Vodafone Paredes de Coura 2023 (1º Dia): Um aniversário celebrado com os hinos do presente

O arranque da 30ª edição do festival foi tão especial como se previa. Entre a pista de dança frenética de Jessie Ware e dos Bicep que não deixou ninguém indiferente, coube a bandas como os Squid, Dry Cleaning e Snail Mail introduzir o público português a uma nova e promissora vanguarda do rock alternativo.

30! É este o número redondo que marca o início de uma nova e especial edição do Vodafone Paredes de Coura, um evento, por si só, digno de celebração. Um paraíso temporário (ou até mesmo “couraíso”) emoldurado pelo anfiteatro natural do Rio Taboão, sem esquecer a cativante terra que dá nome ao evento e palco às noites do Sobe à Vila, e ainda uma comunidade afável, heterogénea e extraordinariamente fiel ao festival. Acima de tudo, vive-se em Paredes de Coura um espírito irreplicável que apropriadamente se batiza como “habitat natural da música”. São 30 anos de história, repletos de concertos históricos, memórias eternizadas e, claro está, processos evolutivos, também eles inerentes a qualquer organização do seu estilo. O crescimento registado dos tempos mais recentes fica patente nos números de agosto do ano passado, tendo igualmente registado novos máximos em investimento e vendas de bilhetes, com “cerca de 115 mil pessoas ao longo dos cinco dias da programação”.

Passa por aí parte do sucesso de Coura. Ainda que mantendo a sua imagem de marca e apelando aos festivaleiros mais tradicionais, as últimas edições do festival têm feito questão de abraçar um leque estilístico diferenciador. Enquanto o hip-hop parece finalmente começar a vingar no Taboão, a música pop e eletrónica vão ganhando cada vez mais espaço num festival que tenta perpetuar a magia que o público lhe atribui. Tudo isto, sem deixar de alinhar variedade e transversalidade na sua programação.

A monotonia prazerosa de Dry Cleaning

Poucos dias tinham ocorrido desde a primeira passagem dos Dry Cleaning por Portugal quando os britânicos fizeram questão de desvendar Stumpwork, um segundo álbum gravado quase em sucessão do lançamento de New Long Leg, mantendo a mesma fórmula sem alterações de maior. Nas entrelinhas do absurdo e da mundanidade, e numa intrigante mistura entre o post-punk e o spoken word (as comparações com os The Fall são mais do que apropriadas), vive a música sardónica do quarteto, sempre regulada pela voz carismática (ainda que monocórdica) de Florence Shaw e a espontaneidade das suas reflexões.

Num registo ao vivo, e na sua estreia em Coura, mantêm este balanço entre diversas vertentes, com os próprios membros do grupo a contraporem-se entre si. Por cada exaltação visível do guitarrista Tom Dowse, temos Shaw e os seus movimentos reprimidos, disciplinados, não menos magnéticos e, mesmo assim, tão fiéis ao seu registo maioritariamente robótico. Entre músicas, também ela se rende à emoção, algo espantada por abrir esta rentrée, num aniversário tão especial para os presentes. São, de certa forma, estes breves instantes de espontaneidade que vão quebrando a rotina a que o próprio grupo se rege e, porventura, fazendo com que os mais céticos se rendam à sua sonoridade polarizadora. Nesta transposição dos Dry Cleaning do estúdio para os grandes palcos, existe, também aqui, espaço para números dispersos. Temas eletrizantes como a idolatrada Scratchcard Lanyard colocam, expectavelmente, as filas da frente ao rubro, algo replicado com o mesmo sucesso em Viking Hair e Magic of Meghan (saídas dos EPs que precederam New Long Leg). Já as recentes Don’t Press Me e Gary Ashby introduzem a melodia e o conforto em bruto, num meio ponto entre a carga de outrora e odes menos disruptivas como a sincera Strong Feelings. Tinha ficado a sensação, há pouco mais de um ano, da enorme destreza com que cativam plateias numerosas. Tendo tido a dura tarefa de estrear o palco principal logo no dia de abertura, onde a sua confiança se tornou ainda mais evidente.

As odes de Snail Mail aos corações partidos (e perdidos)

Há muito que Lindsey Jordan se debate com a ideia de uma audiência. O tom confessional do brilhante par de discos já editados, certamente complica a sua transição para um formato ao vivo, deixando o projeto artístico e a voz que dá vida a Snail Mail sem possibilidade para qualquer tipo de distanciamento. A ânsia, o amor e a juventude pelos olhos de Jordan são seguramente transversais à experiência humana, mas carregam consigo a pessoalidade de qualquer confissão complicada de sentir, e até mesmo de verbalizar. Assim, se fez sentir na sua primeira passagem por solo nacional, na edição de 2019 do Primavera Sound Porto, onde a timidez e a pressão da sua repentina internacionalização eram evidentes (onde à época, estava prestes a comemorar o seu vigésimo aniversário).

Foi preciso esperar quatro anos para a norte-americana voltar a cruzar caminhos com Portugal, desta vez mais a norte e com os temas mais assertivos e apurados de Valentine ainda a deixarem a sua marca. Denota-se, logo à partida, uma manifesta maturidade em cada ação, talvez decorrente da experiência, que vem contrariar algum do historial de inconsistência a que os concertos de Snail Mail estão associados. Enquanto faixas mais “pop-cêntricas” como Ben Franklin, Madonna ou Heat Wave fomentaram refrões ecoados, foram as instâncias mais melancólicas de Speaking Terms ou Pristine que trouxeram a crueza catártica de Lush para primeiro plano. Neste lindo cenário que afirma ser o exato oposto do seu país-mãe, Jordan consegue convocar a potência em bruto das suas melhores criações e, pelo meio, encontrar na audiência a compaixão necessária para conseguir ultrapassar a sua própria inibição. Talvez continue a não se sentir totalmente compreendida em palco, mesmo com todo o carisma que carrega. Talvez ainda se sinta alienada pelo amor que diz sentir pela sua arte sempre que por aqui passa. Cada geração, contudo, precisa das suas vozes unificadoras. A provar pela sensibilidade patente deste concerto, Lindsey provou ser uma delas.

A permanente reinvenção dos veteranos Yo La Tengo 

Num dia inaugural pautado pelos sons da atualidade, os veteranos Yo La Tengo regressam a Coura, 23 anos depois, como um verdadeiro ex-libris do indie rock. A contrastar com as três décadas do festival, a banda originalmente formada por Georgia Hubley e Ira Kaplan (o baixista James McNew só se juntou mais tarde) comemora 40 anos de ofício em 2024. E apesar de uma herança incalculável, formam o raro caso de um legacy act que se recusa a ficar na sua zona de conforto e, muito menos, a entrar na reforma. Deixemos This Stupid World ser a sua prova viva, um 17º álbum que procura desvendar novos rumos nas bases sónicas que o trio ajudou a batizar no auge da sua carreira, graças à sua fenomenal sucessão de lançamentos durante a década de 90.

É numa recorrente dicotomia entre as composições mais icónicas e as mais recentes, ou entre as duas facetas estéticas dos Yo La Tengo – uma mais serena e apaziguadora, outra mais brusca e direta – que o grupo soube conquistar a atenção dos muitos fãs reunidos no Palco Vodafone ao cair da noite. As novíssimas Sinatra Drive Breakdown ou Fallout entalham sem defeitos nesta segunda esfera, junto a Sugarcube ou à tão aguardada Tom Courtenay, um daqueles temas que promete continuar a vingar para toda a eternidade. A firmeza da bateria de Hubley, das guitarras ocasionalmente rompantes de Kaplan ou das suas vozes ásperas são, também elas, resistentes ao tempo – ter a boa disposição do trio certamente ajuda. Todos estes fatores, igualmente aplicáveis aos tons enternecedores de Autumn Sweater, mergulham-nos neste turbilhão atmosférico e dinâmico, entediante para alguns e estimulante para outros. E para os melómanos mais rendidos, quase não se sente o avançar dos anos da própria banda. O trio também já parece ter perdido a conta dessa passagem inexorável do tempo, mas de pouco importa quando o legado de Hubley, Kaplan e McNew fala por si.

Squid e o seu rock angular camaleónico

Um ano passou desde o último concerto dos Squid em Portugal e tudo, ou nada, mudou. Voltam a coincidir, ainda que por meros minutos, com o principal cabeça-de-cartaz da noite (na edição de 2022 do Primavera Sound Porto, tinham sido os Gorillaz a roubar o protagonismo). Contudo, a mutação sofrida entre o post-punk eletrizante do seu disco de estreia e um O Monolith (editado há pouco mais de dois meses) é patente – este último “tão discretamente feroz, assertivo e, para os pacientes, não menos recompensador do que o deslumbrante Bright Green Field”. Vemos, nas várias deambulações pelos campos da eletrónica e do art rock, um grupo que se quer manter volátil. Atento aos experimentalismos, mas nunca distante da sonoridade com que se introduziram. Na segunda passagem dos britânicos por território nacional, o quinteto liderado pelo vocalista e baterista Ollie Judge não deixa de refletir esta transfiguração em tempo real, mas encontra nos seus temas mais possantes o registo ideal para se apresentarem ao vivo.

Mesmo nesta sua versão mais imediata, o dinamismo continua a ser uma das principais chaves do sucesso dos britânicos. Se os desfechos de Narrator, G.S.K ou Swing (In A Dream) levam uma plateia inteira à erupção, assim o devem aos seus respetivos crescendos, “levando-nos da passividade à detonação com uma segurança cabal”. Onde melhor se encapsula os momentos mais austeros e obtusos de O Monolith, no entanto, é nos breves interregnos entre as faixas apresentadas, transformados em jam sessions transitórias, que os vemos tão desafiantes como minuciosos. Aqui, entram em força os drones e as distorções, com cada novo elemento a evoluir em lume brando. O público, com ou sem estas quebras de tensão, fica preso à sua imersão, ocasionalmente fragmentada por breves disrupções instrumentais, pela voz errática de Judge ou pelo caráter frequentemente “cínico e caricatural” das suas letras. Já com vários festivaleiros a dirigirem-se para o palco principal, a magia sai de cena com a mesma assertividade com que se instalou. Fica para nós uma fotografia representativa dos Squid no seu estado atual, sempre em movimento e à procura de se desconstruir.

O disco sumptuoso de Jessie Ware que fez de Paredes de Coura um baile vibrante

Pleasure is a right” – assim o dita Jessie Ware, debaixo da “efervescência das pistas de dança” que agora a coroam de rainha. Também a britânica encontrou no “poder reativo da música pop” um refúgio quando o isolamento pandémico passou a ser a ordem do dia, na esperança de captar a euforia das noites sem fim. Quando o mundo mais precisava de hinos purgativos, soube responder às preces e, por milagre, achar nas sonoridades glamorosas do disco um reacender da sua própria carreira. What’s Your Pleasure? e That! Feels Good! não são só um produto dessa urgência, tanto de Ware como dos seus fãs, mas um convite a sentir os simples prazeres da vida e a renascer mais fortes, livres da mente e do corpo, e engolidos pelo desejo.

Na festa mais esperada deste dia inaugural, a chamada de Jessie Ware é imperativa e o seu domínio unânime. Apoiada por um elenco vibrante de dançarinos (e por um chicote disfarçado de microfone), vemos nela uma verdadeira diva pop, fazendo da sensualidade palavra de ordem e dos seus salmos irresistíveis. Pearls alcança a luxúria na sua plenitude, as magnetizantes Soul Control e Save a Kiss envolvem Coura em coreografias improvisadas. Nem mesmo as suas baladas majestosas (como Spotlight e Remember Where You Are) dissociam a libertação da sua música, com os seus efeitos manifestados por uma colina inteira. Lembramo-nos, durante os intermináveis momentos de diversão, do que faz esta inglesa uma estrela cada vez mais indiscutível dentro e fora desta lente renascentista da música pop. No seu disco orgulhosamente adulterado e empoderador, e no charme de Jessie, encontramos essas tais forças para mais uma explosão de emoção, inescapável e ainda assim tão desejada. Anotamos tantas outras figuras incontornáveis ao seu estilo: de Cher a Chaka Khan (ambas homenageadas no alinhamento do espetáculo, tendo a sua versão de Believe provocado uma das receções mais ardentes desta primeira noite de festival), algures entre Kylie Minogue e Róisín Murphy (convidada de honra do recente remix de Freak Me Now). Enquanto Free Yourself anuncia a despedida que ninguém anseia, ao fim de pouco menos de uma hora de concerto, estende-se a passadeira vermelha para uma derradeira explosão coletiva. Aprovamos, de bom grado, a sua subida ao Olimpo. A batalha está ganha e o público aceita a rendição. A discoteca de Jessie Ware promete-se eterna – pelo menos enquanto o amor prevalecer.

A eletrónica congregadora de Bicep

Em 2021, o mundo viu-se forçado a aceitar o conceito apocalíptico dos Bicep num vácuo, sem a componente ao vivo que tanto tem contribuído para a sua reputação. Foi no clima pandémico, à época, que os norte-irlandeses Andy Ferguson e Matt McBriar se sujeitaram com o lançamento de Isles, um segundo disco que, ao tentar emular a euforia das suas atuações, também tenta viver com a introspeção e o conforto de um compartimento mais intimista. Não sendo uma reinvenção extremista da sua palete sónica, a dupla deixou-se contagiar por uma vasta gama de texturas e contrastes multiculturais, ainda que sem poderem gozar da principal ferramenta do seu arsenal, o elemento que efetivamente transfigura a música house agradavelmente simplista (e ocasionalmente opaca) dos Bicep em algo bem mais rico.

Foi com a discoteca incendiária de Jessie Ware ainda fresca na memória que os Bicep tiveram a oportunidade de transpor as várias composições de Isles (e os muitos sucessos do seu primeiro álbum) para o formato que melhor os favorece. Em palco, permanecem Ferguson e McBriar, cara a cara, a contorcerem cada faixa diante de uma estrondosa conjuntura visual – faz lembrar, em certa medida, a recente atuação dos parisienses The Blaze neste mesmo anfiteatro, ainda que com uma plateia consideravelmente mais numerosa. As modulações, umas minimalistas e outras altamente disruptivas, elevam a natureza dos originais a novos territórios, numa expectável manipulação de tensões e euforia que, não obstante, transforma as já clássicas Glue e Apricots – sem deixar de fora as destacáveis Atlas ou Opal – em momentos verdadeiramente cativantes. É neste ambiente que o trabalho dos irlandeses ganha a sua plena forma, em permanente contacto com os seus fãs (convidados a deixarem-se levar pelo êxtase numa atuação surpreendentemente hipnótica) e longe das contingências de outrora que deixam agora de impedir a dupla de vingar a sua arte com eficácia.

Foto da autoria de Mariana Silva @Direitos Reservados

No segundo dia do Vodafone Paredes de Coura 2023 (17 de agosto), atuam os cabeças-de-cartaz Fever Ray, Loyle Carner e The Walkmen, juntamente com artistas como o brasileiro Tim Bernardes ou a norte-americana Sudan Archives. Continua a seguir toda a cobertura no nosso website e redes sociais CONTRABANDA.

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