Vodafone Paredes de Coura 2024 (1º dia): Um regresso entre voos altos, reinvenções frustrantes e o gospel celebrativo

Para os que vivem a época de festivais de verão com pleno ardor, o mês de Agosto é sinónimo de um regresso ao “couraíso”, da mesma forma que a vila que lhe dá nome é, também ela, sinónimo de música. Para quem já se deixou contagiar por este paraíso temporário ao longo dos seus 31 anos de história, as memórias eternizadas falam por si. Mais do que uma incontornável celebração das velhas lendas e novas vanguardas da música nacional e internacional, parte da magia que caracteriza o Vodafone Paredes de Coura passa precisamente pelo verdadeiro espírito de comunidade vivido no Taboão. Não existe melhor sensação do que voltar a pisar o recinto, ano após ano, e encontrar esta sinergia entre natureza e arte com o mesmo encanto de sempre. Fale-se do campismo, dos mergulhos no rio ou da comunhão vivida em cada recanto da vila, a experiência comunitária vivida aqui é indissociável da sua imagem de marca e, diga-se, dificilmente replicável em qualquer outro contexto.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

As últimas edições, porventura, têm demonstrado uma necessidade inerente de renovar a sua própria identidade, algures entre um formato que apele aos festivaleiros mais tradicionalistas e um expansão estilística que seja capaz de quebrar um certo classicismo de guitarras e consiga, na mesma, manter o vanguardismo que tão bem caracteriza o legado do festival. Tal como já tinha acontecido em 2023, o hip-hop é cada vez mais uma aposta ganha para os lados do Taboão, contando, desta vez, com figuras de peso como Killer Mike, o português Slow J ou figuras estilisticamente adjacentes, como o britânico Sampha ou o lendário André 3000, que assina o seu primeiro projeto a solo enquanto flautista. No entanto, os regressos de IDLES ou L’Impératrice, dois anos após as suas últimas atuações em Coura, são apostas mais do que seguras e algo saturadas no mercado nacional, enquanto a música portuguesa na programação principal continua a pecar por algum conservadorismo curatorial e pouca representatividade paritária, felizmente colmatados pelos espetáculos inaugurais no Sobe à Vila e pela programação apaziguadora do Jazz na Relva. São também de salientar a presença de nomes emblemáticos do passado como Slowdive, The Jesus and Mary Chain ou Sleater-Kinney ao lado de promessas certas do rock contemporâneo como Wednesday, Mdou Moctar ou os irlandeses Fontaines D.C.. Algures entre o passado, o presente e o futuro da música, iniciou-se dia 14 de agosto mais uma aguardada edição do Vodafone Paredes de Coura. Seguem-se os principais destaques deste dia inaugural.

A reintrodução indiferente de André 3000 enquanto aprendiz da flauta

Aos 48 anos de idade, André 3000 decidiu mudar de vida – ou, pelo menos, tentou abraçar uma bela sequência de acasos. Só assim se explica como a lenda dos OutKast, que tanto contribuiu para a evolução vertiginosa do hip-hop nas últimas três décadas, suba ao Palco Vodafone enquanto figura maior deste primeiro dia de festival, não para desencadear versos erráticos e proféticos, mas sim para assumir o papel de um orgulhoso flautista em aprendizagem – e pouco mais do que isso. Apesar da sua relação com o instrumento de sopro ser uma história de amor há muito documentada, parece já um facto consumado que a imprevisibilidade do destino informou um New Blue Sun que o viu trocar as rimas pelas sonoridades meditativas do new age, do ambient do spiritual jazz a viver uma fascinante renovação ao leme de nomes como Kamasi Washington, Shabaka Hutchings ou Nala Sinephro. Porventura, e ao contrário dos talentos da atualidade ou das figuras ancestrais que inspiraram o seu primeiro projeto a solo, André não passa de um estudante do ofício, mais rendido à espontaneidade amadora do momento que à exibição de uma mestria irrefutável.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

O que se desencadeou na estreia de André 3000 em solo nacional foi, precisamente, uma sessão de improvisação para lá dos 80 minutos – liberta e sem formalidades ou premeditações – que caiu na indiferença da maioria e deixou o percussionista Carlos Niño (o grande responsável pelo rumo tomado em New Blue Sun), Nate Mercereau, Surya Botofasina e Deantoni Parks com a difícil tarefa de reduzirem um fosso evidente entre o líder da banda e os profissionais que o elevam. Certo é que, para lá de ter sido uma apresentação demasiado despreocupada para o seu próprio bem, a completa indiferença do público esbarrou com qualquer tentativa de imersão. Por entre a instrumentação abstrata, carregada de efeitos e luzes caleidoscópicas, e os gritos guturais de André 3000 (ecoados numa “nova linguagem” que diz ser uma conjunção de todos os dialetos que ouviu até hoje), as conversas ensurdecedoras que se estendiam por um anfiteatro adormecido revelavam, mais do a injustificabilidade do comportamento em si, uma apatia e displicência crónicas perante tudo o que ali ocorria. Pouco antes de sair de cena, o norte-americano reflete sobre a importância da intuição para atingir todo e qualquer objetivo que tenhamos em mente. O reverso da medalha indica, contudo, que nem todas as ideias fazem sentido e chegam a bom porto. E por mais que se enalteça o arrojo da performance ou, claro está, a herança eterna do seu inventor, não há como negar que, para lá de uma ou outra instância de ‘brilhantismo’ momentâneo, a exibição de puras coincidências, adversidades e falhanços que André 3000 encabeçou enquanto flautista foi tremendamente frustrante.

A segunda investida dos 800 Gondomar no Couraíso (agora com lugar de destaque)

Ainda não tinham passado 24 horas da subida dos 800 Gondomar para um dos derradeiros concertos do Sobe à Vila quando, quase como que por magia, tudo se alinhou para mais um reencontro arrebatador com Frederico Ferreira, Alô Farooq e Rui Fonseca, graças ao cancelamento tardio da atuação dos londrinos bar italia, devido ao internamento de um dos seus membros. Para lá de ser um momento de sorte imediatamente desejado por todos os envolvidos, a verdade é que os fresquíssimos temas de São Gunão – um ansiado surpreendente regresso aos discos quando menos se esperava que regressassem de uma pausa prolongada – voltaram a propagar o seu punk atrevido por uma maré humana de compaixão, moshpits libertadores, explosões coletivas de alegria e celebrações afáveis do valor supremo da amizade. Viajou-se de novo às circunscrições do Rio Tinto para ouvir temas como AX GTI e Mataram o Fábio, provando que não só é o trio gondomarense orgulhosamente indissociável da sua cidade-berço como as muitas histórias que por lá habitam ganham um contorno universal que consegue reunir multidões, tanto em Paredes de Coura como em qualquer destino futuro.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

Os voos oníricos de Sampha em todo o seu esplendor sentimentalista

São poucos os artistas que tanto e tão discretamente moldaram a forma como “ouvimos e perspetivamos as sonoridades da última década” como Sampha Sisay, falemos das contribuições essenciais que elevaram trabalhos maiores de várias figuras dadas hoje como geracionais ou, sobretudo, dos seus trabalhos a solo (repletos de fusões extraordinárias das suas bases de R&B e neo-soul com “fissuras mais eletrónicas e sintetizadas”). Cada minuto cedido ao esplendor do britânico conjuga sentimentalismo, reflexão e espiritualidade na magnitude de uma só voz, vulnerável e reconfortante, capaz de navegar pelas margens da emoção e, como nos provou o sucessor há muito aguardado de Process, na finitude do tempo. Assim o reflete ao longo de Lahai, um regresso aos holofotes pintado de fé e existencialismo, onde “volta a levantar voo na sua viagem de autodescoberta de proporções oníricas (espelhando, em grande medida, as lições metafóricas de Jonathan Livingston Seagull, a famosa fábula de Richard Bach)” e instrumentação tão oscilante como cinemática.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

Se Sampha soube fazer bom uso do seu interregno dos lançamentos e atuações em solo português (coube-nos esperar seis anos depois da sua última atuação no NOS Alive), tudo parecia alinhar-se para uma recompensa à altura da antecipação e da raridade do momento. Entrando em cena ao som de Plastic 100ºC, cada elemento que o rodeia posiciona-o deliberadamente entre o analógico e o digital. Na dupla de Stereo Colour Cloud (Shaman’s Dream) e Spirit 2.0, as sequências frenéticas de breakbeats reproduzidos na bateria propagam uma energia inigualável pelo terreno que tem à sua disposição – tremendamente adequado, diga-se, num concerto onde as forças da natureza em muito contribuem para uma certa beleza metafísica. Já as danças rítmicas de Dancing Circles, por exemplo, prescrevem uma descontração difícil de resistir nos setores mais próximos da onda humana apaziguada no Palco Vodafone, ao passo que Without proporciona um glorioso número de percussão entre o britânico e o seu quarteto de suporte, antes de se deixar desanuviar nas teclas suaves com que culmina. Mesmo quando rodeado por uma panóplia de equipamentos, porventura, a produção de palco nunca se esquece do fator mais determinante da música de Sampha: a sua alma benevolente e indescritivelmente comovente. É o que dá a (No One Knows Me) Like the Piano ou Inclination Compass (Tenderness) um poderio confessional que pode bem ter provocado a maior descarga de lágrimas silenciosas da noite. Chega a ser, aliás, magnífico de testemunhar como Sampha, ao longo da sua carreira, ultrapassou a timidez inicial e comanda agora toda e qualquer ação com uma segurança taxativa, na forma como se dirige graciosamente ao público antes de selar o alinhamento com a estratosférica Blood On Me, como une o quinteto que lidera em palco e, em especial, como consegue ser um esplêndido manipulador do coração humano.

A igreja autobiográfica de Killer Mike

Ao longo de mais de duas décadas, Killer Mike passou do novato prodigioso que deslumbrava ao lado de Jay-Z, dos OutKast e dos vários associados da Dungeon Family a um símbolo indiscutível da sua cidade-berço. E ainda que as suas desafiantes investidas ao lado de El-P nos Run the Jewels tenham colocado a sua carreira a solo num hiato indeterminado, Michael recolocou o veterano de Atlanta para junto da sua herança e origens, sinalizando o percurso traumático do homem por detrás da benevolente, ainda que contraditória, personalidade pública, que tanto se tem erguido contra as injustiças da sociedade e do sistema em que se insere.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

A sua estreia portuguesa em nome próprio acabou, sem grandes surpresas, por seguir o mesmo módulo narrativo de Michael – tal como do seu fresquíssimo epílogo (Songs For Sinners & Saints) – e ser, em simultâneo, uma ambiciosa extensão do mesmo, transformando Paredes de Coura num epicentro celebrativo com contornos religiosos, desde o seu fiel coro dos Mighty Midnight Revival às vestimentas brancas usadas por toda a equipa de palco. Apesar das falhas técnicas que afetaram o seu microfone durante DOWN BY LAW e NRICH, logo na primeira metade do alinhamento, a purificação em tempo real de Killer Mike foi um exercício prolongado de humildade e aceitação, em tons notoriamente menos abrasivos do que o seu restante catálogo – pouco presente para além de uma dupla de temas de R.A.P. Music e as suas colaborações incendiárias em Kriptonite (I’m On It) dos Purple Ribbon All-Stars e Kill Jill de Big Boi. Foram, por igual, muitas as dedicatórias sentidas. Vimo-lo relembrar as figuras maternas da sua vida em Motherless e alertar para os riscos assombrosos do vício em Something for Junkies. Foi a bordo de Shed Tears, contudo, que o rapper melhor conseguiu englobar todas as batalhas e experiências do seu passado e oferecer a toda uma maré humana uma oportunidade de redenção. E num primeiro dia de música no palco principal onde o espírito de Atlanta foi omnipresente (o verso de André 3000 em SCIENTISTS AND ENGINEERS foi tocado na íntegra, em memória da ocasião), Killer Mike provou ser o seu cristo redentor.

A libertação perturbadora dos Model/Actriz

Enquanto muitos festivaleiros já se dirigiam para o parque de campismo a altas horas da madrugada, o Palco Vodafone preparava-se para ser tomado de assalto pelo desconforto. É quase um dado adquirido em qualquer concerto dos Model/Actriz, mas a circunstância não deixa de ser convidativa para os mais irreverentes. Dogsbody, o ferocíssimo disco de estreia da banda agora sediada em Brooklyn, é freak punk do mais alto nível, cruzando “fisicalidade, confronto e uma boa dose de teatralidade” e chocando-as com as “extremidades da emoção humana” e do desejo carnal. Não há como negar a potência revigoradora que coloca cada atuação do vocalista Cole Haden, sempre com um “traço assumidamente queer, algures entre a ousadia do erotismo e a necessidade inerente de implodir com tudo o que o circunda.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

É uma energia eletrizante que conduz a terceira passagem da banda pelo nosso país e se alastra por onde passa sem pedir licença. Bastam os primeiros minutos de Donkey Show para se tornar claro o domínio de Haden sobre a euforia do público, a instrumentação gritante e precisa, mas também perante qualquer força que lhe faça frente. À medida que a sua celebração – que tanto tem de devota como de desconcertante – vai desencadeando erupções de sofrimento mascarado pelo prazer do momento, vemo-lo descender à plateia de tacões, para um efusivo percurso de convites e ameaças durante Amaranth que forçaram os cabos do seu microfone ao máximo, ou envolver-se nos seus rituais de dança frenéticos ao longo de Crossing Guard. A sua presença em palco, com uma multiplicidade de adereços à mistura, chega a ser hipnotizante, assim como os ecos anatómicos dos seus movimentos antagonicamente intimidantes e irresistíveis, mas talvez a maior alavanca dos Model/Actriz seja a forma como conseguem transformar o excesso destrutivo que vão alegremente propagando em sermões de pura e terna intimidade. Formam-se, pelo meio, verdadeiros momentos de comunhão catártica com o público, abraçando a nossa própria natureza fraturante e, nas mãos de Haden e companhia, ficando à porta dos seus limites hedonistas.


*Nota: André 3000 e Sampha não permitiram a captação de imagens.

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