O fim da chuva que deu lugar à diversidade, à celebração e ao protesto: Primavera Sound Porto 2023 (Dia 3)
Neste terceiro dia da 10ª edição do Primavera Sound Porto, que tanto trouxe uma meteorologia mais favorável como uma menor afluência ao recinto, a maioria dos principais concertos ocorreram fora do palco principal. Entre a classe do veterano Pusha T e o regresso aos palcos de Le Tigre, sem esquecer o groove de NxWorries, os contos sentidos de Wednesday e a teatralidade de St. Vincent, a diversidade voltou a calibrar, à semelhança da noite anterior, a banda sonora que se ouviu no Parque da Cidade.
A faísca de Margarida Campelo que foi celebrada entre amigos
A viagem artística de Margarida Campelo, que já dura há cerca de uma década e meia, tem sido interessante de acompanhar. Das mais recentes contribuições nas composições de Joana Espadinha ao seu lugar em grupos de culto da música contemporânea portuguesa (os Minta & the Brook Trout e os Cassete Pirata vêm logo à memória), 2023 fica marcado como o ano em que salta dos bastidores para uma carreira a solo. O motivo é Supermarket Joy, um primeiro disco que, para além do seu valor transitório, faz um trabalho notável em revelar os ingredientes da sua poção secreta, algures entre o jazz, o disco e o neo-soul, com uma pitada de sensibilidades da música pop à eletrónica. Se, por acaso, também faz lembrar Bruno Pernadas, é porque, para além da longa relação profissional entre os dois, o artista português ajudou mesmo com a produção deste seu primeiro longa-duração.
Na abertura do Palco Plenitude, é um dos muitos convidados de luxo. Aliás, a estreia a solo de Margarida Campelo no Primavera Sound Porto foi feita em torno de amigos e colaboradores, todos peças-chave no nascimento de Supermarket Joy: de Benjamim, Samuel Úria e Beatriz Pessoa na relva (esta última responsável pela inauguração do Palco Porto nesta semana de programação) a Raquel Pimpão nos teclados (também ela já tinha atuado com os seus Fumo Ninja no dia anterior). Ao som de Love Ballad ou Faz Faísca e Chavascal, fez-se da surpresa do sol um alento para uma celebração intimista das sonoridades retrofuturistas de Campelo. Algures entre o enternecimento das baladas e a efusão da dança, também o próprio espírito do concerto refletiu a natureza fundida das suas composições, num concerto que demonstrou, de igual forma, a sua capacidade em se rodear das pessoas certas, tanto na conceção de cada música deste acarinhado Supermarket Joy como na consagração da sua faísca inapagável num dos maiores festivais de música nacionais.
Fotografias: Bruno Ferreira
A caixa de memórias confrontacional dos Wednesday
“Há aqui alguém da Carolina do Norte?”, perguntava Karly Hartzman, vocalista dos Wednesday. A escassez das respostas, contudo, não prometia ser uma barreira para os norte-americanos passarem a sua mensagem. Aliás, o último disco do quinteto, Rat Saw God consegue fazer dessa relativa alienação uma oportunidade para tentar compreender algo que, apesar de nos ser alheio, continua a estar interligado à experiência humana. Cada tema “feito de camadas dispersas e contraditórias, episódios triunfantes e segredos humilhantes” e centrado nos detalhes e entrelinhas de cada passado. Até o cuidado estético do grupo “vem evocar muitas das tendências dominantes da década de 90, desde os sons do country, do indie rock e do shoegaze”.
Apesar das longas semanas de digressão a que a banda fez referência, foi difícil não ficar tocado pela música tumultuosa dos Wednesday. Tome-se Chosen to Deserve como expoente máximo, fazendo do desvendar dos recantos mais marcantes da vida de Hartzman um caminho para a intimidade – tudo isto, diga-se, a soarem como se os Pavement tivessem enveredado pelas sonoridades do country. São também estes temas mais despidos que vêm reforçar os picos de intensidade demonstrados por Hot Rotten Grass Smell e Bath County, por exemplo, onde as guitarras rompantes assumem o papel principal.
Entre canções, a vocalista volta a analisar o público e a recolher observações. Se, por um lado, comenta que o Palco Vodafone bem poderia ser o local de um concerto nos seus sonhos, então Hartzman dedica a catártica Bull Believer – que encerrou o alinhamento – à comunidade LGBT e a todas as mulheres que sofrem as consequências das recentemente aprovadas leis anti-aborto nos Estados Unidos – não foi a última vez que se iriam ouvir estas importantes preces neste terceiro dia de festival. À medida que nos desfazíamos numa derradeira descarga de tensão, os gritos repetidos de “finish him” foram ganhando cada vez mais eco. Por momentos, este mundo trágico em que vivemos, extraordinariamente encabeçado pelas narrativas sentidas dos Wednesday, ganhou uma nova réstia de esperança.
Fotografias: Bruno Ferreira
Pusha T, o porteiro do coke rap que nos ensinou a receita do seu ofício
Da última vez que o norte-americano Pusha T pisou solo nacional, ainda plantava a semente para aquele que seria o rejuvenescimento de uma carreira digna dos livros de história. Se hoje olhamos para o coke rap e o associamos quase instantaneamente com o rapper, é porque os seus contributos falam por si. À medida que Push caminha lentamente em direção ao Palco Super Bock, já com Let The Smokers Shine the Coupes a ecoar nas colunas de som, sentimos a sua confiança no ar. Por detrás deste ego inflamado, porventura, surgem mais do que argumentos que o seguram. Enquanto DAYTONA “realmente o afirmou enquanto artista a solo”, o seu invejável sucessor, It’s Almost Dry veio tentar unir todos os seus momentos de glória, com Pharrell Williams e Kanye West num “autêntico duelo de titãs” para ver quem consegue reacender mais a chama de King Push. A julgar pela sua estreia no Porto, esta nunca se apagou. Aliás, está mais acesa do que nunca.
Dito isto, não foi difícil adivinhar a banda sonora. Todos os principais êxitos dos seus dois últimos álbuns não só marcaram presença, como souberam entreter a plateia. Se Brambleton e Neck & Wrist ficaram próximos de matar a saudade do catálogo fenomenal dos Clipse (ainda não se avizinhava a chegada de Grindin’ nesta fase do espetáculo), então Dreamin’ of the Past e Diet Coke trouxeram a química inegável entre West e Push para a dianteira. Por outro lado, a jogada dupla de If You Know You Know e The Games We Play – pontos fortes de DAYTONA – foi o mais próximo que Pusha T teve de causar uma erupção entre o público. Entre os seus temas a solo, não deixa cair alguns dos seus versos mais memoráveis, como os que criou para as icónicas Runaway e So Appalled – saídas de My Beautiful Dark Twisted Fantasy – ou Move That Dope de Future. Novamente, o seu hypeman não precisou de incentivar ninguém: a energia propagou-se por si.
Não é nenhuma novidade que a peça-chave dos concertos de Pusha T passa precisamente pela atitude que o rapper carrega consigo e não pela intensidade que possa criar. O fator-surpresa que se desenrola quando o seu contemporâneo Kendrick Lamar espanta o público do Porto com o seu salmo em Nosetalgia também não tem lugar aqui. A previsibilidade dos seus concertos até acaba, inesperadamente, por ser uma das suas maiores qualidades. Se Pusha T está para a cocaína como Georgia O’Keefe está para as flores, também é verdade que ambos os artistas conseguem sempre atacar o seu objeto artístico de eleição como quem está a acabar de desvendar o seu fascínio. À medida que vai trocando olhares fugazes com os fãs mais dedicados, vêm-se sorrisos cerrados e um claro entusiasmo, dignos de quem ganha a noite a partir do momento em que aterra no recinto. Cada verso recitado pelo rapper relembra-nos disso mesmo e, por mais que o tempo avance, Pusha T continuará a vingar em terreno fértil.
Fotografias: Bruno Ferreira
NxWorries e os simples prazeres da vida
Anderson .Paak é, indiscutivelmente, uma das figuras do momento, dentro e fora do R&B. O seu carisma também não engana: o mundo está perante uma superestrela, com todo o seu glamour e talento. Assim o tem provado nos últimos anos, com discos como Malibu, Oxnard ou Ventura a colocá-lo no mapa do mainstream. Mas antes de todo o triunfo e da comercialidade, surgia NxWorries, uma espécie de casamento ideal entre o soul sedutor de .Paak e a produção rústica e sempre recheada de samples do produtor Knxwledge, tal como outras colaborações clássicas editadas pela Stones Throw. Ainda a gozar do sucesso dos Silk Sonic (dupla formada com Bruno Mars), o destino ditou que o futuro do artista permanecesse na ótica das superequipas. Pode ter sido preciso esperar sete anos para um eventual sucessor de Yes Lawd! (com lançamento provisório para este verão), mas este regresso ao ativo da dupla só demonstra que a química inicial não se perdeu com a subida ao estrelato.
Knxwledge bem pode ter encontrado o seu próprio Lenny Kravitz (um dos vários artistas interpolados nas secções transitórias do espetáculo), mas a verdade é que a receita de NxWorries só resulta com a soma das suas respetivas qualidades. Se cabe ao produtor estabelecer os grooves com os seus instrumentais, então fica .Paak com a tarefa de carregá-los de letras ousadas e melodias irresistíveis. Nesta matéria, são ambos especialistas. Fale-se de Get Bigger, Best One ou Lyk Dis, não esquecendo a dose dupla de temas mais recentes (Daydreamin e Where I Go), conseguem embalar o público numa roda livre feita da alegria de viver e da suavidade da sua música.
Juntos, conduzem a atuação com calma, estilo e muita excentricidade – que vai muito para além do chapéu de pelo de Anderson .Paak, do seu microfone ondulado ou das repentinas mudanças de guarda-roupa a meio do espetáculo. Para a reta final de Link Up e Suede, instalam uma festa improvisada em pleno Palco Vodafone. Enquanto o artista se junta a dezenas de mulheres em palco para uma troca de passos de dança lascivos, a plateia rende-se ainda mais ao seu enorme sentido de humor. Podem ter sido vários os festivaleiros que vieram pela curiosidade de ver um titã contemporâneo do R&B ao vivo, esperando algo mais comercial, digestível, ao estilo dos múltiplos hinos de Anderson .Paak. Do início ao fim, presentearam-nos com uma cerimónia rica em luxúria, insanidade e subtileza. Foi NxWorries na sua essência plena – os fãs agradecem.
Fotografias: Bruno Ferreira
O regresso a casa de St. Vincent
Ainda os Pet Shop Boys tocavam os seus últimos temas no Palco Porto e aparecia Annie Clark, no ponto oposto do recinto, ainda a encarnar toda a teatralidade do seu último disco. Da nostalgia assumida pelo psicadelismo da década de 70 (sucumbindo aos ritmos do rock, do blues e do funk) aos sentimentos expressos sobre a relação conturbada que tem com o seu pai (e como esta evoluiu durante o seu encarceramento), Daddy’s Home trouxe uma quebra estilística para os fãs de longa data, por muito que talvez seja um dos trabalhos mais triunfantes de St. Vincent. Para quem não ficou convencido pelos seus últimos trabalhos, a sua segunda passagem pelo Primavera Sound Porto veio esbater quaisquer dúvidas.
Não é nenhuma novidade que a norte-americana transforma os seus concertos em espetáculos verdadeiramente performativos, do início ao fim. Conduz cada música do seu deslumbrante repertório com a rebeldia de uma verdadeira artista de rock e a devoção de quem pretende deixar tudo em palco. Se temas como Down, Pay Your Way in Pain e Cheerleader são projetados pela plateia como relâmpagos, então Fast Slow Disco e The Melting of the Sun fizeram desta noite de sexta-feira uma entusiástica celebração coletiva. Os seus muitos fãs, a par de Annie Clark, desfazem-se em saltos e danças espontâneas, enquanto devolvem cada mantra com a urgência de um respiro. Até os restantes membros da sua banda se vão rendendo à festa, trocando duelos arrebatadores nas guitarras e solos eletrizantes na bateria. Entre os brindes à cidade do Porto (feitos em bom português, diga-se de passagem) e a emocionante deslocação à primeira fila para cantar New York a plenos pulmões, fica uma certeza de que, no “milagre” deste momento passado em comunhão, St. Vincent está em casa.
Fotografias: Bruno Ferreira
A pertinência do punk exasperado dos Le Tigre
18 anos passaram desde que Kathleen Hanna, Johanna Fateman e JD Samson deixaram de estar no ativo, mas pouco (ou nada) mudou desde então. A luta pela igualdade de género continua sem produzir efeitos significativos, legislações que dificultam ou até proibem o aborto, a imigração ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo estão de novo na ordem do dia, os direitos da comunidade LGBT e das minorias continuam a ser ameaçados dia após dia. E, mesmo num crescente clima de revolta e ativismo constante, a mensagem política dos Le Tigre assume-se tão ou mais relevante do que já era em 2003.
É num meio ponto entre a diversão e a fúria, como sempre foi habitual, que os norte-americanos voltam aos palcos como se nunca os tivessem deixado. De um lado, o punk dançável, as roupas vibrantes ou letras de músicas como TKO ou Hot Topic estampadas nos gráficos utilizados na atuação como se de uma sessão de karaoke se tratasse. Por outro, a vontade (e necessidade) incessante em retratar as injustiças do mundo e as causas que lhes dão voz. Se os hinos do trio ao feminismo como FYR, o debate sobre o possível valor misoginista da filmografia de John Cassavetes causaram algum desconforto, ainda bem. Se o apelo a que os possíveis abusadores sexuais levantassem a mão provocou qualquer tipo de incómodo, então considere-se o seu propósito como cumprido. Para os Le Tigre, o importante é não deixar cair as temáticas e todo um passado (e presente) de inquietação no esquecimento. Enquanto Deceptacon provoca uma fulminante reação final do público, a banda que nunca foi “levada a sério” – apesar de serem os responsáveis criativos de tudo o que era produzido pelos Le Tigre, como Hanna fez questão em relembrar – volta a ganhar o controlo da narrativa, fazendo das suas palavras um tão necessário grito de guerra em tempos incertos.