O temporal que voltou a ser derrotado pelo poder da música: Primavera Sound Porto 2023 (Dia 2)

Após um arranque maioritariamente focado no hip-hop majestoso de Kendrick Lamar e Baby Keem, o segundo dia da 10ª edição do Primavera Sound Porto trouxe consigo um novo dilúvio e um leque variado de destaques. Com o regresso impetuoso da espanhola ROSALÍA e a eletrónica unificadora do britânico Fred again.. a dominarem os dois principais palcos, coube à música radiante de Japanese Breakfast e Alvvays, bem como ao pop desconstruído de Jockstrap e Fumo Ninja, trazer alguns dos concertos mais memoráveis da semana.

A nuvem sedosa e volátil de Fumo Ninja 

Ainda o recinto dava as boas-vindas aos festivaleiros neste segundo dia de programação, novamente sob a ameaça intimidante de fortes aguaceiros, e já se avistava a presença dos portugueses Fumo Ninja, de costas para o mar, a estrear um Palco Porto algo enlameado. O grupo composto por Leonor Arnaut, Norberto Lobo, Ricardo Martins e Raquel Pimpão dispensa rótulos fixos. Assim nos ensinou no seu intrigante disco de estreia, Olhos de Cetim, onde rapidamente se avistam “fusões com o jazz ou encontros com o mundo relaxante e lo-fi do bedroom pop”. Entre esta galáxia e a próxima, o quarteto forma toda uma amálgama de sons e ideias, deste mundo e de outros, que tão bem sabe enternecer os seus ouvintes com melodias aveludadas, como prendê-los com refrões prazerosos e golpes inesperados.

Num registo ao vivo, esta vontade de se soltarem acaba por falar um pouco mais alto, especialmente em comparação com as versões de estúdio. Juntos, embarcam em jam sessions espontâneas no meio dos temas, trocam solos aventureiros na bateria ou no baixo e vão, momentaneamente, desfazendo-se da aparente incorruptibilidade da sua faceta mais pop. Quando retomam o controlo (se é que sequer o perderam), fazem-no de um jeito igualmente estimulante. Com os mantras de Chapada de Deusa ou Andróide, os feitiços dos Fumo Ninja ganham um novo alento. Ouvem-se as vozes dos assistentes mais ávidos e, de repente, a banda que passa tanto tempo nas nuvens, reconecta-se com agrado ao solo que todos os corpos partilham.

Fotografias: Bruno Ferreira

A diligência sónica dos Alvvays

Foi preciso esperar meia década para ver a meticulosa renovação dos Alvvays com Blue Rev, um disco repleto de dinamismo, a produção ora densa como plácida, cada melodia “imediatamente gratificante” e as emoções que provocam tão intensas como polarizadoras. Muitos dos traços originais dos canadianos permanecem intactos, isso é certo, mas com a explosividade que até então tinha andado submergida por outros fatores. No seu regresso a Portugal (quatro anos depois da sua atuação no Vodafone Paredes de Coura), é talvez este o elemento que, apesar da dificuldade acrescida em transportá-lo para um cenário ao vivo, surge aqui como o elemento impulsionador dos novos temas, que não só se assumem tão ou mais contagiantes do que os clássicos do grupo como mantêm a intensidade elevada do início ao fim do alinhamento.

Temas mais animados como Pomeranian Spinster, Pressed e After The Earthquake (oito meses depois, continua a revelar-se uma “dose de dinamite musical” sem data de validade à vista) não desestabilizam a repercussão dos instantes mais oníricos. Na arte de provocar abalos emocionais capazes de unificar uma plateia inteira, os Alvvays já são mestres. Entre a doçura da voz da vocalista Molly Rankin e o brilhante trabalho instrumental dos restantes membros, o difícil foi mesmo não ficar comovido ao som de Dreams Tonite, Not My Baby ou Belinda Says (com uma mudança de oitava na segunda metade da canção capaz de revitalizar qualquer um).

A claridade que deu as boas-vindas ao quinteto voltou a emergir com elegância, após mais uma chuvada passageira neste segundo dia de festival, para Fourth Figure e a incontornável Archie, Marry Me, um pico festivo que certamente enalteceu as últimas “malhas”. O sol voltou a nascer por entre as nuvens, acompanhado por uma banda que já domina a arte da intemporalidade. Ao passo que Lottery Noises marcava a despedida inevitável dos Alvvays (por agora), ficam os muitos fãs, também eles, renascidos, com a memória futura de um concerto absolutamente monumental que traduziu e até avultou toda a crueza e o sentimentalismo da sua música.

Fotografias: Bruno Ferreira

O prazer de viver (e de sentir) com Japanese Breakfast

Durante cerca de uma hora, a estreia adiada de Japanese Breakfast no Primavera Sound Porto pode bem ter sido um dos acontecimentos mais radiantes das últimas edições do festival. A vocalista (e agora escritora de um best-seller) Michelle Zauner converte-se, como já se fazia antever, no epicentro de todo o serão, capaz de cativar até o ser humano mais apático a partilhar um pouco da sua alegria. Ora saltita efusivamente ao som de Be Sweet, ora torna o gongo num instrumento de exaltação com Paprika, ora se recolhe à vulnerabilidade de Kokomo, IN. Qualquer que seja o estado de espírito delineado pelas suas palavras, conduz todo o concerto com uma expressividade contagiante e genuína.

Se Jubilee serve como o guião mais apto para conduzir esta festa coletiva do início ao fim, é porque Zauner fez deste seu último disco um momento de superação pessoal. Sente-se isso, sobretudo, quando vai revisitando os êxitos do passado. A voz por detrás de Boyish ou In Heaven é indubitavelmente a mesma, as sensações também. O que este desbloqueio lhe trouxe, contudo, é a oportunidade de realmente se soltar em público, deixando a emoção fluir por tudo o que esteja vivo. Agora, melhor do que nunca, o antes e o depois de Jubilee surgem como duas metades da mesma moeda. Quando The Body Is a Blade e Posing in Bondage atiram a plateia para um poço de melancolia, surgem Slide Tackle e Everybody Wants to Love You para nos projetar no sentido oposto.

Na verdade, este poder transportador das emoções e as viagens que daí decorrem sempre estiveram no coração da arte de Japanese Breakfast. Com o entusiasmo avultado de Zauner, a joie de vivre fica sem limite, incapaz de se conservar no corpo humano e, ainda assim, dependente das suas manifestações e da forma como extravasa para o exterior. Depois desta celebração jubilante (reforçada pelo fim da frustração causada pelo cancelamento ocorrido no ano anterior), o mais seguro é declarar a missão como cumprida.

Fotografias: Bruno Ferreira

Fred again.. e a procura incessante pela música com alma

Numa era em que as redes sociais são cada vez mais sinónimo da experiência humana, o conceito de vida real corre o risco de se tornar progressivamente obsoleto. Afinal, o que separa a vida que escolhemos partilhar daquela que efetivamente levamos? Estará essa linha ténue entre o real e digital corrompida, sem um ponto de viragem no horizonte? O debate é expectavelmente interminável. Para Fred Gibson (amplamente conhecido como Fred again..), é a Actual Life que dá forma a toda uma trilogia de discos iniciada em plena pandemia. Em estúdio, articula colagens sónicas com tudo o que estiver ao seu alcance: excertos de voice memos, faixas acapella e de tudo um pouco. É na “bricolage digital” de Fred again.. que a sua música se reconecta com o mundo exterior, numa tentativa edificante, embora repetitiva, de colocar o amor e a união como o propósito máximo da arte. A sua rápida ascensão ao estrelato, um lugar no encerramento da última edição do Coachella (ao lado de Skrillex e Four Tet) e um afamado DJ set no Boiler Room certamente apontam para a eficácia da mensagem. Na sua estreia em Portugal, o cenário repetiu-se, provocando uma das maiores enchentes desta edição do festival.

Gibson era uma das duas pessoas em palco (fez-nos “adorar” o seu amigo Tony), mas este foi um autêntico one-man show. A pouco e pouco, cada tema era reconstruído no local, com o recurso a teclados e ao seu fiel MPC, perante uma plateia surpreendentemente paciente com os crescendos prolongados. Ao passo que circulam vídeos alusivos aos samples e ao seu vasto diário musical, formava-se Turn On The Lights again.. em torno da áspera voz de Future, 070 Shake leva a plateia ao rubro com Daniele (smile on my face) e Baby again.. revê-se em Lil Baby como peça central de uma das explosões mais entusiásticas de todo o concerto. Durante o concerto, começa-se a aperceber que, para a sua música ser realmente unificadora, torna-se imprescindível este contacto pessoal tão próprio do universo da música ao vivo. Se, em disco, as criações de Fred again.. podem perder valor na sua esporádica falta de alma, é nesta união solene entre Gibson e a maré humana presente no Palco Vodafone (em muito amplificada pelo seu carisma indiscutível e pela facilidade com que se apodera do entusiasmo dos seus fãs) que o britânico consegue efetivamente cumprir o seu objetivo.

Fotografias: Bruno Ferreira

O regresso imperativo da superestrela ROSALÍA

Faz praticamente quatro anos desde que, neste mesmo recinto, o “fenómeno” ROSALÍA já fazia adivinhar o seu futuro domínio global. Uma voz indomável, uma presença em palco absolutamente magnética e um espantoso El Mal Querer para promover e deliciar fizeram da sua estreia em solo nacional, à época, um presságio do estrelato que acabou por surgir. O destino assim o quis e, com MOTOMAMI ainda a causar réplicas no esquadrão mainstream da indústria musical, a artista espanhola sofreu outra transformação artística, ao passo que conquistou (e provocou) por completo as massas, “sem deixar de marchar ao seu próprio ritmo”. De Barcelona para o mundo, e do mundo novamente para o Porto, o centro das atenções deste segundo dia de festival era mais do que evidente, atraindo uma plateia radicalmente distinta da que encontrámos no dia anterior no concerto fenomenal de Kendrick Lamar, mas igualmente extasiada por ver a sua entrada em cena.

Cada instante do espetáculo surge com um misto de enorme satisfação e tontura, com cada peça e adereço em constante movimento. Grupos de dançarinos percorrem, destemidamente e sempre em sincronia, o terreno como se de um desfile de moda se tratasse. Um cameraman entra e sai repetidamente do ângulo de visão, filmando a par e passo cada movimento mecânico. Neste frenesim, ROSALÍA, com capacete e óculos a rigor, não só comanda o caos, como o propaga pela imensidão do recinto. Tão depressa dançamos a seu lado com SAOKO e BIZCOCHITO como a vulnerabilidade toma conta do ambiente, ao som de HENTAI e Hero (originalmente interpretada por Enrique Iglesias).

Sendo poucos os instantes em que a comoção destrona a excentricidade, o antagonismo de MOTOMAMI ainda consegue transparecer neste formato mais compacto da sua última digressão. Alterna-se entre “o contemporâneo e o tradicional, o seguro e o arriscado”, mas a energia permaneça sempre em alta. Para deceção de alguns, não houve Tuya no alinhamento, mas o seu lançamento (meros minutos antes de estacionar em palco) foi a “notícia feliz” que deu ainda mais alento a esta tour de force da artista espanhola. DESPECHÁ e BESO (saída de RR, o EP que editou recentemente com o seu noivo, Rauw Alejandro), como seria expectável, prestam-se a refrões cantados de pulmões erguidos, num eco contínuo entre as duas frentes do concerto. E se DE AQUÍ NO SALES e BULERÍAS trazem finalmente o flamenco para primeiro plano, a implacável CUUUUuuuuuute encerra a atuação entre o experimentalismo da produção e a divina voz de ROSALÍA, por fim, no seu máximo poder. Enquanto se dirige para o backstage, coberta de suor e circundada pela restante equipa, torna-se indiscutível que estamos perante uma absoluta mestre de cerimónias, com todo o profissionalismo que daí decorre, num regresso ao Parque da Cidade que, apesar de consideravelmente distinto da primeira vez que se cruzou com o festival, mantém quase todo o seu ímpeto.

Fotografias: Bruno Ferreira

Jockstrap e o futuro camaleónico da música pop

O convencional não é amigo da ambição, nunca foi e nunca será. Desafiar as rotulações estilísticas, quebrar limites e estereótipos é tudo o que, em teoria, a música pop tenta atormentar. Vivemos, felizmente, numa era em que a música pop se vê mais criativa do que nunca, desconstruída e camaleónica ao ponto da rutura. Se os Jockstrap, com apenas um álbum em seu nome (I Love You Jennifer B), já carregam “mais imaginação do que muitas discografias inteiras”, é porque saciam desta desconstrução de tudo o que lhes é dado como padronizado. Numa ponte entre vários mundos, vão fundindo a eletrónica e a acústica, a ternura da voz de Georgia Ellery e a produção fulgurante de Taylor Skye, ao ponto que “nenhuma ideia é demasiado bizarra para não caber” na bolha surrealista dos britânicos. É com esta mesma sede de inovação que a dupla regressa a Portugal, após uma passagem em novembro passado pela última edição do Mucho Flow em Guimarães, para uma amostra irresistível da sua singularidade.

Em palco, a natureza imaginativa da dupla fica ainda mais evidente. Enquanto Skye se recata na panóplia de equipamentos que traz consigo, Ellery vai dividindo funções e captando o olhar de todos com danças libertadoras e trocas harmoniosas de instrumentos. Para Neon, por exemplo, resgata a guitarra acústica, entretanto distorcida e mais densa. Já Glasgow vê a entrada em cena do violino (uma imagem de marca de Ellery nos Black Country, New Road, banda que também integra), que irrompe elegantemente como o clímax de uma balada, já de si, encantadora. Desengane-se, no entanto, quem achasse que um concerto dos Jockstrap não seria feito de complementaridade. Da elegância destes momentos quase fantasiosos, emergem outros tantos eufóricos, impulsionados por canções como Debra ou as versões retrabalhadas de Jennifer B e 50/50. Esta última provou-se colossal com os muitos fãs que quiseram passar a madrugada a seu lado, transformando os últimos instantes do concerto dos Jockstrap num derradeiro pico retumbante de frenetismo coletivo.

É, aliás, curioso ver que, entre a euforia dos temas processados pela misturadora estilística dos Jockstrap, a dupla fica algo surpreendida com a hiperatividade que conseguiu propagar por toda a plateia. A alternância constante entre o minimalismo e o caleidoscópico, o simples e o experimental afirma-se indiscutivelmente como o ar que respiram. Ainda assim, e por detrás da criatividade incansável, estão dois dos mais talentosos nomes do atual panorama musical britânico que reconhecem na diversão o elemento congregador das suas criações e a chave que os levará rumo ao infinito. 

Fotografias: Bruno Ferreira

No terceiro dia do Primavera Sound Porto (9 de junho), atuaram os cabeças-de-cartaz Pet Shop Boys, ao lado de artistas como DARKSIDE, NxWorries (compostos por Anderson. Paak e Knxwledge), Le Tigre, Pusha T, St. Vincent, Tokischa, Wednesday e a portuguesa Margarida Campelo. Segue toda a cobertura da 10ª edição do festival através do nosso website e nas redes sociais da CONTRABANDA.

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