Vodafone Paredes de Coura 2024 (3º Dia): Celebrações universais, propostas nostálgicas e a importância da diversidade
Numa sexta-feira de concertos no Taboão onde o calor foi predominante, os britânicos IDLES reuniram uma verdadeira enchente de fãs para o seu regresso vitorioso ao Taboão. A rebelião congregadora dos Mdou Moctar, a festa queer de girl in red, as propostas retrofuturistas de Nourished by Time, o tributo atribulado de Cat Power a Bob Dylan e a atuação dos portugueses Conferência Inferno contabilizam os restantes destaques deste terceira dia da 31ª edição do festival.
Depois de um segundo dia onde as ‘victory laps’, as deceções e as descargas purgativas foram prevalentes no “Couraíso”, a CONTRABANDA voltou a marcar presença no Vodafone Paredes de Coura 2024 para mais um dia de programação que prometia as maiores audiências de toda a semana (a julgar pela relação afetuosa de longa data entre os IDLES e o público português). Foram, no entanto, muitos os concertos a enaltecer para além da presença inescapável dos britânicos, ao longo de um fim de tarde e noite que se manteve com temperaturas altas e emoções ao rubro.
A receção dançante dos Conferência Inferno
Nos mais de cinco anos desde que os Conferência Inferno deram os primeiros passos (ainda como dupla), o agora trio portuense rapidamente se tornou muito mais do que um mero símbolo local, do circuito artístico da cidade que os viu nascer e, por extensão, do coração musical da região norte do país. Ata Saturna já os tinha consagrado como um fenómeno contracultural de dimensões nacionais, mas foi com o seu sucessor – um Pós-Esmeralda “mais dançável e fervilhante” – que conseguiram crescer para além das suas raízes góticas e noturnas, “numa clara expansão sónica pelos territórios da new wave ou do synth pop” que ainda bebe das influências de uns quantos trabalhos maiores dos GNR. É um segundo disco que, ao surgir das “inquietações perpétuas de um cenário pós-pandémico”, ganha contornos de refúgio e emancipação de cada vez que é tocado e aperfeiçoado ao vivo.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Difícil é associar as malhas de Francisco Lima, José Miguel Silva e Raul Mendiratta a um horário que não seja tardio, mas a sua passagem pelo festival deparou-se, tal como uma considerável maioria dos artistas portugueses presentes no cartaz, com um slot a meio da tarde no Palco Yorn. Nada foi capaz, felizmente, de impedir que o baile dos Conferência Inferno fosse um expoente máximo de combatividade punk e companheirismo, bem à luz do sol. Bastaram as primeiras teclas inebriantes de Cowboy Bêbado, comandadas por José e sempre em articulação com os sintetizadores de Raul, para contagiar as filas dianteiras com um arrasta-pé extasiante, letras cantadas a plenos pulmões e até um fã com um vinil em riste. Houve o romantismo de Fantasias (com direito a dedicatória ao diretor do videoclipe, Pedro Fonseca) – uma viagem sónica por festas tropicais e devaneios exóticos, narrada pela voz penetrante, empoeirada de Francisco – e recuperou-se Cetim, um dos primeiros e ainda intrigantes rascunhos de todo o processo evolutivo que surgiu desde então. O fio condutor desta passagem do trio por Coura, porventura, veio sob a forma de Distopia, um hino adequado à “euforia, tensão e existencialismo” que partilhamos no mesmo compartimento, na esperança de apagar as permanentes mágoas e ruínas da atualidade através da oportunidade irrecusável para dançar em comunhão – a melhor solução, diga-se, para o calor sentido ao longo deste terceiro dia de programação. Quando deixam o cenário a relembrar o genocídio do povo palestiniano (vê-se a bandeira da Palestina bem erguida nas mãos dos três), reforça-se a sensação que escapes à escuridão, como o que os Conferência Inferno propõem, são mais necessários do que nunca.
A promessa nostálgica e revigorante de Nourished by Time
Marcus Brown não precisou de muito tempo para se afirmar como um dos segredos melhor guardados atualmente do R&B norte-americano – se é que o podemos enfiar num só rótulo estilístico. Erotic Probiotic 2 certamente devaneia para além disso, num álbum de estreia que “consegue a rara proeza de revitalizar os sons do passado e, ao mesmo tempo, fazer avançar os padrões a que se compromete”. Ouvem-se, na fisionomia DIY da sua música, nuances de synth pop dos anos 80 e 90, soul, hip-hop e eletrónica (“algures entre Arthur Russell, The Blue Nile e Blood Orange”) a formarem um padrão nostálgico e refrescante de elementos deambulatórios, tão bem cimentado com a estranha suavidade da sua voz profunda.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Para os que quiseram marcar presença na sua estreia em solo nacional e não tinham qualquer contacto prévio com o trabalho de Nourished by Time, a passagem de Brown ao fim da tarde pelo Palco Yorn, apesar de ter sido melhor adequada para um horário noturno, soube transmitir na perfeição todos os seus traços definitivos. Enquanto os instrumentais inebriantes de The Fields e Hand on Me ecoavam para uma audiência em lento crescimento, Brown parecia quase possuído pelas sensações subjacentes a cada uma das suas canções. Os seus movimentos corporais manifestavam-se sem qualquer premeditação e os próprios solos de sintetizador desencadeados durante Shed That Fear e Daddy eram igualmente erráticos, quase como se fossem recursos de desprendimento no meio do seu compacto estaminé (com pouco mais do que o computador portátil, um teclado e um microfone). Trata-se de um caso manifesto de um one-man show, intimista por natureza, mas contundente e inquieto na sua execução – mesmo que dividisse humildemente o sucesso do mesmo, numa das únicas e breves interações, com as equipas de segurança e produção. Não tendo beneficiado das enchentes de outras ocasiões, foram muitas as cabeças a abanar tranquilamente ao som de Quantum Suicide ou Rain Water Promise, para contentamento da própria alma e de um talentoso nato que, apesar de uma carreira e portfólio reduzidos, promete muito para lá destes seus altivos primeiros passos.
O tributo conturbado de Cat Power a Bob Dylan
17 de maio de 1966. Data venerada por qualquer fã de rock tradicional norte-americano como sendo do concerto incontornável do eterno Bob Dylan no Royal Albert Hall – mesmo que não tenha sido gravado em tal sítio, mas sim no Manchester Free Trade Hall. É o dia em que o norte-americano vestiu o papel injustiçado de Judas e ‘virou elétrico’, para a repulsa dos presentes e a apreciação de todas as gerações que se seguiram. Uma das suas admiradoras mais confessas é Chan Marshall, que muito tem procurado consolidar a sua conhecida faceta saudosista e prosseguir com a longa tradição de honrar os artistas do passado e do presente. Cat Power Sings Dylan é tão linear como qualquer outro disco de covers, incorporando os conjuntos acústico e elétrico numa só reprodução fiel deste concerto mítico, de maneira a reintroduzir os seus efeitos a novas audiências espalhadas um pouco por todo o mundo. O mesmo elogio às avessas se pode aplicar à digressão que aterrou no anfiteatro natural de Coura ao cair da noite de sexta-feira, oscilando entre o desastroso e o apaziguador.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
[Nota: Cat Power não permitiu a captação de imagens]
Ainda tinha acabado de entrar acompanhada da sua banda de suporte e Marshall – com o cabelo cortado, um fuck war prensado nas traseiras do seu top e deambulando pelo palco com o seu fiel chá na mão – já estava assombrada por problemas técnicos. Vimo-la interagir sucessivamente com os técnicos nas laterais e tentar expor os muitos problemas que faziam da sua voz e de alguns instrumentos em seu redor algo inaudíveis em certas passagens de Mr. Tamborine Man, Visions of Johanna ou She Belongs To Me. Não há como negar que a primeira metade do alinhamento foi dominada pelo damage control: o incómodo era generalizado e quer o público como a artista rezavam por uma secção elétrica que viesse salvar o festival de um concerto falhado. Felizmente, as preces foram respondidas e, mal Tell Me, Momma começou a ser cantada, parecia que tudo em seu redor ganhava uma segunda vida. Leopard-Skin Pill-Box Hat e Just Like Tom Thumb’s Blues fizeram-se ecoar com prepotência (apesar das queixas visíveis de Marshall em relação aos focos de luz), enquanto Ballad of a Thin Man mantém-se, aos olhos de Marshall, tão ambígua e sinistra como sempre. Como não podia ser de outro modo, foi com Like A Rolling Stone que selou a improbabilidade da reviravolta ali testemunhada, rodeada por um coro acanhado – sem a presença pedida dos IDLES – ainda a recuperar da estranheza inicial do espetáculo. Até nesse aspeto (e ainda que por diferentes motivos), a interpretação de Cat Power captou os mesmos efeitos com que Dylan, há 58 anos atrás, conseguiu fazer história.
A pop cliché e queer de girl in red
Em pouco mais de meia década, Marie Ulven Ringheim voou da Noruega para o mundo e dos cantos mais indie das plataformas de streaming para o estrelato comercial, com a presença do seu nome entre as elites da pop internacional a dizer mais do simbolismo a ela associado do que propriamente da existência de uma identidade artística bem delineada. Conhecer ou gostar de girl in red tem-se tornado, desde que iniciou a carreira, um código geracional para toda uma comunidade queer. É música cintilante e melodramática que, mais do que propriamente original num sentido lato, ganha o seu maior apelo na honestidade com que capta emoções que nos são universais, dos devaneios amorosos ao empoderamento de nos assumirmos por aquilo que nos define (e não pelo que as normas sociais nos impingem).
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
A verdade é que Ringheim reuniu um público à medida para a sua segunda passagem por Portugal, muito desconexo relativamente aos restantes espetáculos deste terceiro dia de música no Taboão, mas fiel àquilo que a existência de artistas como ela despertam em muitos dos presentes. A acessibilidade de tudo o que faz ganha, quando transposto para um registo ao vivo, contornos demasiado maximalistas para o seu próprio bem. Nenhuma canção da norueguesa grita a necessidade de pirotecnia de uma ponta à outra do palco, umas escadas ou um balão iluminados de grandes dimensões – a simplicidade vale, por vezes, mais do que mil adereços. Bastava somente a entrega de Ringheim para fazer valer a ocasião aos fãs mais devotos que se amontoavam nas filas da frente a ecoar cada letra e refrão de bad idea!, Too Much ou dead girl in the pool. Foi nos discursos paralelos, contudo, que a personalidade carismática da norueguesa melhor esteve à vista. Ora desabafava sem nexo sobre as desculpas forçadas de jetlag e a vontade de ir assinar vinis para o fosso, ora se continha nas ocasiões em que se afirmava como lésbica – “já esgotei o limite de duas vezes que estava no contrato” – e a necessidade de se ser cringe (dito com uma inocência mais millennial do que gen Z) nos dias que correm. Era alento suficiente para espevitar a multidão à sua frente antes das explosões altivas de sentimentalismo de we fell in love in october ou i wanna be your girlfriend e o necessário para colmatar alguns dos seus traços mais genéricos. E a julgar pela onda de aplausos com que se despediu, a missão de girl in red em Coura, apesar da sua execução antagónica, foi mais do que cumprida.
A vitória expectável dos IDLES
A história tem-se repetido inúmeras vezes num curto espaço de tempo: os IDLES atuam em Portugal e dão um espetáculo exemplar. O sucesso inabalável da receita é motivo suficiente para se terem tornado numa das bandas-fetiche das promotoras nacionais, mas também não há como escapar à previsibilidade de tudo o que os circunda. O regresso dos britânicos ao Vodafone Paredes de Coura, no qual já tinham marcado presença em 2022, é a quinta passagem por território nacional em pouco mais de dois anos. A juntar a isso, os últimos lançamentos da banda têm enaltecido a necessidade urgente de evoluírem na sua identidade. Se CRAWLER já não tinha sido tão cativante como outras glórias antigas, então TANGK tenta uma renovação subtil, baseada no poder revigorador do amor, por entre o crescente cansaço das fórmulas certeiras, mas acaba por conduzir Talbot e companhia a vários becos sem saída. E ainda que se reconheça o esforço, o que podem os IDLES fazer quando os seus melhores trunfos se vão tornando em muletas de fácil acesso?
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Seis meses após terem inaugurado a digressão de apoio ao seu quinto disco na Super Bock Arena, rumaram novamente ao Taboão para convencer gregos e troianos, repetentes e estreantes, com mais uma exibição de alto nível que soube fazer uso de todos os elementos-chave do seu repertório (e que elevam os seus concertos a um patamar quase sagrado). Se deram as boas-vindas com a fresquíssima IDEA 01, seguiu-se Colossus e uma Mother dedicada a Cat Power, para começar a mover uma verdadeira onda humana em torno dos empolgantes mosh pits – com alguma falta de etiqueta à mistura e um Talbot a tentar impor o bom-senso aos fãs mais excessivos (“olhem uns pelos outros, por favor”) – e das sucessivas investidas de Lee Kiernan pelos crowd-surfs. A par de um claro foco no essencial, foi também um concerto de motes pronunciados. Os ecos infinitos de “fuck the king” em Gift Horse, os múltiplos e tão necessários desejos de vida longa à Palestina e morte ao fascismo ou, claro está, os naturais realces e elogios ao calor que ali receberam de tantos “seres humanos lindos”. Como não ficar contagiado, quer seja a primeira ou a vigésima vez a vê-los ao vivo, pela comunhão festiva que se gera em torno dos seus hinos inquestionáveis? Gritar os refrões de Never Fight a Man With a Perm, dar azo a mais uma “celebração dos imigrantes que construíram o Reino Unido e Portugal” com Danny Nedelko, recordar a assertividade com que recuperam Mr. Motivator ou Rottweiler, para fechar com chave de ouro o triunfo mais calculável da noite. São déjà-vus que incomodam sempre (nem os IDLES escapam a essa regra), mas para quê negar por completo aquilo que nos dá vida?
O rock eletrizante dos Mdou Moctar
Quem saiu do recinto a coroar os IDLES como os reis deste terceiro dia de música no “Couraíso” perdeu, pelo caminho, o grandioso regresso do nigerino Mdou Moctar ao nosso país, que entrou no Palco Yorn com os restantes membros do quarteto quando já passavam das três horas da madrugada. Ainda a colher os louros de um recentíssimo Funeral for Justice que volta a cruzar os tecidos psicadélicos da música rock e tuareg com o passado assombrado do seu país natal, quer se fale da instabilidade política, da preservação do Tamasheq ou dos poderes colonialistas e opressores que tanto massacre causaram à população. Mais do que música de protesto propriamente dita, o que Mdou Moctar consegue é carregar toda a raiva de um país às costas e, em cada tema e atuação, transformá-la numa energia tangível e hipnotizante, capaz de quebrar todo e qualquer tipo de fronteiras.
Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
Entrando em cena ao som da faixa-título deste seu último disco, chegam os primeiros solos cortantes de guitarra para levar uma multidão ao rubro. O talento de Moctar é, por si só, uma proeza inimaginável. A rapidez e virtuosismo com que executa cada conjunto de acordes parece, para o mais comum dos mortais, algo elementar e sem esforço. Até a sua presença em palco fascina qualquer um, quase como se estivesse num estado permanente de meditação do início ao fim do alinhamento e, ocasionalmente, soltasse um sinal de contentamento, em clara aprovação do caos incendiário que acabou de provocar. À medida que se vai percorrendo os motivos que carregam Imouhar ou Afrique Victime, fica a sensação de que o tempo se vai distorcendo e a intensidade evoluindo para novos máximos. É neste cenário que a arte de Moctar brilha no seu esplendor, onde é possível construir uma comunidade inebriante a partir do amor mútuo pela música e traduzir, através dela, toda a cultura e sofrimento do povo tuaregue num apelo quase universal à libertação. Mesmo depois de Moctar se despedir com sorrisos e elogios prolongados a uma maré de fãs que não se cansou de celebrar a seu lado, a promessa de transformar a luta em empoderamento coletivo mantém-se bem para além desta madrugada de sexta-feira.