Os Destaques de Setembro 2023

Os novos lançamentos de Tinashe, Mitski, Laurel Halo e Oneohtrix Point Never são os destaques em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.

Tinashe – BB/ANG3L

Género: Alternative R&B
Data de Lançamento: 08/09/2023
Editora: Nice Life

A liberdade artística não só não é uma garantia no mundo musical, como, por vezes, acaba por ser um sacrifício irredutível no caminho ao sucesso. Como veterana e, acima de tudo, vítima dos vícios limitativos da indústria em que opera, Tinashe sabe-o melhor do que ninguém. À sombra dos frutos de um refrescante disco de estreia em 2014 (Aquarius), desvendam-se colaborações controversas, digressões canceladas e toda uma panóplia de pressões manipulativas que acabaram por condenar uma ascensão ao estrelato que se dava, à época, como certa. Com a quebra do vínculo que a ligava à renomeada editora RCA já bem distante no horizonte, a emancipação de Tinashe atinge finalmente a sua plenitude com BB/ANG3L.

Apelando novamente à raiz vanguardista do seu antecessor (333), parte do feito deste seu sexto álbum passa pela sua inegável eficiência, perfeitamente espelhada pelos seus brevíssimos 20 minutos de duração. Se BB/ANG3L não se estende para além das medidas, é porque Tinashe faz bom uso da sua fugacidade. A permutação das convenções tradicionais do R&B, ainda que sendo já um ponto assente na sua discografia, ganha aqui uma valor reforçado, com nomes como Machinedrum ou Nosaj Thing a serem responsáveis essenciais por detrás das sensibilidades mais eletrónicas patentes em cada recanto de BB/ANG3L. Os breakbeats eletrizantes de Gravity e Tightrope, por exemplo, contrapõem-se à produção minuciosa de Treason, onde a voz de Tinashe fica praticamente envolvida pelos sintetizadores celestiais que a acompanham. Já Needs, um dos singles do disco, produz alguns dos instantes mais contagiantes de qualquer disco remotamente pop – basta render-se às harmonias do refrão. Independentemente do motivo sónico, a paixão mantém-se um alvo perene em cada um dos seus sete temas, mas nunca estagnado. Ganha uma acrescida turbulência em None of My Business e atinge um caráter quase divinal em Talk To Me Nice, com recortes vocais e uma produção absolutamente hipnotizante a pintarem cada um dos seus dois atos. Não será difícil de equiparar a convicção com que conduz cada um dos seus motivos ao próprio renascimento artístico. Quatro anos após ter reiniciado a sua carreira praticamente do zero, Tinashe balança vulnerabilidade e autodeterminação com uma segurança palpável, fazendo de BB/ABG3L um fruto da sua independência criativa que tanto lutou para obter.

Mitski – The Land Is Inhospitable and So Are We

Género: Indie Folk
Data de Lançamento: 15/09/2023
Editora: Dead Oceans

A lifetime isn’t long enough for the beauty of this world and the responsibilities of your life”. Mary Oliver assim se debatia sobre a beleza do mundo em Flare, uma das muitas reflexões presentes no seu livro The Leaf And The Cloud. Numa época em que a condição humana e a natureza que nos rodeia parecem crescentemente denegridas, torna-se fácil olhar para o “poema” da vida como algo hostil, incapaz de fugir à sua tendência auto-destrutiva. Estará o mundo realmente desprovido do seu encanto ou haverá ainda alguma salvação possível dentro da nossa própria ruína? À semelhança de Oliver, Mitski certamente se tem debatido com esta mesma temática. Da última vez que Mitski se mostrou ao mundo, a possibilidade de um fim trágico para a sua carreira acabou por contrastar com o seu maior pico de popularidade. A voz que elevou as glórias passadas de Marry Me at Makeout Creek ou Puberty 2 parecia, mais do que nunca, visivelmente angustiada: com a sua fama, com o seu ofício e até mesmo com a forma como as suas criações são ou podem ser percecionadas, consumidas. Levanta-se aqui uma questão semelhante. Quando a arte passa a ser, também ela, um fruto das hostilidades da terra em que habita, continuará a haver uma réstia de esperança, de bondade em tudo o que nos rodeia? Um ano e meio depois da “euforia sónica” de Laurel Hell, The Land Is Inhospitable and So Are We surge, precisamente, como uma proposta a amar perante todas as adversidades e, inclusive, um novo recomeço de Mitski enquanto artista.

Em contraste com a promoção extensiva do seu antecessor, o seu sétimo e mais recente álbum descarta a pressão dos holofotes e deixa a música falar por si. Desaparece, por igual, o fascínio pelas sonoridades do synth pop, tão prevalentes no seu último par de discos e agora trocadas por uma palete bem mais serena e orgânica, repleta de coros, guitarras acústicas e orquestração, dignas da era dourada de Hollywood. Mesmo sendo uma estética já adotada por alguns dos seus contemporâneos (nomes como Lana Del Rey ou Father John Misty vêm logo à memória), não há como negar a destreza com que consegue refiná-la às suas próprias medidas. The Land Is Inhospitable and So Are We nivela a sua instrumentação de acordo com a carga sentimental que Mitski exerce em cada uma das suas 11 faixas. Escute-se Heaven, uma belíssima balada country onde os arranjos instrumentais vão florescendo de mãos dadas com a intensidade da paixão aqui descrita, com todos os rumos e proporções que possa tomar. Mitski capta-o na simplicidade de uma chávena de café inacabada, por exemplo. Com Star, atinge proporções cósmicas, vendo numa estrela cadente uma porta para um passado que já não lhe pertence. É uma das muitas instâncias em que The Land Is Inhospitable and So Are We coloca o amor como algo celestial, mas não menos indefeso às calamidades da nossa existência. Por vezes, manifesta-se à custa da própria alma, como em The Deal. Noutras ocasiões, fica condenado pela crueldade – a dinâmica apresentada em I’m Your Man é exímia nesse campo – ou até mesmo por conflitos existencialistas (“I don’t like my mind, I don’t like being left alone in a room/With all its opinions about the things that I’ve done”). Assim o reflete, igualmente, em Bug Like an Angel (“I try to remember the wrath of the devil was also given him by God”), desvendando no alcoolismo uma porta entre o divino e o terreno. O argumento mais potente de todo o álbum (e o ângulo central de My Love Mine All Mine) surge, contudo, na visão do amor como uma pertença individual, algo que escolhemos propagar em vida, na esperança de vê-lo perdurar bem para além da nossa morte física.

São vários os motivos que fazem de The Land Is Inhospitable and So Are We um dos seus trabalhos mais potentes, ainda mais quando considerada a ambiguidade que se instalou em volta do seu futuro artístico. Para conseguir encontrar o verdadeiro encanto no mundo, talvez seja necessário aceitar, lá está, a brutalidade do nosso ser e, acima de tudo, o modo como inevitavelmente sabotamos o que torna a espécie humana tão antagonicamente bela. Neste regresso a lugares inóspitos, Mitski – agora proclamada como rainha de toda a terra – convida-nos a fazer o mesmo.

Laurel Halo – Atlas

Género: Ambient; Electroacoustic
Data de Lançamento: 22/09/2023
Editora: Awe

Vivemos numa era de excesso de informação. Cenários e perspetivas fundem-se sem distinção possível, o sonho e a realidade ficam progressivamente indissociáveis. Assim nasce o vácuo infinito da contemporaneidade, assoberbado de possibilidades e riscos, ficando cada um com o ónus de carregar a promessa e o medo do que nos rodeia. Não é de agora que Laurel Halo tenta encontrar um sentido nas várias forças (naturais e sintéticas) do universo. Fale-se da distopia tecnológica (com os seus retoques pop) que deram origem a Quarantine, da abrasividade techno de um Chance of Rain ou então de um Dust, onde a norte-americana dá à voz humana um caráter quase transhumanista. Os universos criativos de Halo são, porventura, pautados por esta ausência de linhas ténues. Raw Silk Uncut Wood, o trabalho que nos deixou em 2018, já mostrava Halo a debater-se com o mundo da música clássica e eletroacústica, procurando encontrar nela uma certa amorfia. Ao fim de cinco anos de hiato, Atlas vira precisamente o foco para a translucidez do subconsciente, onde o tudo e o nada se fundem num só.

Com a ajuda de uma longa lista de colaboradores (do violinista James Underwood e da violoncelista Lucy Railton ao vocalista britânico Coby Sey), Halo molda o cosmos de Atlas com uma enorme meticulosidade. Por entre as metamorfoses de cada uma das suas texturas, torna-se um desafio, por si só, tentar desvendar (ou sequer prever) o rumo das dez composições que dão vida ao disco. Naked to the Light, por exemplo, vê os seus múltiplos elementos em tropeços permanentes, florescendo, todos eles, em direção a um abismo incalculável. Já em Belleville, Halo retrai-se do caos e coloca o piano em primeiro plano, mais tarde engolido pela beleza das harmonias vocais de Sey e dos instrumentos de cordas. A contrastar com os momentos mais minimalistas de Atlas, surgem em tantas outras ocasiões onde a densidade e a tensão aparentam ser praticamente infinitas. Olhe-se para Late Night Drive e a faixa-título como os seus exemplos máximos, com cada instrumento manipulado até se tornar indistinguível, já bem distante da sua origem. Centra-se aí o maior elo atrativo de Atlas: um álbum cauteloso, mas sem forma; elegante, não haja dúvida, mas eternamente intrigante. Novos corpos e ambientes vão surgindo e dissolvendo perante a curiosidade de quem os tenta percecionar, com Halo – ela própria, permanentemente envolvida no seu próprio processo evolutivo – a admirar o horizonte que acabou de pintar.

Oneohtrix Point Never – Again

Género: Progressive Electronic
Data de Lançamento: 29/09/2023
Editora: Warp

O homem e a máquina. Uma narrativa mais antiga que o tempo. Para os otimistas, uma sinergia fascinante. Para os mais cénicos, uma relação de forças intimidatória, com todas as possibilidades e riscos que daí decorrem. Já nos tempos em que Daniel Lopatin dava os primeiros passos como o magnífico cérebro por detrás de Oneohtrix Point Never se fazia notar esta curiosidade intrínseca pela linguagem digital (e como as conseguiria moldar à sua livre vontade). Nada fazia prever, contudo, a trajetória que o seu currículo tomou, começando a década passada como uma das principais promessas da música eletrónica contemporânea – com maravilhas como Replica ou R Plus Seven (cujo décimo aniversário praticamente coincide com o lançamento do seu mais recente disco) em seu nome – e acabando-a como um produtor de eleição para nomes como The Weeknd, Caroline Polachek ou FKA twigs. Dado o impacto que Lopatin já deixou, será, por vezes, difícil perspetivar o que ainda está por vir. Três anos após o lançamento de Magic Oneohtrix Point Never, Again olha destemidamente para as origens do homem, da máquina e do homem por detrás da máquina, procurando dar resposta à incerteza do que se segue.

Tal como a própria mente humana, Again é feito maioritariamente de fragmentos, sejam estes orgânicos ou tecnológicos. As primeiras notas do tema introdutório, Elsewhere, surgem de uma cacofonia orquestral, bem distantes da sonorização sintetizada que assume, pela primeira vez, o comando do disco com a faixa-título, mas um mantra subtil e recorrente em várias das suas 13 composições. Sendo este um trabalho que Lopatin afavelmente descreve como uma “autobiografia especulativa”, a viagem de Again acaba por ser, entre outras óticas, uma reflexão sobre as suas diferentes fases criativas. Por entre as progressões pseudo-rock de Krumville ou On An Axis, encontramos os eccojams do seu “eu” longínquo, Chuck Person. Já em Memories of Music, escutamos Lopatin no seu estado mais saudosista, numa ode reconfortante ao entusiasmo de qualquer artista e das suas criações. E numa época em que a inteligência artificial se encontra na ordem do dia, Lopatin volta a debruçar-se, tal como já tinha ocorrido com Age Of, com o seu potencial – ou, melhor dito, com as suas eventuais falhas que deseja provocar. Assim a implementa nas passagens vocais de The Body Trail e na epopeica A Barely Lit Path. Com o fim de Again já no horizonte, escuta-se a homenagem mais literal ao percurso passado de Lopatin, reutilizando os órgãos proeminentes de Boring Angel. A nostalgia do passado e a dualidade do futuro tocam-se por uma última vez, a máquina passa a partilhar a emoção do homem e juntos, em uníssono, caminham rumo ao infinito.

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