O quinto e último dia do Vodafone Paredes de Coura 2022: uma despedida em tons de glória
O encerramento da 28ª edição do festival ficou marcado pelo encanto de Perfume Genius, pelo rock glorioso de Yves Tumor & Its Band e pelo hip-hop intrépido de slowthai, num dia que contou igualmente com um recinto cheio para receber os lendários Pixies, no seu regresso à Praia Fluvial do Taboão.
As despedidas são sempre difíceis, mas inevitáveis. Podia parecer que não, mas o Vodafone Paredes de Coura estava mesmo a chegar ao fim. Foram cinco dias repletos de música e de muitos concertos inesquecíveis que perdurarão na memória de quem os viveu. Contudo, este quinto e último dia do festival minhoto ainda nos reservava algumas agradáveis surpresas. Os passes diários para sábado estavam esgotados, o que fazia, desde logo, prever uma enchente humana no recinto. O que se vaticinava acabou por acontecer, mas o grande realce vai para a interessante amálgama geracional que presenciámos neste encerramento. Para além das habituais excursões familiares ao Taboão, vimos um pouco de tudo: jovens à procura da entrada do hip-hop em cena e adultos em busca da nostalgia de outros tempos.

No entanto, decidimos mudar de ares antes de rumar à Praia Fluvial do Taboão. Ainda pela manhã, rumámos a Formariz para ver a última Vodafone Music Sessions. O convidado, desta vez, foi Manel Cruz. Lá estava ele ao meio-dia, com a sua voz densa e o seu ukelele, de frente para a cruz de cristo, pregada no exterior da Capela da Nossa Senhora da Purificação. No meio deste cenário intimista, enterneceu-nos com Beija-Flor, hino da “inspiração e da desinspiração”, e levou-nos a conhecer Ginger Lin, ainda por lançar. Num momento caricato, foi interrompido por um drone, que confessou estar “meio tom abaixo” do suposto. O ruído enervante do objeto voador e as gargalhadas coletivas bem podiam ter quebrado o ritmo, mas nada melhor do que o sentido de humor de Manel Cruz para nos sugar de novo para dentro destas suas reflexões acústicas. Mais tarde, trocou o silêncio da natureza por uma harmónica e um mar de gente que o esperava no palco Vodafone FM, às 18 horas. Cantaram, ao seu lado, temas como O Navio Dela, do seu álbum Vida Nova, ou Falso Graal, dos Foge Foge Bandido. Trocou ocasionalmente o ukelele pela guitarra, reviu-se no peluche de um sapo que por ali andava e brindou com água (e depois com álcool) uma plateia que o recebeu de braços abertos. Poucos podem dizer que tiveram a oportunidade única de ver dois concertos bem distintos de uma das vozes mais carismáticas da música nacional em menos de 10 horas, mas Coura deu-nos mesmo esta prenda de despedida com um simbolismo ímpar.

Pouco antes da hora do jantar, o palco Vodafone FM ia-se enchendo para receber dois dos concertos mais esperados da noite: Perfume Genius e Yves Tumor & Its Band. No caso de Mike Hadreas, já não se cruzava há algum tempo com Portugal. A última vez foi no NOS Alive em 2018. Quatro anos depois (e num recinto mais a norte), levou-nos aos céus durante cerca de três quartos de hora. Ao lado de um grupo impecável de músicos, Hadreas tem uma presença em palco quase divinal. A sua voz de anjo também ajuda, claro está, mas juntamos a isto a delicadeza dos seus movimentos e a sensualidade que deposita na sua performance – seja com o recurso à dança ou a uma simples cadeira – e o difícil é não acabar num estado infinito de hipnose. Começou logo a rodar alguns temas do brilhante Set My Heart on Fire Immediately, como Without You ou Describe, antes de rumar ao passado para alguns dos instantes mais transcendentes do espetáculo. A natureza etérea de Fool, que antecedeu a eufórica On the Floor, foi uma espécie de primeiro aviso para Otherside, canção de abertura de No Shape, cuja resolução coloca qualquer um com o queixo caído. Do seu mais recente longa-duração, Ugly Season, que “abdica em acessibilidade, [mas] compensa em surrealismo e extravagância”, só ouvimos Eye in the Wall. Era expectável, dado a sua estética e origem muito própria dentro da discografia do norte-americano. Fechou com Slip Away e Queen, dois dos seus grandes hinos, um dos concertos mais sublimes da noite, da presente edição do festival e de toda a temporada de festivais de verão. Mal podemos esperar pelo seu regresso, que esperemos que seja em breve!

Após descermos novamente à terra, apercebemo-nos que já se começava a criar a tempestade perfeita para mais uma magnífica atuação no palco secundário. Junto às grades, muitos ansiavam pelo regresso de Yves Tumor a Portugal, que se cruzou há três anos com o NOS Primavera Sound. E lá estava o artista, poucos minutos após a hora prevista, a ser recebido de braços abertos por uma plateia que, em muitas ocasiões, se sobrepôs à sua voz. Nem precisou de cantar durante a primeira parte de Kerosene, um dos muitos pontos altos do seu último longa-duração, Heaven To A Tortured Mind. Bastava apontar o microfone para a frente e os fãs ecoavam a plenos pulmões as suas letras, seguidas normalmente por ovações sentidas. Desde as interações brincalhonas que ia tendo com o guitarrista Chris Greatti às movimentações e expressões extravagantes que ia soltando, toda a sua persona em palco grita rockstar status, pronto para conquistar palcos maiores com o seu art rock rompante. Tão depressa provocou uma erupção de emoções, com a sequência ininterrupta de Romanticist e Dream Palette, como puxou de um goth rock ao seu estilo com Crushed Velvet e Jackie, saídas do seu mais recente EP, The Asymptotical World. Conjugando intensidade e libertação, esta estreia de Yves Tumor e da sua fenomenal banda no festival deixou os presentes simplesmente perplexos – e sempre pelas melhores razões.

Estreámos finalmente o palco Vodafone ao som de slowthai, pouco antes das 23 horas. Com a típica pontualidade britânica, o rapper foi-nos adocicando o coração com alusões a Unchained Melody ou Can’t Help Falling In Love, mas o que realmente trouxe ao recinto foi um ambiente agradavelmente caótico. Apresentou-se sozinho no seu cenário e fez sua a colina do Taboão – que aparenta ficar mais íngreme a cada dia que passa. Ingressou, entre músicas, em discursos de motivação, pedindo sempre para aproveitarmos a vida ao máximo, sem perdermos a identidade pelo caminho. Testou, logo a abrir, algumas das faixas mais explosivas de TYRON (lançado em 2021), como CANCELLED (conta com a participação de Skepta, que não teve tanta sorte em Coura há alguns anos), 45 SMOKE e MAZZA. Não esqueceu PSYCHO, a sua assombrosa colaboração com Denzel Curry, que nos faz lembrar que o norte-americano podia ser uma aposta certeira para uma futura edição do festival. Certificou-se de que todos os presentes partilhavam a sua energia positiva com I Feel So Good (ainda por editar) e trouxe-nos o seu lado mais introspetivo com a emotiva Feel Away. Enquanto a voz de James Blake ecoava nas colunas de som, víamos luzes de telemóveis e algumas lanternas bem acesas a iluminar este tema mais sereno – e tão necessário num set tremendamente eletrizante. Para rematar esta sua primeira passagem pelo país, fez novamente vibrar a terra e incitou uma nova onda de moshpits com Doorman, antes de dar uns passos de dança ao som de Barbie Girl – nunca pensávamos ouvir esta música em Paredes de Coura, uma vez na abertura do concerto de Princess Nokia e agora no fecho da atuação de slowthai, mas não nos queixamos. Os toques de grime e trap do rapper britânico provaram ser um enorme sucesso, num local que está gradualmente a render-se a alguns dos talentos mais sonantes do hip-hop internacional. Esperemos que esta escolha curatorial continue a dar mais motivos de alegria nos próximos anos.

Porém, sabíamos bem quem iria provocar o maior entusiasmo nesta derradeira noite da programação. Pixies, banda marcante do final do século XX, era o nome que surgia na mente dos que andaram no recinto pela última vez em 2022. Já tinham pisado este anfiteatro em 2005. Desde então, acumulam concertos esgotados, graças à nostalgia que a sua legião de fãs carrega consigo. Este regresso a Coura foi mais um desses casos, mas também deixou bem provado que, ao vivo, podiam fazer mais para manter o ânimo vivo. Numa atuação a roçar as duas horas de duração, subiram ao palco Vodafone, tocaram aproximadamente 30 faixas num concerto tipo-playlist e despediram-se sem qualquer discurso, interação ou interrupção. Os seus contemporâneos Pavement, acabados de sair da reforma, mostraram-se em melhor forma em junho no NOS Primavera Sound, onde souberam pregar ao chão uma plateia menos composta com um concerto igualmente longo. Numa nota mais positiva, o grupo liderado pelo vocalista Black Francis mostrou não ter perdido a química com o avançar dos anos e fez um bom trabalho a balancear os clássicos de outrora com algumas das canções que integrarão Doggerel, que será editado a 30 de setembro. E para quem tem um lugar especial no coração para Doolittle, teve aqui a sorte grande. Foram 10 as faixas deste icónico disco que marcaram presença neste espetáculo – se contarmos as duas diferentes versões dadas a Wave of Mutilation, então esse valor sobe. Também não faltou a imprescindível Where Is My Mind?, que despertou logo os que pudessem estar ainda indiferentes ao alinhamento apresentado. Faltou alguma emoção neste fecho do Palco Vodafone, mas qualquer oportunidade para celebrar o legado de uma das bandas mais incontornáveis do rock alternativo das décadas de 80 e 90 é bem-vinda.

O after hours deste dia de encerramento ficou marcado pelo regresso de Tommy Cash a Portugal, após ter marcado presença no NOS Primavera Sound em 2019, e por mais um DJ set comandado por Nuno Lopes.
Já é garantido que o Vodafone Paredes de Coura regressará em 2023, entre os dias 16 e 19 de agosto, tal como o seu diretor, João Carvalho, anunciou numa conferência de imprensa feita neste dia de encerramento da 28ª edição. Este ano, o festival recebeu cerca de 115 mil pessoas ao longo dos cinco dias da programação, naquela que garante ter sido a edição “mais bem sucedida de sempre”. No futuro, será anunciado um novo cartaz para 2023, que certamente trará mais momentos inesquecíveis como os que assistimos este ano. Fiquem atentos às nossas redes sociais e às próximas reviews!