O regresso estrondoso de Kendrick Lamar, a explosividade de Baby Keem e o dilúvio que inundou a noite inaugural: Primavera Sound Porto 2023 (Dia 1)
Apesar do número reduzido de concertos, o primeiro dos quatro dias do Primavera Sound Porto contou com casa cheia (e muita chuva) para voltar a receber o rapper norte-americano Kendrick Lamar no Parque da Cidade. Nove anos depois da sua última passagem pelo Porto, fez-se acompanhar de Baby Keem, que foi uma das principais atrações deste arranque da 10ª edição do festival, a par de artistas como Beatriz Pessoa, The Comet is Coming e Two Shell.
Beatriz Pessoa e o prazer da música lusófona
A arte do prazer (e de sentir o prazer) contamina todos os aspetos da nossa vida. Do amor às conquistas pessoais, nunca deixando cair a música, Beatriz Pessoa entende a importância de dar cor à vida e ânimo a todas as suas experiências. É, aliás, algo que reflete a própria identidade dos festivais, de os tornar num epicentro de celebração coletiva, num momento agregador de emoções, sentimentos e paixões várias. Tendo ganho a honra de arrancar estes quatro dias de festa no Primavera Sound Porto, a cantora e compositora portuguesa fez da alegria sensação máxima e da lusofonia um instrumento para lá chegar.
PRAZER, PRAZER, o apropriadamente intitulado último disco de Pessoa, deposita esta satisfação humana na beleza do jazz e da bossa nova, do indie pop nacional e do passado dourado da MPB. Na construção desta ponte entre os dois países, também encontramos o brasileiro Marcelo Camelo, peça-chave desta união de sons e que mereceu um forte agradecimento em palco. E se os originais que compõem este disco, como Dona da verdade, Valsa D’Água ou a faixa-título, até colocaram “a malta do Kendrick a cantar” nas filas da frente, então foi na sequência de covers em homenagem a Gal Costa e Rita Lee – Vaca Profana e Lança Perfume – onde esta herança artística mais se fez sentir. Após um anúncio de gravidez “à Rihanna”, deixa um apelo à audiência, em tom de despedida: “Aproveitem os concertos dos artistas portugueses, somos muito bons”. Com este embalar prazeroso que marcou uma nova receção aos festivaleiros, fica feito o convite.
Fotografias: Bruno Ferreira
Baby Keem, a promessa do hip-hop que carrega o futuro e a pressão às costas
Sejamos sinceros: não há muitos artistas que suportem a pressão do início de carreira de Baby Keem. Ser familiar direto de um dos nomes mais prestigiados da história do hip-hop certamente não ajuda. Com apenas 22 anos de idade, o seu palmarés é igualmente invejável. Um poderosíssimo disco de estreia que parece nunca cair de popularidade, presenças nos últimos trabalhos de estúdio de Kanye West e do seu primo mais velho Kendrick Lamar (uma peça instrumental no crescimento artístico e mediático de Keem) que ainda dão que falar, sem esquecer o Grammy que estes dois conquistaram há pouco mais de 12 meses. A sua música, porém, caminha numa direção algo oposta, redobrando a aposta em beats vibrantes, atuações expressivas e melodias capazes de mover multidões. No Parque da Cidade, e tal como na recente Big Steppers Tour, ficou a seu cargo aquecer os ânimos para aquele que seria o destaque indiscutível deste dia inaugural do festival.
Abrindo as hostilidades com trademark usa, Keem aterra no palco principal como um relâmpago. A receção é igualmente eletrizante, mas o rapper faz questão de que esta siga em crescendo pela totalidade da setlist. Da explosividade de MOSHPIT e STATS (saídos da sua mixtape DIE FOR MY BITCH) às faixas mais contemplativas de the melodic blue, como scapegoats e issues, o público mostra-se verdadeiramente pronto para o que der e vier. Para um novato nesta arte de dominar os grandes palcos internacionais, Keem já veste bem o papel de comandante. Vagueia pelo palco a ritmo de marcha, redige os seus versos com uma dose repartida de precisão e espontaneidade. Entre a iluminação hipnótica e a iminência de novos estrondos, vai mantendo a plateia unida de uma ponta à outra. Nem a inevitabilidade da chuva – que começa a deixar rasto enquanto range brothers ecoa nas colunas de som, antecipando-se um dilúvio antes da tão aguardada entrada de Kendrick Lamar em cena – corrompe a energia desta sua estreia no Porto.
O culminar do concerto já era expectável. Em jeito de falsa despedida (e o porquê de assim ser, fica para explicar mais tarde), Baby Keem liga novamente a ignição para dois temas criados em estrita colaboração com Lamar, vent e family ties. O recinto vira-se, expectavelmente, do avesso. O rapper, que transita cada vez mais de uma mera promessa para um dos principais nomes da sua geração de artistas, quase se faz passar por um veterano. Tal como Lamar há cerca de uma década, neste mesmo local, vai carregando o testemunho com a convicção de quem já tem o mundo na palma das mãos.

Baby Keem não permitiu a captação de imagens
O jazz intergalático dos The Comet is Coming que tornou a chuva (quase) irrelevante
Em pouco menos de um ano, o trio composto por Max Hallett, Dan Leavers e Shabaka Hutchings (nome proeminente da música britânica e, também ele, líder dos Sons of Kemet) tem-se acostumado ao público português. Na última edição do Vodafone Paredes de Coura, os The Comet is Coming transformaram o Taboão num “local de celebração do jazz”. No Lisboa ao Vivo, em março passado, repetiram a dose, apresentando formalmente o seu mais recente disco, Hyper-Dimensional Expansion Beam. Três meses depois, o frenetismo da sua música acabou mesmo por ser um remédio efetivo para temperar o entusiasmo dos dois pesos pesados desta noite inaugural do Primavera Sound Porto – nem o temporal que dominou quase todo o espetáculo foi um adversário à altura.
Para quem ainda não tinha desvendado um dos verdadeiros tesouros do jazz contemporâneo, o trio fez questão de cimentar, logo desde o início, os seus traços distintivos. Ao passo que fundem os mundos do rock ou da eletrónica com o seu estilo-mãe, vão deixando claro que, apesar do perfecionismo ciente nas suas composições, os The Comet is Coming nunca pecam pela ausência de improvisação. Nada melhor do que olhar para CODE, TECHNICOLOUR ou Summon the Fire como temas modelares desta sua imagem de marca. Volatilidade é, aliás, sinónimo dos concertos do grupo. Tão depressa vemos Leavers nos sintetizadores a comandar algumas das secções mais explosivas de qualquer faixa do trio, como presenciamos as baterias rompantes de Hallett ou os solos extasiantes de Hutchings no saxofone. A força dos seus sopros faz parecer que a vida do multi-instrumentalista depende disso, carregando consigo todo o peso do grupo que comanda e, por extensão, de todo o legado de um género musical que já teve, erradamente, a sua morte anunciada pelos mais céticos. Se tudo depender, realmente, destes respiros desesperados de Hutchings, da heterogeneidade instrumental dos The Comet is Coming e dos vários festivaleiros que quiseram alternar o hip-hop do palco principal com algo diferente, então o futuro do jazz está muito bem entregue.
Fotografias: Bruno Ferreira
A mestria de Kendrick Lamar em toda a sua glória
Quando se olha para os nomes deste primeiro dia do Primavera Sound Porto, é difícil ignorar que estamos perante uma oferta mais reduzida de artistas, se comparada com os restantes dias do festival. Aliás, é algo que se faz sentir no próprio recinto. São só dois os palcos abertos ao público: o novo e plano palco principal (Palco Porto) e o clássico anfiteatro do Parque da Cidade (agora rebatizado de Palco Vodafone). E, ainda assim, é precisamente esta noite inaugural que aparenta gerar mais expectativa entre os assistentes. A razão é clara e está na boca de todos. Há poucos artistas que conseguiriam centrar um dia inteiro de um evento à sua volta, ainda mais numa noite que já se previa dominada pelo temporal. Kendrick Lamar é indubitavelmente uma dessas exceções. Há pouco menos de uma década, já com Section.80 e good kid, m.A.A.d city em seu nome, era confirmado neste mesmo recinto como o futuro detentor do trono do hip-hop. Em 2023, volta ao Porto como perfeitamente imperfeito, a recusar a aura de salvador, após ter desvendado o homem por detrás da cortina com Mr. Morale & The Big Steppers, um quinto disco “tão complexo e contraditório como a experiência humana que nos define”.
O regresso de Kendrick Lamar não se pautou pela teatralidade da recente Big Steppers Tour – que, entretanto, se tornou na mais rentável digressão alguma vez liderada por um rapper. Também não se deu a mais uma extensão narrativa do seu último trabalho, uma “terapêutica peça de teatro” que bem poderia ter vingado (com ou sem alterações) no formato de festival. Em troca da grandiosidade dos cenários ou do hipnotizante jogo de luzes, vemo-lo, maioritariamente sozinho em palco, sem grandes adereços, na sua máxima força. Bastam os segundos iniciais de N95, logo a abrir o espetáculo, e tem uma maré humana à sua mercê.
Ao longo de quase 90 minutos de concerto, vamos sendo gratificados com uma celebração de todos os recantos preciosos da sua discografia. Count Me Out ou Die Hard vão recebendo reações quase tão fervorosas como os seus clássicos. E por cada viagem na máquina do tempo para os temas ancestrais de To Pimp a Butterfly (como Alright e King Kunta) ou de DAMN. (como DNA. ou HUMBLE.), Lamar aposta no inesperado e repesca os seus brilhantes versos em Nosetalgia de Pusha T (presença confirmada no terceiro dia do festival) e Sidewalks do canadiano The Weeknd (que tinha acabado de atuar no Passeio Marítimo de Algés na noite anterior). Já na reta final, dá-se a previsível – e, ainda assim, indescritível – reunião de primos, para uma segunda ronda de family ties, ainda mais explosiva do que a primeira.
Nas costas de Lamar, circulam pinturas do artista Henry Taylor. Mesmo para quem não conheça o seu trabalho, são vários os elos de ligação entre os dois contemporâneos: ambos naturais da Califórnia, ambos pioneiros na capacidade de provocar a reflexão através da promiscuidade das suas criações, ambos vozes incontornáveis da cultura negra norte-americana. Em certa medida, funcionam como uma lembrança de um passado não muito distante – que o próprio rapper faz questão de lembrar num raro discurso à plateia – em que nada disto era garantido: a fama, as digressões, os milhares de pessoas visivelmente impactadas que ultrapassaram todas as adversidades para ali estarem, à espera de ver a figura máxima do hip-hop contemporâneo a retornar ao recinto onde já tinha sido coroado. Os últimos 9 anos podem ter trazido a aclamação, o estrelato, novos picos de criatividade e, porventura, uma reavaliação do seu papel de redentor. A mestria, essa nunca o abandonou, e as memórias desta amostra praticamente perfeita da sua glória, também não serão esquecidas.

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A rave improvisada (e algo histriónica) de Two Shell
Enquanto promessas emergentes da música eletrónica britânica (ao lado de nomes como Bicep, Overmono ou Joy Orbison), os Two Shell carregam consigo uma criatividade patente e, acima de tudo, uma boa dose de peculiaridade. A sua identidade pública está “envolta em mistério”, a sua música carregada de euforia e as suas atuações são tão ou mais bizarras do que tudo à sua volta. Já depois da grande maioria dos festivaleiros terem terminado a primeira noite do festival em alta, assistindo à atuação de Kendrick Lamar, em todo o seu esplendor, a dupla londrina transformou o Parque da Cidade numa rave espontânea. Uma hora e meia de techno e hyperpop bastaram para animar os mais resistentes e justificar os presságios deixados pelo seu ainda curto historial. No alinhamento, destacam-se, por exemplo, temas fortes como home ou love him. Entre as vozes carregadas de efeitos ou um inesperado solo de violino, iam conduzindo comicamente o seu DJ set, quase sempre escondidos por detrás de uma cortina que se prolongava pela largura do palco. Poderá a bizarria do espetáculo ter acrescido a alguma reticência do público? Talvez. Fica, contudo, a lembrança de uma after-party imaginativa num recinto que, nesta altura, já se encontrava a meio gás.

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