag, viagens de Uber, a caminho de concertos e novos destinos, de forma mais ou menos atribulada. O resultado assume quase o formato de um diário rotineiro do dia-a-dia do rapper, sempre em movimento, mas sempre com o carisma inimitável de woods à mistura, somados a alguns trechos de intimismo – nomeadamente em faixas como Bad Dreams Are Only Dreams ou a nebulosa Soft Landing. Os instrumentais de Kenny Segal, por outro lado, vão servindo de montra para as narrações do rapper, orbitando entre o jazz buliçoso de Blue Smoke ou o boom bap apurado de FaceTime, uma reflexão confessional em torno do distanciamento e um dos muitos temas fortes e surpreendentemente acessíveis do álbum (para o padrão habitual do rapper, claro está), que conta ainda com o contributo de Samuel T. Herring dos Future Islands. É, aliás, um dos vários convidados memoráveis espalhados pelos 17 temas de Maps. Podemos ouvir a sempre aguardada presença de Danny Brown em Year Zero, uma faixa que tanto tem de cortante como de absurda, ou Aesop Rock em Waiting Around, não esquecendo também uma fenomenal troca de versos entre Quelle Chris e woods em Soundcheck, reforçando sempre as posições e dilemas em discussão. São, todos estes, elementos fulcrais que fazem de Maps mais um brilhante disco no invejável catálogo de Woods e, porventura, o exemplo máximo da sua sinergia criativa com Kenny Segal. Ao trazer uma narrativa não menos inventiva do que as dissecações densas dos seus trabalhos mais aclamados, oferece-nos uma intrigante dinâmica entre o artista e a sua profissão. Vindo de Woods, uma figura ímpar no universo contemporâneo do hip-hop (e visivelmente em dissonância com a exposição mediática associada a estes espaços), as suas observações são puramente refrescantes.
Squid – O Monolith
Género: Art Rock
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: Warp
O que seria da música sem evolução? Esta condição é, afinal, absolutamente inerente à produção criativa e o principal promotor de qualquer tipo de inovação e vanguardismo, que passa por desvendar novas ideias e contextos, muitas vezes, de onde menos se espera. A cena musical de Windmill, que tanto tem moldado o panorama contemporâneo do rock britânico, não escapa à regra. Entre o caos virtuoso dos black midi e a magistralidade dos Black Country, New Road, também os Squid têm sabido crescer com a passagem do tempo, sem deixar de lado a sua habitual criatividade. Dois anos depois do post-punk eletrizante de Bright Green Field ter marcado a estreia nos discos do quinteto liderado pelo vocalista e baterista Ollie Judge (e logo com o selo da Warp Records), surge O Monolith, um digno sucessor que vê os Squid a finalmente abraçarem a maturidade, com todas as mutações que daí surgem.
Quando postos lado-a-lado, são visíveis as diferenças entre Bright Green Field e este novíssimo O Monolith. A estética vibrante e extremamente imediata de outrora continua a ser, claro está, a principal imagem de marca dos britânicos. Swing (In A Dream) e Undergrowth, singles de apresentação do álbum, vêm provar isso mesmo, com os ritmos possantes e o registo cínico e caricatural de Judge em pleno funcionamento. Contudo, a sonoridade dos Squid é, mais do que nunca, independente da sua eventual prontidão. O Monolith floresce, por isso mesmo, na atenção dada à experimentação, ao dinamismo e aos crescendos, alternando entre um estado de lume brando e as tão desejadas explosões de energia. Enquanto temas ao estilo de After the Flash e Siphon Song se centram única e exclusivamente nestas tão necessárias deambulações (arrastando os britânicos, com subtileza, para os campos da eletrónica e do art rock), a impetuosa The Blades é, por outro lado, capaz de combinar o melhor destas duas metades complementares, levando-nos da passividade à detonação com uma segurança cabal. Talvez seja essa confiança reforçada que permite aos Squid fazer deste seu segundo disco tão discretamente feroz, assertivo e, para os pacientes, não menos recompensador do que o deslumbrante Bright Green Field. Os principais trunfos do quinteto prestam-se ao mesmo grau de eficácia, afinal. Contudo, e como qualquer banda que realmente desafia os seus ouvintes a se ajustarem a novas ideias tão ou mais imprevisíveis e distintivas, O Monolith vê os Squid a reformularem-se em tempo real, sem nunca virarem as costas ao que sempre deu mostras de resultar.
Amaarae – Fountain Baby
Género: Afrobeats
Data de Lançamento: 09/06/2023
Editora: Interscope
Numa indústria cada vez mais globalizada, a genealogia da música torna-se progressivamente mais heterogénea, com cada artista convidado a fugir dos vácuos quasi-impostos de cada estilo artístico e a desenhar uma visão menos centrada em estereótipos. Amaarae assume-se, em grande medida, como um caso evidente deste desejo de fusão e distorção de rótulos, numa dicotomia entre mergulhar noutros universos e fugir de todos eles. Ainda que por arrasto da recente explosão e consequente domínio global do afrobeats, debate-se desde sempre com um leque distinto de realidades. Entre a partilha de raízes ganesas e norte-americanas ou a enorme ubiquidade das suas influências, torna-se imediatamente aparente que, mais do que um simples moodboard de conceitos soltos, Amaarae faz da sua linhagem ponto assente e da sua música um reflexo de todas as experiências e descobertas que daí decorrem. Três anos passados sobre a sua estreia nos trabalhos de estúdio com The Angel You Don’t Know, Fountain Baby não perde tempo em fazer-nos repensar pontos de vista e conceções, apresentando a sua herança como um cartão de boas-vindas e a sua contundência como mote deste seu mundo maleável.
Falar de Fountain Baby é, sobretudo, falar de afrofuturismo. É um álbum movido pelo espírito do afropop, mas nunca assente numa só palete sónica. Entre um possível conservadorismo e a abertura de novas portas, a escolha de Amaarae não só é óbvia, como incrivelmente assertiva. Por entre as suas 14 faixas, desvenda-se um pouco de tudo: o folk nipónico que dá forma à visceral Wasted Eyes, a surpreendente secção de punk que domina a segunda metade de Sex, Violence, Suicide, a reapropriação da intemporal Wamp Wamp (What It Do) dos Clipse que faz de Counterfeit mais um hino à extravagância. De mão dada com esta diversidade estética, surge precisamente uma sede de luxúria e uma infinidade de formas (tanto materiais como imateriais) de a satisfazer. O imediatismo de muitos dos temas fortes de Fountain Baby – exemplares na arte dos refrões inescapáveis ou da instrumentação simultaneamente cristalina e ostensiva – emerge como um produto desta vontade insaciável de abundância, fazendo de cada sensação despertada uma ligação com o profano. De Angels in Tibet, Princess Going Digital ou Big Steppa, retiram-se proclamações de sensualidade de todos os seus recantos. Nas passagens contagiantes de Co-Star, uma ode à astrologia que orbita entre o sarcasmo e a jovialidade, ou de Sociopathic Dance Queen, esta passa a ser sinónimo de urgência. Acima de tudo, os experimentalismos camaleónicos de Fountain Baby recaem na aceitação destes excessos e de cada faceta do seu historial artístico e, por extensão, da música pop como um todo. O resultado é um álbum pouco dado a convencionalismos, sempre seguro de si mesmo e determinado em colocar Amaarae nas bocas do mundo.