Vodafone Paredes de Coura 2023 (2º Dia): A diversidade assume novamente o comando
Após um arranque marcado pelos sons da nova vanguarda, o Taboão viu na ternura de Tim Bernardes, no hip-hop imperativo de Loyle Carner e na música ácida de Fever Ray motivações para as suas maiores enchentes, num segundo dia de festival que também serviu para revelar na mente brilhante de Sudan Archives e nas inquietações catárticas d’A Garota Não algumas das atuações mais brilhantes de toda a semana.
A Garota Não e a necessidade de intervir
“Perdoem-me esta coisa tão direta”, anuncia Cátia Oliveira a meio da sua comovente atuação inaugural no segundo dia de programação, quase como se de um pecado se tratasse. O sentimento é, no entanto, válido. Nesta consagração máxima da história que tão bem está a conseguir escrever, A Garota Não viu-se obrigada a separar o contexto dos seus temas, e as ramificações da sua dor (partilhada e sentida por tantos outros). Não existe, aliás, inquietação que não tenha a sua origem, ou razão de ser, e a cantora setubalense não escapa à regra. Carrega consigo, inevitavelmente, o peso da tradição, dos mais ilustres artistas portugueses de intervenção e de emergir, finalmente, uma voz feminina de contestação a juntar-se aos heróis do passado. Ainda que bem longe, claramente, da condição contextual de um Sérgio Godinho ou de um José Mário Branco, a sua música não deixa de conter a urgência tão característica da música de protesto, a necessidade eminente de questionar a realidade e de, contra todas as forças e vontades, conseguir ter coragem no meio dela, mesmo quando tal parece impossível.
Assim o sentimos quando solta Canção Sem Final, A Grande Máquina ou Urgentemente (que floresce das palavras do poeta Eugénio de Andrade) – saídas do seu segundo disco, 2 de abril – como flechas ardentes, com uma humanidade cabal que rapidamente se propaga pelos muitos admiradores que ali quiseram ficar num fim de tarde nublado. Um concerto d’A Garota Não, mesmo nesta sua versão alterada, não perde a sua essência e muito menos o rosto político tão inerente (e bem) aos temas do seu género. Nas suas narrativas, encontramos o respeito pelo mais próximo, o direito à habitação, a viver livre e a continuar a fazer das promessas de Abril muito mais do que um simples mantra. O maior murro no estômago desta sua passagem por Coura, contudo, surge nos instantes finais de Mulher Batida, quando lentamente folheia, num caderno preto, o nome de cada uma das 28 mulheres mortas, vítimas de violência doméstica em Portugal, no ano passado (e este número já foi ultrapassado em 2023). “Temos de intervir”, afirma perante uma maré contínua de ovações. Enquanto existirem artistas como ela, as inquietações nunca mais serão silenciadas.
A magia de Tim Bernardes fez de Coura o seu próprio Woodstock
Tim Bernardes sempre teve um pé no mundo e outro no Brasil – assim tem sido desde que levantou voo além-fronteiras. Algures entre a era dourada da MPB, a “beatlemania” e o indie ornamentado dos Grizzly Bear e Fleet Foxes (com quem tem mantido uma relação artística prolífica), reside o coração de Mil Coisas Invisíveis, um digno sucessor do seu disco de estreia, Recomeçar, que “mostra um Tim Bernardes mais confortável com as suas influências, mas igualmente confiante nas suas próprias artimanhas”. Por mérito do brasileiro, essa sua magia funciona em qualquer local: numa sala mais intimista ou no recinto de um festival; no conforto das nossas casas ou junto de tantos outros admiradores das suas enternecedoras viagens narrativas. A verdade é que, na abertura do Palco Vodafone, fica novamente provado esse poder quase incrédulo de criar um vínculo inquebrável por onde passa.
Em lugar dos arranjos ostensivos deste seu segundo álbum, o brasileiro volta o foco para o essencial: a guitarra, o piano e a sua voz apaixonante. Não há, aliás, muitos artistas da sua geração que consigam tão bem encapsular toda a emoção num acorde, num verso ou numa simples melodia. Basta a ternura de Nascer, Viver, Morrer, BB (Garupa de Moto Amarela) ou Quis Mudar para comover qualquer um, num concerto onde as lágrimas, os abraços e as partilhas coletivas de afeto foram sim a regra e não a exceção. O mesmo aplica-se quando improvisa o bielzinho dos seus O Terno ou evoca a monumental Gal Costa com Realmente Lindo. Quando as baladas de Tim falam por si, não são necessários quaisquer adereços adicionais. Talvez isso ajude a explicar a sua espantosa transversalidade e o porquê da enchente que o esperava. Não há como enganar o seu efeito ou até mesmo sobreanalisar o que é tão humano e realista, sendo que vivê-lo é precisamente o melhor remédio, com a certeza de terminar cada encontro com a alma purificada. A julgar por esta sua encantadora atuação, o sentimento é repartido.
O furacão criativo de Sudan Archives
Sudan Archives não é efetivamente uma artista comum. Pelo menos, não habita no mesmo planeta que os seus supostos conterrâneos, a julgar pela incessante criatividade do recentíssimo Natural Brown Prom Queen. Não existe aqui uma identidade fixa, um elemento central ou sequer um rótulo firmemente aplicável. Nem se pode sequer estabelecer uma comparação digna com o disco de estreia do projeto artístico de Brittney Parks, Athena, onde a vemos mais relegada às suas bases de violinista. Em cada recanto do seu sucessor, habita uma mente brilhante à solta e uma série de ideias pintadas “de tons vibrantes e sonorizadas por praticamente qualquer estilo musical que a multi-instrumentalista consiga cobrir, indo das tendências do rap e do neo-soul ao art pop”. A sua enorme versatilidade nunca esteve em jogo, mas é nesta fase da sua carreira que atinge a liberdade total que sempre caçou.
A partir do momento em que pisa o Palco Yorn, Parks comanda todos os olhares, ficando uma plateia inteira subjugada à sua energia sem limites. Não fosse a sua música vibrante por natureza e estaríamos na mesma perante alguém que se entrega por absoluto ao que faz, dançando efusivamente e fazendo dos grooves contagiantes de Home Maker, Freakalizer ou NBPQ (Topless) um convite irrecusável para este baile que se deseja sem restrições. Difícil foi, aliás, desviar a atenção de Parks, sempre deslumbrante e nunca relutante em carregar cada tema e passagem vocal com uma postura aguerrida e uma fisicalidade que tão bem encaixa na sua estética. Sempre que larga um grito exasperante, marcha à volta do cenário ou recorre ao seu fiel violino (usado para incitar mosh pits, evocar o irish jig ou simplesmente dar aos seus temas todo um novo magnetismo), sentimos o seu carisma em pleno efeito. O chão abana, o público também e, ainda que durante apenas 45 minutos, partilhamos o mesmo solo de Sudan Archives e fazemos dos seus feitiços uma demanda.
As feridas de Loyle Carner, curadas no púlpito de Coura
Amor e ódio: (ir)mãos separados à nascença, lutadores no eterno conto de Radio Raheem em Do The Right Thing, capazes de quebrar ciclos e começá-los. Na arte de Loyle Carner, a mão do amor costuma ser a vencedora mais frequente. A sua viagem equilibra altos e baixos, o positivo e o negativo – tal como tão bem exemplifica em Hate, carta de arranque para a segunda segunda passagem por solo nacional. Acarinhá-lo como um rapper de cariz otimista não traduz, no entanto, uma afirmação representativa da sua música. Nunca lhe faltaram as palavras, o dom ou a honestidade para explorar a austeridade de certos tópicos nos seus dois primeiros discos, mas é com hugo que Carner mostra todas as suas feridas, na esperança de sará-las e seguir em frente.
Na noite em que o rapper assumiu protagonismo, deixa o peso da sua própria vida no microfone e faz de Coura o seu púlpito. Guia os olhares atentos com a sua poesia introspectiva, elevada, em parte, pela escala da instrumentação e pela crueza lírica que possui, meticulosamente fundida com as paletes de jazz e soul suportadas pela sua banda de apoio. Sem deixar de fora os seus anteriores êxitos (de Damselfly a Ottolenghi), Carner conduz-nos por passados traumáticos e preocupações correntes, do racismo à masculinidade tóxica e da violência sistémica à sua recente paternidade, que o levou a reconsiderar as suas próprias relações familiares conturbadas, ganhando um novo ponto de vista sobre o que é ser filho, mas também sobre o que significa ser pai. Da dedicatória que faz ao filho com Homerton aos beats suaves de Madlib em Georgetown, a carga emocional das suas histórias falam por si e nem o silêncio que o rodeia no poema que fechou a atuação constitui um obstáculo para os seus contos impetuosos. É difícil ficar indiferente ao britânico – a comoção propagada de uma ponta à outra do recinto assim o confirma. Cada um, à sua maneira, vai-se reconectando com a sua própria dor, com os dois pólos opostos que nos unem. Na sua estreia em Coura, Carner convida-nos a quebrar esse ciclo de amor e ódio. Na sensibilidade dos seus versos, encontramos a força para reescrever a nossa própria história.
O romantismo astuto de Fever Ray
A abrasividade de Karin Dreijir, a entidade por detrás de Fever Ray, atravessa as barreiras da arte. Tanto a solo como juntamente com o irmão Olof, nos já extintos The Knife, cada criação é sinónimo de heterogeneidade, encontrando nos rótulos de identidade e nas políticas de género e sexualidade um trampolim para a sua própria linguagem. Quer assuma “a estética mais sombria do disco de estreia auto-intitulado”, quer exiba “instrumentais sinteticamente hipnóticos de Plunge” ou tente encontrar neles um meio-ponto (algo que o recentíssimo Radical Romantics consegue atingir), as criações de Dreijir trazem à vida uma realidade tão alienígena como humana, fazendo-nos questionar onde acaba uma dimensão e começa a seguinte.
Foi preciso esperar cinco anos para Portugal voltar a ser destino dos rituais imponentes de Fever Ray, mas a palpitante What They Call Us volta a convidar o público nacional para este mundo paralelo como se nunca nos tivesse deixado. Debaixo de um magnético jogo de luzes (uma constante mais-valia nas atuações de Dreijir), vemos os seus hinos multifacetados a renascer com novos e refrescantes contornos. Neste ardente clube noturno, elencado por coreografias jubilantes e pela rebelião romântica (projetada por todos os recantos do recinto), When I Grow Up ganha um inesperado frenetismo, enquanto Shiver ou Kandy prescrevem uns passos de dança aos que ainda não se tinham rendido à sedução das harmonias e da sua produção camaleónica, mais despida de distorção do que nos acostuma. O contraste entre as diferentes fases musicais mantém-se, porventura, com o contagiante radicalismo de temas como To the Moon and Back ou Even It Out a contrapôr-se à deslumbrante penumbra de If I Had a Heart e Coconut, responsáveis por fechar o alinhamento com chave de ouro. Agora sim, com todos em uníssono, sem correntes e livres das nossas próprias prisões, no desejo imperativo de abraçar a tentadora chama do amor, em todas as suas formas e feitios.