Vodafone Paredes de Coura 2024 (2º Dia): ‘Victory laps’, deceções e descargas purgativas
O segundo dia da 31ª edição do Vodafone Paredes de Coura ficou marcado pela intensidade confessional da atuação de Wednesday, o regresso triunfante dos franceses L’Impératrice onde já foram felizes, a coroação do rei atual do hip-hop português e a experiência tépida do primeiro concerto de Sleater-Kinney em território nacional.
Depois de um merecido descanso no campismo (onde o sentimento de comunidade é predominante), e após uma primeira noite dominada por voos altos e reinvenções frustrantes, a CONTRABANDA regressou ao Vodafone Paredes de Coura 2024 para testemunhar estreias e regressos há muito antecipados nas margens do Taboão, envoltas de celebrações massivas e uma energia incomparável. Seguem-se os principais destaques deste segundo dia do festival.
Wednesday e a arte da angústia coletiva
Na caixa de memórias dos Wednesday, vivem canções carregadas de memórias e, neste confronto permanente com a mundanidade da vida provinciana no sul dos Estados Unidos, um pacto inquebrável entre quem partilha a confissão e quem a escuta. Mesmo que estreitamente vinculadas a um dado lugar e tempo, a beleza das reflexões da vocalista Karly Hartzman – e, por extensão, do quinto álbum deste seu projeto, Rat Saw God – “revela-se nessas imprecisões e entrelinhas, ecoando “as camadas dispersas e contraditórias, os episódios triunfantes e os segredos humilhantes” da experiência humana (e o poder que advém de as enfrentar)”.
Pouco mais de um ano depois da sua triunfante estreia nacional, no Primavera Sound Porto (“o melhor de todas as edições em que tocámos”, confessa Hartzman), rumaram a um palco Yorn mais compacto, que em muito enalteceu a faceta mais impetuosa do quinteto da Carolina do Norte. Hot Rotten Grass Smell, Quarry e Bath County, por exemplo, são exercícios supremos de intensidade com um toque de shoegaze, fazendo das “guitarras rompantes um veículo para proclamar o sofrimento ou recontar episódios trágicos” – é algo, aliás, também partilhado pelo restrito leque de temas inéditos que fizeram questão de desvendar. Já Chosen to Deserve – que imagina um mundo “onde os Pavement tivessem enveredado pelas sonoridades do country” – permanece como um dos expoentes máximos de intimidade em Rat Saw God, com uma plateia em constante crescimento a processar cada revelação traumática e segredo humilhante com uma empatia cabal. Assim se germina uma das magias centrais dos Wednesday: esta capacidade de “compreender inteiramente o que nos é alheio” e de reduzir, tanto os “episódios triunfantes como os segredos humilhantes”, à beleza contraditória da experiência humana.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Na reta final do alinhamento, Hartzman sublinha as atrocidades que decorrem em Gaza e o papel do seu país-natal em fomentar o genocídio – “alimentam este massacre com milhões de dólares em armamento e nem a suposta melhor candidata defende que se pare com isto” – e encoraja que gritem a seu lado no clímax epopeico de Bull Believer. Não só a plateia se entregou à causa, com remadas incansáveis e um moshpit corpulento, como provocou uma descarga de tensão sem paralelos, encabeçada pelos mantras repetidos de “finish him”, rapidamente transformados em gritos guturais e que nem a desconexão de um cabo na guitarra de Hartzman conseguiu impedir. “Por momentos, este mundo trágico em que vivemos, extraordinariamente encabeçado pelas narrativas sentidas dos Wednesday, ganhou uma nova réstia de esperança”.
A estreia pouco inspirada das lendas Sleater-Kinney
Foi preciso esperar praticamente três décadas para ter a presença de uma das bandas centrais do movimento riot grrl no nosso país. O que Carrie Brownstein, Corin Tucker e Janet Weiss começaram em 1994 ainda hoje tem as suas réplicas na música punk feminista da atualidade. Culpe-se uma série invencível de discos, de Dig Me Out e The Hot Rock, que já iam reescrevendo as táticas tradicionais e heteronormativas do rock tradicional norte-americano com um enorme brilhantismo, a um The Woods, em 2005, onde implodiram por completo com toda e qualquer expectativa do que uma banda do seu estilo deve ser ou encarnar. Prestar atenção ao recente percurso das Sleater-Kinney e não sentir, contudo, que o seu património se vai desmoronando ano após ano é, a este ponto, uma tarefa quase impossível. Entre a frustrante saída de Weiss em 2019 e a evolução pouco inspirada dos seus traços sónicos nos recentes Path of Wellness e Little Hope, não se poderia imaginar uma ocasião mais assombrada de incerteza para a estreia nacional das norte-americanas, ainda por cima num festival que procura sempre relembrar as muitas figuras incomensuráveis da música de guitarras.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
O que se verificou foi, infelizmente, um exemplo manifesto de um concerto tépido. Por cada aparição esporádica dos muitos clássicos do seu catálogo (escutaram-se as sempre desejadas Dig Me Out, Modern Girl ou Jumpers), surgiam outras tantas tentativas falhadas de capturar o espírito antigo das Sleater-Kinney, ao som de The Center Won’t Hold ou Say It Like You Mean It. A postura da dupla central também não ajudou. Pareciam desligadas do espetáculo em si, evitando esforços de maior e um público que não chegou para preencher várias das secções do anfiteatro e, verdade seja dita, ansiava outros ídolos mais contemporâneos. Brownstein ainda provou ser uma absoluta força da natureza sempre que se rende à guitarra e Tucker ainda conseguiu atingir a força vocal que possuía quando gravava os primeiros discos, mas é impossível negar que a esperança de uma exibição esplendorosa das Sleater-Kinney em Portugal caiu por terra ainda antes de sequer pisarem o Palco Vodafone.
O regresso da pista de dança dos L’Impératrice ao seu local predileto
Há cerca de dois anos, os L’Impératrice davam aquele que ponderam ter sido “o melhor concerto da carreira” até ao momento, no mesmo anfiteatro e perante uma verdadeira maré de fãs que estiveram “completamente ao seu serviço”. A confissão vem da vocalista Flore Benguigui, mas o amor que os franceses sentem por Paredes de Coura é mais do que recíproco entre as duas caras-metades deste romance prolongado. Os ritmos e coreografias prazerosas do nu-disco, aliás, têm gerado inúmeros casos de sucesso nas últimas edições do festival – olhe-se, por igual, para os casos de sucesso dos Jungle em 2018 e dos Parcels no ano seguinte. Aponte-se ou não um certo pastiche nostálgico, não há como negar que bandas como os L’Impératrice conquistam multidões por onde passam, por tocar precisamente em algo inequívoco para a espécie humana: a vontade e, sobretudo, a necessidade de nos sentirmos bem.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Perante a oportunidade de regressar onde já foram felizes, trazendo consigo um Pulsar largamente inspirado pelas experiências vividas na digressão internacional de apoio a Tako Tsubo, a vontade de repetir aquela noite memorável de 2022 chegou para conseguir replicar a mesma receita de um sucesso aparentemente eterno. A partir do momento em que entram em cena com as suas vestimentas retrofuturistas e iluminações policromáticas, a relativa vulgaridade da música do sexteto até acaba por reforçar a universalidade da experiência em si e a sua permanente, mas desejada sensação de dejá-vu. Testemunham-se, ao som de Cosmogenie, Anomalie Blue ou Voodoo?, paços de dança intermináveis, braços elevados ao céu, lanternas em riste e, como em poucos outros instantes desta edição, uma diversão absolutamente contagiante e que se estende por todos os refúgios do anfiteatro natural de Coura. A dimensão colossal da plateia em muito contribui para o seu efeito, claro está, e para contrair uma musicalidade algo genérica – nada mais cliché para o equivalente real dos Crescendolls, a banda fictícia de Interstella 5555, do que uma fiel reprodução de Aerodynamic dos Daft Punk, por muito que qualquer referência à dupla lendária seja bem-vinda. De pouco importa, contudo, não enaltecer a eficácia inigualável desta discoteca a céu aberto dos L’Impératrice: basta escutar as vibrações de Agitations tropicales neste registo para qualquer um perceber o seu propósito e ficar rendido numa questão de segundos.
A pluralidade identitária de Slow J
O que dizer mais acerca dos últimos meses colossais de João Batista Coelho? Duas datas totalmente esgotadas na MEO Arena, múltiplos recordes quebrados, uma série ininterrupta de aclamação. Tudo isto se une em torno de um Afro Fado que reflete sobre todo o passado identitário de um país saudosista e projeta-o, com uma enorme autoconfiança, para um “novo expoente celebrativo e profundamente inspirador”, já a pensar num futuro abertamente multicultural. “O que pode inicialmente parecer uma mensagem elementar, torna-se, nas palavras sábias de Slow J, numa verdade amplamente encorajadora e resiliente”. Todo o sucesso que se seguiu só veio confirmar a necessidade de discos e statements deste tipo, não sendo por acaso que a sua estreia em Paredes de Coura, com um lugar de protagonismo há muito merecido e desejado, fosse quase como a cereja no topo do bolo nesta sua caminhada triunfante.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
“Aos anos que eu queria pisar este palco!”, entoava logo após ter aberto as hostes ao som Fogo, já com a energia instalada para Where U @ e um público totalmente entregue à tarefa de assegurar a especialidade do momento. Tal como as temáticas de Afro Fado, a própria visão sónica de Slow J transcende todo e qualquer rótulo estilístico. Ouviram-se, por entre os importantes contributos da sua banda de suporte, as fusões rock eletrizantes em Fome a contrastar com as frequentes utilizações da guitarra portuguesa ao longo do alinhamento (e nomeadamente em Sereia). Quer embarcasse pela vulnerabilidade de Sem Ti ou se remetesse aos múltiplos clássicos intemporais que tem em seu nome, comandando cada segundo da performance com a segurança de quem já tem a noite ganha, desde o instante em que pisa o palco perante o prender de olhares dos demais (e o constante ecoar dos seus versos vindos da plateia). Pode não ter sido uma celebração com os contornos quase epopeicos dos já referidos concertos em Lisboa, mas qualquer oportunidade para voltar a coroar o recente esplendor de Slow J não só é necessária, como mais do que bem-vinda – ainda por cima num festival onde o hip-hop levou o seu tempo para atingir este protagonismo.