Os Destaques de Outubro 2023

Os novos lançamentos de Sufjan Stevens, MIKE, Sampha, Ana Frango Elétrico e Sofia Kourtesis são os lançamentos em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.

Sufjan Stevens – Javelin

Género: Singer-Songwriter
Data de Lançamento: 06/10/2023
Editora: Asthmatic Kitty

Grief is the terrible reminder of the depths of our love.” Assim refletia Nick Cave sobre a bilateralidade do luto e do amor numa das suas múltiplas correspondências entre artista e fãs. Um sentimento predispõe a existência do outro, dois lados da mesma moeda que se alimentam permanentemente da dedicação que lhe depositamos, num pacto tão eterno quanto as marcas da sua existência perdurarem pelo tempo. Talvez, por todo o sofrimento que provoca, habite no pesar a mais digna celebração da conexão humana, para sempre distante da sua forma física, mas não da alma. Uma forma de relembrar a sua beleza, os pequenos detalhes e memórias e retirar daí razões para prosseguir. Para quem tem seguido o brilhantíssimo percurso do norte-americano Sufjan Stevens ao longo das últimas duas décadas, não é nenhuma novidade que estas são temáticas que assombram todo e qualquer aspeto da sua música. Em Carrie and Lowell, editado em 2015, deu-lhe inclusive um palco central, na sequência da morte da mãe três anos antes, trocando a escala epopeica de um Illinois ou o vanguardismo eletrónico de um Age of Adz por uma reflexão arrepiantemente silenciosa sobre o seu próprio trauma. Nunca se deixa sucumbir ao passado, mas deixa, ainda assim, que a enormidade do seu impacto fale por si.

Na carreira monumental de Stevens, são poucos e raros os instantes em que o contexto absoluto da sua vivência se torna indissociável dos seus trabalhos, mas, conforme se avizinhava o lançamento do seu décimo e mais recente disco, Javelin, cedo se tornou claro que Javelin seria imensamente autobiográfico. A um diagnóstico e subsequente recuperação do Síndrome de Guillain-Barré (uma doença autoimune que limitou temporariamente a sua capacidade motora), seguiu-se o anúncio da morte do companheiro de longa data, Evans Richardson (a quem dedica o álbum), em abril deste ano, ao passo que também confirma publicamente a sua homossexualidade. Para além de revelações incrivelmente trágicas, nunca a intimidade de Stevens esteve tão pouco envolta em secretismo e, simultaneamente, tão entrelaçada com as suas composições. Logo nos instantes iniciais de Javelin, em Goodbye Evergreen, escutamos a despedida mais direta a Evans: “Goodbye, Evergreen, you know I love you/But everything heaven sent must burn out in the end”. Conduzidos pela agonia das suas letras e pela sua voz notoriamente dolorida, vemos cada uma das dez faixas florescer do mesmo ponto de partida. Progride-se de uma simples melodia na guitarra ou no piano – lembre-se, novamente, a simplicidade comovente de Carrie & Lowell, e agora muitíssimo notável em Everything That Rises ou Genuflecting Ghost – para mais tarde culminar em crescendos absolutamente deslumbrantes, texturizados por arranjos orquestrais, retoques sintetizados ou coros vocais angélicos, que tanto relembram como reapropriam explorações anteriores a este álbum. Ouvimos Stevens a processar, mais do que nunca, toda a dor que o acompanha em tempo real, mas também a desfazer-se em reflexões devotas sobre a intensidade da relação de forças aqui em jogo. Will Anybody Ever Love Me?, um dos temas de apresentação de Javelin, funciona como um lamento, tão melodramático como profundamente honesto, por uma devoção no seu estado mais puro. Capta-se, por igual, a intensidade e inocência jovial de uma primeira paixão em A Running Start, ou então o desejo associado ao divino em My Red Little Fox (“Drinking words within that spin down Pentecost/Kiss me with the fire of gods”).

Stevens, como tão bem sabe fazer, coloca o amor num pedestal sagrado, a par da natureza, do corpo ou da religião, sem separar a sua aura transformadora de uma possível morte, seja carnal ou espiritual. A coleção de ensaios que acompanha o disco é mesmo uma leitura obrigatória para entender a sua visão integral. So You Are Tired, uma das baladas mais devastadoras que já escreveu, leva-nos para o centro dessa possível ofuscação, já com um termo à vista e sem solução que evite a sua inevitabilidade. E, mesmo considerando os eventos fúnebres que inspiraram Javelin, Shit Talk (composto por oito minutos e meio de purgação máxima) soa como um suspiro derradeiro para encontrar fundamentos que mantenham a chama acesa, apesar da sua finalidade e das leis cíclicas da experiência humana. “Eu sei que tenho sido muitas vezes a imagem de marca da dor, da perda e da solidão. E, por vezes, posso ser um misantropo. Mas o último mês renovou a minha esperança na humanidade.”, afirmava o norte-americano acerca da sua reabilitação, num dos vários posts contidos na sua página de Tumblr. É um sentimento que transparece por completo ao longo do Javelin. A complexidade do amor volta a afirmar-se na ótica de Stevens, num lindíssimo tributo à vida (e a como resistir ao seu término) tão difícil de digerir como de conceber.

MIKE – Burning Desire

Género: Abstract Hip-Hop
Data de Lançamento: 13/10/2023
Editora: 10k

Têm sido anos altamente furtivos para Michael Jordan Bonema, um dos verdadeiros nomes indiscutíveis da órbita mais underground do hip-hop norte-americano. Já vão longe os dias em que o coletivo [sLUms] dava os primeiros passos, com o rapper bem no seu cerne. Não há como negar: a unicidade de MIKE enquanto artista tem-lhe valido um lugar estimado entre contemporâneos e fãs, mas o talento fala por si. Sempre foi e continua a ser, na sua essência, um reflexo da realidade em seu redor. Tears of Joy e Weight of the World, por exemplo, viram-no contemplar o luto com uma sentida crueza, após o falecimento da mãe. Memórias fragmentadas são apresentadas como se de um diário se tratasse, tentando fazer sentido do seu próprio martírio, mas Bonema já parecia caminhar, passo a passo, rumo a uma luz ao fundo do túnel. Disco, editado em 2021, foi precisamente esse tão necessário virar de página, muito para além do domínio estritamente pessoal. Surge, por entre o trauma, uma “faceta mais esperançosa e otimista”, mas igualmente autoanalítica e instigante, que acaba por coincidir com uma nova caminhada prolífica de discos, destacando-se os recentíssimos Beware of the Monkey e um Faith as a Rock, concebido em estreita colaboração com Wiki e The Alchemist. Burning Desire, porventura, bem pode ser uma extensão de todo este percurso triunfante, mas o mais recente trabalho a solo de MIKE assenta como um encaixe clarividente de tudo o que o torna numa voz inegavelmente cheia de alma e, agora mais do que nunca, orgulho.

Assumindo novamente os encargos de rapper e produtor na grande maioria das suas 24 faixas, as tendências estilísticas de outrora ressurgem aqui num estado claramente refinado: a abordagem sedativa e monocórdica com que se dirige ao microfone; os beats nebulosos; a palete heterogénea de samples. Nunca, contudo, se apresentou tão seguro da sua identidade, espelhando, nas deambulações líricas pelo seu estado de consciência, uma urgência emocional e, sobretudo, uma autenticidade perentória. Assim o sentimos em Snake Charm, U think Maybe? (enaltecido pelas enternecedoras passagens de Liv.e) ou plz don’t cut my wings, onde uma vulnerabilidade, autossuperação e espiritualidade são tema central de mais uma fascinante troca de versos com um seus mestres e contemporâneos, Earl Sweatshirt. Em Sixteens e Zap!, por outro lado, entra confiantemente em cena e assim se aguenta até as palavras se esgotarem. É uma postura bem díspar dos lamentos catárticos que pintaram os seus trabalhos mais sombrios, mas altamente contagiante para quem partilha o palco com MIKE – quer se fale de Mussel Beach, ao lado de El Cousteau e Niontay, ou Golden Hour, onde resgata o californiano Larry June para um dos instantes mais assertivos de todo o disco. Onde se denota o maior salto de maturidade criativa, ainda assim, é precisamente nos instrumentais que conduzem Burning Desire: a surpreendente abrasividade de African Sex Freak Fantasy, a lubricidade de Set the Mood, os maravilhosos retoques soul de THEY DON’T STOP IN THE RAIN, as introspeções de Let’s Have a Ball (que encerra o álbum envolto de guitarras e guiado pela voz do britânico mark william lewis). São razões que sustentam um novo pleno no intrigante processo evolutivo de MIKE, mais seguro dos seus valores e destinado a projetá-los com uma crescente nitidez.

Sampha – Lahai

Género: Alternative R&B
Data de Lançamento: 20/10/2023
Editora: Young

Sampha Sisay. Um nome que dispensa grandes apresentações para quem tem seguido o panorama contemporâneo da música internacional, não faltando motivos que o cimentem como uma das imagens de marca da forma como ouvimos e perspetivamos as sonoridades da última década, e uma peça-chave de vários trabalhos que agora reconhecemos como geracionais – entre A Seat at the Table de Solange ou The Life of Pablo de Kanye West, destacam-se ainda colaborações com Kendrick Lamar ou Frank Ocean, e SBTRKT ou Drake (mais no início da sua carreira). O seu Process, aliás, é um elemento tão ou mais determinante para decifrar a real magnitude do britânico, um disco de estreia inegavelmente vanguardista, na forma como funde as suas bases de R&B ou neo-soul com fissuras mais eletrónicas e sintetizadas, mas sobretudo reflexivo e espiritual. É um testemunho envolto de pesar, resultante da morte da mãe, onde já se fazia adivinhar, por entre a ansiedade palpitante de muitos dos seus temas, a visão esperançosa com que voltaria aos holofotes, pouco mais de seis anos após o seu lançamento.

O tempo, aliás, é um dos principais focos de análise de Lahai, um sucessor há muito aguardado de Process, que surge como o progresso lógico das suas sementes artísticas. Assim o reflete, com Stereo Color Cloud (Shaman’s Dream), logo nos momentos inaugurais, debruçando-se sobre a sua natureza finita e em como escolhemos honrar a vida de que dispomos. Em muitas das suas 14 faixas, ouvimos o britânico a abraçar uma panóplia de estilos musicais e referências estéticas. Em Suspended, vemo-lo assoberbado pelo frenetismo da instrumentação, a ponderar a força revigoradora da sua recente paternidade. O relativo minimalismo de Dancing Circles ou Can’t Go Back, num ângulo oposto, carregam consigo uma qualidade hipnótica e onírica, enquanto Spirit 2.0 – um de vários momentos pautados por breakbeats eletrizantes – rodeia esta matriz existencialista com uma vontade incansável de valorizar o que o rodeia (“Faith will catch you, friends will catch you, time will catch you, flash will capture us”). Mas talvez o fio condutor mais saliente de Lahai, um regresso admiravelmente arrojado aos estúdios, passe por Jonathan Livingston Seagull, a famosa fábula do escritor Richard Bach e, também ela, uma viagem de autodescoberta sobre o propósito da nossa existência, agora refletida nos voos altos e ambiciosos em que o artista decide embarcar. Para fazer sentido do nosso ser, em todo o seu esplendor sentimentalista e incrivelmente caótico, é preciso tempo e Sampha certamente soube fazer bom uso do seu.

Ana Frango Elétrico – Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua

Género: MPB; Sophisti-Pop; Disco
Data de Lançamento: 20/10/2023
Editora: Risco; Mr Bongo; Think! Records

Nunca se sabe o que esperar de Ana Frango Elétrico. Talvez seja esta natureza imprevisível, desprovida de rótulos, limites e até barreiras linguísticas, que faz da artista brasileira e da sua arte verdadeiramente livres. Já são três os discos em seu nome, cada um com o seu vinco e estética próprios, mas foi com Little Electric Chicken Heart, em 2019, que ficou provado este caráter transfigurativo das suas criações. Vimo-la atacar em força uma estética quase retro-futurista, deslizando algures entre um jazz sofisticado e um samba eletrizante, para mais tarde os reimaginar por uma lente de psicadelismo radiante. Qualquer que seja a metamorfose artística vestida por Ana Faria Fainguelernt, a espontaneidade consegue ser muito mais do que uma simples garantia.

No seu regresso aos discos, ao fim de quatro anos de ausência, Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua não poupa em loucuras, para benefício de quem o escuta, mas principalmente de quem o idealiza. Virando o foco para as sonoridades do funk e do disco, reforçando ainda a aposta em arranjos orgânicos, não há como negar a heterogeneidade estética que transparece em cada um dos dez novos temas. Os ritmos incendiários de Dr. Sabe Tudo ou Electric Fish – dois dos quatro covers contidos no álbum – contrapõem-se com a suavidade sedutora de Nuvem Vermelha. Já Debaixo do Pano e Let’s Go To Before Again, por exemplo, dão palco a uma palete mais sintetizada. Vêm à mente possíveis influências do passado – de Marcos Valle a Stereolab, Arthur Verocai a Quincy Jones – que de nenhum modo assombram e denigrem as conceções que inevitavelmente inspiram. Independentemente da sua abordagem ou ponto de partida, Ana Frango Elétrico esculpe cada ideia ao seu próprio estilo, tão perfecionista e dinâmico como recheado de anarquia. Não é, aliás, só a música de fundo que se apresenta como amorfa, não fosse Me Chama De Gato Que Eu Sou Sua um disco assumidamente queer, sempre assente na ideia de um amor sem forma, manifestado em todos os seus feitios. Se, por entre os grooves dançáveis de Boy of Stranger Things, esta não-binariedade ganha contornos referenciais, Camelo Azul eleva-a a uma escala cinemática (“Seu cheiro me lеmbra meu lado feminino, mas hoje sou mеnino”), quase como se assumisse, por instantes, o protagonismo do seu próprio film noir. E num disco repleto de intimidade e romantismo, onde o amor e a identidade andam permanentemente de braços dados, é Insiste em Mim que surge como a sua declaração mais altiva, uma serenata à intensidade de qualquer amor, mas acima de tudo, à singularidade de cada um. Encontremo-lo numa voz, num quadril ou então nas suas composições, Ana Frango Elétrico faz questão de transpor, por completo, a unicidade do ser humano na sua música. Todos somos, afinal, um pouco loucos, o importante é saber fazer uso da nossa própria mente brilhante.

Sofia Kourtesis – Madres

Género: House
Data de Lançamento: 27/10/2023
Editora: Ninja Tune

Quando pensamos em música eletrónica, raramente a associamos ou, melhor dito, a analisamos sob uma lente autobiográfica. Vemo-la como uma extensão do caráter libertador das festas noturnas, onde o “nós” se sobrepõe ao “eu” e a celebração comunitária ganha a sua universalidade nos ritmos incessantes, na batida sem fim. Este é, diga-se, um dos dois principais dilemas que tem pintado a ascensão artística de Sofia Kourtesis. Dividida entre Berlim e o seu país-natal, os mais recentes trabalhos da peruana estabelecem a ponte entre ambas as realidades em jogo, e especialmente notável no seu último EP, Fresia Magdalena, onde presta as devidas homenagens ao seu pai, recentemente falecido (chega a ser, também ele, o centro do seu tema maior, La Perla), e se reconecta a pouco e pouco com as suas raízes. São, todos eles, elementos característicos das suas composições, sempre pronta a descartar a rigidez, o intelectualismo e até mesmo a experimentação em favor de uma humanidade cabal. Como um fulminante disco de estreia, Madres volta a encontrar o poder da música house na história de vida de Kourtesis, atingindo, pelo caminho, uma conjuntura inabalável entre as suas progressões extasiantes e a vulnerabilidade que dá alento ao seu ofício.

Ao longo das suas dez faixas, Kourtesis rearticula a euforia pessoal e coletiva na essência da conexão humana. Passagens vocais e gravações realizadas no terreno são retrabalhadas em colagens sonoras absolutamente vibrantes, redefinindo as barreiras do tempo, do espaço e até mesmo o seu propósito. Se Cecilia evoca o papel ativista da sua própria mãe na salvaguarda de tribos indígenas da América do Sul, Funkhaus é uma ode confessa à atmosfera dos clubes berlinenses com que se depara há mais de duas décadas. Na faixa-título e em Se Te Portas Bonito, por exemplo, Kourtesis expressa este seu renovado sentimentalismo com o recurso à sua voz, deixando, noutras ocasiões, o seu cuidado meticuloso com a curadoria de texturas e, sobretudo, a sua costela latino-americana saltar para primeiro plano. Destaque-se as influências cumbia de El Carmen, facilmente identificáveis na sua percussão pujante, ou então para Estación Esperanza, onde contrapõe um protesto anti-homofobia com recortes da incontornável Me Gustas Tù do mexicano Manu Chao. Sendo Madres dedicado à mãe de Kourtesis, e onde a artista não esquece o neurocirurgião que superou a sua batalha com o cancro em Vajkoczy, vemos How Music Makes You Feel Better como a tese unificadora de todo o álbum. Nunca negando o contexto pessoal que envolve todo o disco, a peruana evoca-o como algo purificante. É música que não só reflete e abre uma porta para a sua multidimensionalidade, mas retira dela uma compaixão ímpar, tão inerente às pistas de dança e, acima de tudo, à espécie humana como um todo.

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