Os Destaques Nacionais de 2023
De trabalhos promissores de nomes como MAQUINA., Xexa ou Margarida Campelo aos aguardados regressos de Glockenwise, Slow J, Filipe Sambado ou Nídia, os lançamentos dos últimos 12 meses celebraram o melhor que a música portuguesa tem para oferecer. Para o crítico musical e editor-chefe da CONTRABANDA, Rui Cunha, estes são os destaques nacionais de 2023.
Ana Lua Caiano – Se Dançar É Só Depois EP
Género: Alt-Pop; Electronic
Data de Lançamento: 05/05/2023
Editora: Chinfrim Discos
Algures nas entrelinhas entre o tradicional e o contemporâneo, surge Ana Lua Caiano com Se Dançar É Só Depois, um sucessor na mesma linha de Cheguei Tarde A Ontem que evoca novamente alianças inesperadas e meticulosas em tudo o que lhe desperte o fulgor criativo do imaginário: dos sintetizadores ao bombo, de coros vocais a sons oriundos de objetos do dia-a-dia. No cerne deste seu segundo EP (já em jeito de preparação para voos maiores, no primeiro trimestre de 2024), Ana Lua volta a ser uma espécie de one-woman band, desconstruindo os cânones folclóricos da música portuguesa pela via do experimentalismo, e fazendo das inquietações e receios do quotidiano combustível para a força indomável em todas as suas criações.
Beatriz Pessoa – PRAZER PRAZER
Género: Pop; Bossa Nova
Data de Lançamento: 03/03/2023
Editora: Discos Submarinos
“A arte do prazer (e de sentir o prazer) contamina todos os aspetos da nossa vida. Do amor às conquistas pessoais, nunca deixando cair a música”, Beatriz Pessoa faz de PRAZER, PRAZER uma tese vibrante sobre a importância de dar cor à vida e ânimo a todas as suas experiências, depositando a necessidade inerente da “satisfação humana na beleza do jazz e da bossa nova, do indie pop nacional e do passado dourado da MPB”, com o brasileiro Marcelo Camelo a ser uma peça-chave desta união de sons e países em torno de um desejo comum.
Conferência Inferno – Pós-Esmeralda
Género: New Wave; Post-Punk
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: Lovers & Lollypops
O segundo e mais recente longa-duração dos portuenses Conferência Inferno apresenta-se mais dançável e fervilhante, numa clara expansão sónica pelos territórios da new wave ou do synth pop, sem nunca abandonar por completo a sua essência mais gótica e post-punk. Algures entre a euforia, a tensão e o existencialismo, os vários temas do sucessor de Ata Saturna surgem de uma vontade inerente (e, neste caso, muito bem conseguida) de maturação, mas também de dar voz às inquietações perpétuas de um cenário pós-pandémico, transformando o refúgio pessoal que envolve Pós-Esmeralda num estado progressivo de êxtase partilhado com companheirismo.
Conjunto Corona – ESTILVS MISTICVS
Género: Boom Bap
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: Mar Records
Afastando-se da abordagem reinventiva que fez de G de Gandim uma surpreendente reviravolta sónica, ESTILVS MISTICVS marca um regresso às raízes dos Conjunto Corona, abraçando o boom bap lo-fi que inicialmente os afirmou como uma das maiores forças criativas do hip-hop português contemporâneo. Morte, feitiçaria e misticismo entrelaçam-se com um sentido refrescante de familiaridade e evolução, numa homenagem feliz e celebrativa (que se quer de bom humor, claro está) ao que tornou os registos mais meritórios de dB e Logos tão profundamente marcantes e diligentes.
Dispirited Spirits – The Redshift Blues
Género: Art Rock; Midwest Emo
Data de Lançamento: 10/03/2023
Editora: N/A
Ao longo de The Redshift Blues, a segunda peça colossal projetada pela mente visionária de Indigo Dias, vemos o vasto universo de Dispirited Spirits a assumir dimensões astrais, orbitando numa atmosfera moldada pelos padrões nobres do midwest emo, do rock progressivo e até mesmo do jazz. O músico nunca se desliga, contudo, dos pilares da emoção humana, cruciais para que cada explosão de instrumentação, juntamente com a voz cortante de Dias, tragam para primeiro plano a qualidade transcendental que faz de The Redshift Blues (e, claro está, de quem o concebeu) um marco tão promissor no panorama atual do rock português.
DJ Danifox – Ansiedade
Género: Batida
Data de Lançamento: 28/04/2023
Editora: Príncipe
O mais recente trabalho de DJ Danifox dá à batida tradicionalmente vibrante que costuma caracterizar os lançamentos da Príncipe um refrescante toque de introspeção, pontuando as batidas dançáveis e a produção maioritariamente esquelética de Ansiedade com uma melancolia e delicadeza cabais. Com o recurso à delicadeza do piano, aos sintetizadores e grooves contidos ou então à própria voz do artista (que combina a monotonia da fala com passagens mais melódicas), Danifox introduz a inquietação e a contenção na pista de dança, fazendo de Ansiedade um disco subtilmente libertador para quem queira dançar e, subsequentemente, afastar os problemas do dia-a-dia para segundo plano.
Filipe Sambado – Três Anos de Escorpião em Touro
Género: Art Pop; Hyperpop
Data de Lançamento: 29/09/2023
Editora: Altafonte
Filipe Sambado sempre teve nas suas mãos o dom inspirador da reinvenção. Assim tem sido com cada novo processo criativo e Três Anos de Escorpião em Touro não foge à regra, prestando-se a reflexões intimistas de todas as transformações pessoais e estilísticas que agora dão forma ao quarto álbum da artista. Respira-se, lá está, mudança em todos os seus ângulos: da recente reafirmação de género à parentalidade, sem esquecer as batalhas internas que tanto prendem Sambado à depressão como a arrastam em direção à emancipação. A entrada em cena do hyperpop só vem dar ainda mais alento ao clima de disrupção de normas e inclusividade que pauta todas as suas idiossincrasias, cimentando Três Anos de Escorpião em Touro como uma das metamorfoses mais arrojadas e empoderadoras num percurso artístico onde a conformidade nunca teve espaço (e bem) para existir.
Glockenwise – Gótico Português
Género: Alternative Rock
Data de Lançamento: 17/02/2023
Editora: Vida Vã
“Olhando de frente um Portugal muitas vezes esquecido e incorporando-o com uma enorme criatividade e apreço, os Glockenwise trazem-nos o seu álbum mais maduro até hoje, um digno sucessor de Plástico que encontra a sua força ao olhar para dentro”. E mais do que apenas uma desconstrução profunda daquilo que é (ou, talvez, muitos entendem ser) a portugalidade, que surge de mãos dadas com algumas das composições mais ousadas e progressivas de todo o seu catálogo, Gótico Português presta-se a um intrigante exame de identidade de tudo o que dá voz à banda de Nuno Rodrigues, Claúdio Tavares, Rafael Ferreira e Rui Fiusa. É uma celebração das suas raízes barcelenses e uma carta de amor reconfortante à margem, que muitos acabam por trocar pelo centro (em busca de oportunidades e horizontes), mas que será sempre, para os Glockenwise e para tantos outros, uma casa predileta.
Humana Taranja – Zafira
Género: Pop Rock
Data de Lançamento: 13/01/2023
Editora: Hey, Pachuco! Records
A espera entre o lançamento dos primeiros singles de Zafira e o produto final, apesar de longa, trouxe consigo um primeiro longa-duração dos Humana Taranja extremamente coeso e contagiante, onde se denota um aprimorar das suas bases musicais em todos os elementos que o compõem. Ao longo dos seus oito temas, desvenda-se um rock jubiloso e enérgico, em muito dinamizado pelas suas sensibilidades pop, onde a banda barreirense nos convida a entrar num mundo onde melodia e psicadelismo reforçam as emoções altivas e saudosistas do amor.
João Borsch – É Só Harakiri, Baby
Género: Pop Rock
Data de Lançamento: 26/05/2023
Editora: N/A
Cruzando todas as influências estilísticas que habitam dentro da sua mente errática, É Só Harakiri, Baby marca o regresso de João Borsch num pico desmedido de ambição e concetualismo, assinando o sucessor de Uma Noite Romântica com João Borsch no estilo de um álbum-musical. Explorando as extremidades autodestrutivas e os ciclos viciosos da condição humana que criam aqui um paralelo entre o sofrimento na Terra e os excessos do Inferno, o multi-instrumentalista do Funchal conduz tanto a sua narrativa central como as sonoridades que escolhe usar de mote com um enorme frenetismo, oscilando entre a opulência e a vulnerabilidade num registo altamente teatral que traduz um misto de emoções numa viagem imersiva que comprova a sua originalidade inapagável.
MAQUINA. – Dirty Tracks For Clubbing
Género: Krautrock
Data de Lançamento: 27/01/2023
Editora: Saliva Diva
Dos confins estilísticos do krautrock, surge Dirty Tracks For Clubbing, o disco de estreia dos MAQUINA. composto por quatro faixas infeciosamente erráticas do início ao fim, onde a urgência sentida na voz de Halison Peres, a repetição prazerosa dos motoriks, a distorção penetrante das guitarras de João e do baixo de Tomás Brito cruzam a linha entre o convite e a ameaça. Mais do que uma simples réplica da energia que a banda transmite nas suas atuações, o trio lisboeta atinge, logo à primeira tentativa, uma combustão irresistível de texturas ríspidas que encontram um porto seguro na ânsia rítmica e comunitária das pistas de dança.
Margarida Campelo – Supermarket Joy
Género: Jazz Pop
Data de Lançamento: 17/03/2023
Editora: Discos Submarinos
A viagem artística de Margarida Campelo, que já dura há cerca de uma década e meia, deu em 2023 um salto marcante, partindo de um papel colaborativo nas composições de Bruno Pernadas ou Joana Espadinha para se afirmar finalmente a solo. “O motivo é Supermarket Joy, um primeiro disco que, para além do seu valor transitório, faz um trabalho notável em revelar os ingredientes da sua poção secreta, algures entre o jazz, o disco e o neo-soul, com uma pitada de sensibilidades da música pop à eletrónica”. E mesmo que escolha manter acesa a sua chama colaborativa ao recrutar um talentoso elenco de amigos para concretizar a visão exuberante no cerne de Supermarket Joy, não restam dúvidas, ao fim dos seus 40 minutos, que Campelo não só merece estar no centro das suas próprias criações como se afirma convincentemente nesse mesmo posto.
Nídia – 95 Mindjeres
Género: Batida
Data de Lançamento: 06/10/2023
Editora: Príncipe
95 Mindjeres, três anos após o fulgurante Não Fales Nela Que A Mentes, presta a devida homenagem ao papel crucial das mulheres defensoras da liberdade do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), e que em muito contribuíram, direta e indiretamente, para o fim do domínio colonial português na Guiné-Bissau. Mesmo que atenue algum do poder incendiário da sua música, vemos aqui a ancestralidade de Nídia em plena força, num retrato claro de resistência transformado em ritmos percussivos, dentro das paletes expectáveis de kuduro e tarraxo, que ganham assim uma dimensão inegavelmente emotiva.
Slow J – Afro Fado
Género: Hip-Hop; Contemporary R&B
Data de Lançamento: 24/11/2023
Editora: Sony Music Portugal
Há muito que a ideia de uma só identidade nacional esbarra com a celebração da multiculturalidade, com a possível e saudável redefinição daquilo que consideramos ser tradicional. A temática, não sendo inédita, encontra no novo trabalho de Slow J um expoente celebrativo e profundamente inspirador. Do simbolismo da capa à incessante exploração das raízes portuguesas e angolanas do rapper e produtor setubalense, Afro Fado mergulha com audácia nas diferenças teóricas que separam as várias realidades da lusofonia e esbate-as na visão comovente de um futuro reluzente dominado pelo fusão e não pela divisão. E o que pode inicialmente parecer uma mensagem elementar, torna-se, nas palavras sábias de Slow J, numa verdade amplamente encorajadora e resiliente.
Xexa – Vibrações de Prata
Género: Ambient; Batida
Data de Lançamento: 27/10/2023
Editora: Príncipe
A apresentação de Xexa com o selo da Príncipe – algo lateral relativamente à identidade habitual da editora – mostra na perfeição a criatividade inebriante que habita em todos os recantos de Vibrações de Prata, tomando lugar em representações de ambiente e espaço ditadas por vinhetas imersivas, polirritmos sussurrantes e vozes celestiais. Ao construir uma viagem onírica pelas suas origens em São Tomé e Príncipe (e sem esquecer as ligações a cidades como Londres e Lisboa), cada segmento funciona como um portal e uma manifestação física da dimensão mental da artista, uma vez que o cuidado de Xexa com o design de som e a construção do seu próprio mundo artístico, sob a ótica do afrofuturismo, confere a Vibrações de Prata um fascínio inigualável.