Os Destaques de Abril 2023

Os novos lançamentos de Wednesday, de Tim Hecker e de Jessie Ware são os destaques em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.

Wednesday – Rat Saw God

Género: Indie Rock; Alt-Country
Data de Lançamento: 07/04/2023
Editora: Dead Oceans

Para os Wednesday, cada música carrega uma história e cada história uma saudade de um passado a que já não podemos regressar. Mesmo para quem nunca conviveu com o meio provinciano norte-americano, é fácil olhar para trabalhos como I Was Trying to Describe You to Someone e Twin Plagues e partilhar o mesmo sentimento, ainda que por meros instantes. Até a própria estética do grupo vem evocar muitas das tendências dominantes da década de 90, desde os sons do country, do indie rock e do shoegaze aos próprios videoclipes e diários mensais da banda. No cerne dos Wednesday, vive esta caixa de memórias, tão intrínseca à vocalista Karly Hartzman e, ainda assim, tão compreensível por quem entra repentinamente no seu mundo.

Rat Saw God, o primeiro disco do quinteto da Carolina do Norte editado pela Dead Oceans, usa novamente os contos de Hartzman como ponto de partida, mas nunca o seu poder foi tão eficaz como aqui. Não é preciso ir muito mais longe do que Bull Believer,“uma arrepiante epopeia de noise rock pautada pelas suas proporções assombrosas e pelos abalos e descargas que ocasiona”. São oito minutos e meio de pura tensão, sempre em crescendo, que culmina “numa explosão sónica narrada pelos gritos catárticos da vocalista”. No mesmo campo, temos faixas como Hot Rotten Grass Smell ou Bath County, que fazem das guitarras rompantes um veículo para proclamar o sofrimento ou recontar episódios trágicos.

É, de igual forma, nestes momentos mais despidos que Rat Saw God ressoa mais. Enquanto Formula One – um dueto entre a vocalista e MJ Lenderman, guitarrista do grupo e companheiro de Hartzman – encontra na falta de distorção uma porta de entrada para a intimidade, então Chosen to Deserve chega mesmo a ser o caso máximo desta faceta mais discreta de Rat Saw God. É um tema que, para além de estabelecer um meio ponto estilístico entre o vasto catálogo de clássicos dos Pavement e um genérico contagiante de uma sitcom, se revela nas suas confissões. Entre amigos que ficaram às portas da morte ou recantos da sua viagem de autodescoberta na adolescência, Hartzman mostra, sem receio, todos os pedaços marcantes da sua vida.

E mesmo que, como ouvintes, estejamos distantes das memórias aqui narradas, revela-se uma certa transcendência nesta capacidade de compreender inteiramente o que nos é alheio. O mais recente trabalho do quinteto é, tal como a experiência humana, feito de camadas dispersas e contraditórias, episódios triunfantes e segredos humilhantes. Por vezes, a beleza de uma pessoa, e até mesmo da música, está precisamente nesses detalhes, que tão discretamente pintam a vida de cada um. O que a notável coleção de faixas de Rat Saw God demonstra é que os Wednesday ecoam essas entrelinhas como poucos.

Tim Hecker – No Highs

Género: Ambient; Drone
Data de Lançamento: 07/04/2023
Editora: Kranky

Quando a música do veterano Tim Hecker, um dos verdadeiros maestros da música eletrónica em pleno século XXI, vem à memória, é frequente destacar-se a sua inquietude. Não é de agora que o canadiano faz da sua arte absolutamente desconcertante – aliás, todos os seus melhores trabalhos ao longo de mais de 20 anos de carreira partilham esta mesma qualidade. Fale-se de Harmony in Ultraviolet ou Radio Amor, Ravedeath, 1972 ou Virgins, a sua ambiguidade é absoluta, trazendo-nos música ambiente que, para além de extraordinariamente dinâmica, nos prende num constante estado de hipnose, inegavelmente sujeitos ao seu desconforto, mas também à beleza que daí provém.

Neste campo, No Highs, a mais recente criação de Hecker (e o seu primeiro longa-duração em quatro anos), assume-se como um regresso a casa, ainda que com uma execução mais minimalista. Depois de adotar, a fundo, uma estética eletroacústica com Konoyo e Anoyo (assumidamente inspirados pelo gagaku, uma vertente da música clássica japonesa), o seu 11º álbum de estúdio balança o artista do passado e do presente, o cristalino das suas últimas composições com o cataclismo dos seus clássicos. Por cada camada de som convidativa (tais como as sirenes ensurdecedoras, as notas solitárias e repetitivas ao estilo do código morse, inicialmente introduzidas em Monotony), surgem outras tantas que submergem este falso estado de acalmia.

Entre os sintetizadores vertiginosos, o drone impetuoso, os órgãos discretamente assertivos e as múltiplas contribuições do compatriota Colin Stetson no saxofone (com especial destaque para o seu solo jubilante em Monotony II), vários são os temas de No Highs que florescem em lume brando. Efetivamente, a chave de cada progressão nunca passa por clímaxes explosivos ou resoluções aterradoras, mas sim pelo desvendar gradual e pulsativo dos seus elementos, adicionando tensão a cada minuto que passa. O mistério deste novo universo de Hecker, porventura, desenrola-se como um jogo de peças que se complementam entre si. São muitos os motivos repetidos e espalhados pelas suas faixas, algumas desta que servem como puras transições para os momentos mais ambiciosos de todo o disco. E por cada Lotus Light ou Anxiety (exímios na arte de envolver o ouvinte numa atmosfera sedativa e em permanente evolução), surgem outros tantos que nos assombram com um vazio infinito, como Winter Cop e Sense Suppression.

Mesmo nestes instantes mais opacos, a magia desta nova produção do canadiano nunca se torna, lá está, num desgastante exercício de concentração, num teste à paciência humana que não nos consegue derivar do mundo em redor. De certa forma, No Highs atira-nos, precisamente, para um reflexo simbólico da realidade contemporânea. Não é por acaso que nas suas notas de lançamento, Hecker descreve o álbum como um “anti-relaxante para a nossa era medicada”. Vemos isso de diversas formas, algumas rodeadas de agonia e ansiedade coletiva, outras de uma estranha harmonia. Enfrentar a vida também implica saber viver na indefinição e na ambiguidade – sem altos e sem baixos. Esta é a imagem pouco otimista que assombra os seus 51 minutos de duração, naquele que poderá ser mesmo o maior feito de Tim Hecker em praticamente uma década.

Jessie Ware – That! Feels Good!

Género: Disco; Dance Pop
Data de Lançamento: 28/04/2023
Editora: EMI; Universal Music

O poder reativo da música pop não é um debate propriamente recente. No meio da incerteza, da saudade, da falta de celebração, é nela que encontramos um escape. Se não é propriamente uma novidade que uma iminente recessão parece ser sinónimo de um interesse renovado nos hinos libertadores do passado e do presente, os três últimos anos certamente não fugiram à regra. À medida que 2020 instalava a incerteza no ar, o mundo confiou em Dua Lipa, Kylie Minogue ou The Weeknd para dar contornos festivos a uma emergência pandémica. No meio deste revivalismo do disco, Jessie Ware assumiu o rótulo de líder improvável. Foi nas sonoridades glamorosas do disco que a britânica conseguiu dar uma segunda vida à sua carreira com What’s Your Pleasure?. Numa onda de álbuns que procuraram abraçar os mesmos valores, homenagear as mesmas estéticas e captar as mesmas emoções, o de Ware venceu confortavelmente a concorrência.

Se, três anos depois, That! Feels Good! retorna à efervescência das pistas de dança e à euforia das festas debaixo de bolas de cristal, o melhor é mesmo agradecer a Jessie Ware. Como sucessor de What’s Your Pleasure?, nunca se assume simplesmente como mais do mesmo. São menos frequentes as serenatas suaves ao estilo de Minnie Ripperton e mais os grooves irresistíveis com uma majestosidade equiparável à de Donna Summer. A teatralidade e o glamour, precisamente, são aqui amplificados a um novo máximo. Se ainda restassem dúvidas de que a britânica consegue vestir o papel de diva da música pop na era moderna, as 10 faixas eletrizantes que dão forma a That! Feels Good! vêm confirmá-lo de vez. Vemo-lo, sobretudo, em Free Yourself e Pearls, guiados pela produção de Stuart Price, uma peça incontornável de trabalhos anteriores de Kylie Minogue e de Madonna, algumas das estrelas que Ware faz questão de evocar nesta fase da sua discografia.

Igualmente magnetizantes são temas como Freak Me Now ou These Lips, onde melhor se prova que, nesta discoteca inescapável, o prazer é um direito – como faz questão de declarar na faixa-título. Ao comando de Ware, a paixão e a natureza efervescente das eternas noites de dança passam a ser duas cartas do mesmo baralho. Sejam os lábios procurados em mais de cem países ou os vários mantras de auto-libertação da mente e do corpo, é impossível dissociar That! Feels Good! da sua enorme sensualidade. Mesmo quando a britânica intercala estes múltiplos hinos com um par de baladas (Hello Love e Lightning), o ímpeto não se perde pelo caminho.

Contudo, falar de That! Feels Good! é também falar de Begin Again, um testamento majestoso que representa a plenitude do charme e da luxúria do álbum como um todo, mas, acima de tudo, a sua trajetória artística. No início da presente década, debatia-se com o propósito da sua música. O que se seguiu já todos sabemos: um renascer das chamas em plena pista de dança. Com That! Feels Good!, Jessie Ware convida-nos a fazer o mesmo ao som do seu disco empoderador.

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