Primavera Sound Porto 2025 (2º Dia): A promessa selada de Chat Pile e o legado imensurável de Deftones e Beach House
Depois dos cabeças-de-cartaz Charli xcx e Fontaines D.C. terem dominado as atenções da noite inaugural, o segundo dia da 12ª edição do Primavera Sound Porto teve nos Deftones a sua maior enchente, com o regresso transcendente dos Beach House, a estreia contundente dos Chat Pile, a urgência alt-country de Waxahatchee e a catarse emo de Los Campesinos! a merecerem igual destaque.
O alt-country gratificante de Waxahatchee que enfrentou condições desfavoráveis
No mesmo Palco Porto onde Charli xcx e Fontaines D.C. deram aos seus êxitos uma apresentação maximalista na noite anterior, vimos Katie Crutchfield e a sua banda de volta a Portugal, ao fim de sete anos de ausência, a manter uma simplicidade deliberada. Agora, longe das raízes grunge de um American Weekend ou Cerulean Salt, a transição integral de Waxahatchee para os domínios do country, folk e americana com Saint Cloud e o deslumbrante Tigers Blood (editado no início do ano passado) quase que impõe este tipo de abordagem, cada um dos seus temas envolto na cordialidade da camaradagem musical e “firme nas qualidades que fazem a viagem pessoal e artística de Crutchfield valer a pena”.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Embora a fatídica zona VIP (expectavelmente vazia ao final da tarde) tenha dificultado a sintonia entre a energia da banda e a entrega do público, bastou a convicção patente em todo o alinhamento para evitar, por exemplo, os efeitos bizarros e constrangedores que se verificaram com a passagem dos Militarie Gun no ano anterior. Quebrando de imediato o gelo entre os assistentes mais contidos ao som de 3 Sisters, Crutchfield resolveu encarar destemidamente as primeiras filas com o recurso ao corredor do palco, antes de regressar à posição inicial para Evil Spawn (com o guitarrista Liam Kazar a substituir MJ Lenderman nos coros vocais). O resto do conjunto – que contou com a participação de Spencer Tweedy na bateria (filho do icónico fundador dos Wilco) e de Eliana Athayde no baixo – só veio reforçar o talento puro de Crutchfield para o mundo do espetáculo, manifestando-se tão naturalmente quando está diante do microfone, ao manter tudo o que a rodeia à sua mercê, mesmo quando as odes iniciais pareciam ser-lhe desfavoráveis. Sem esquecer os crescendos ambíguos, “repletos de coros arrepiantes e declarações calorosas”, da faixa-título deste seu último disco, foram poucos os momentos no segundo dia do festival tão imediatos e gratificantes como o momento em que se ouviu Right Back To It a despontar, “desdobrando-se em trocas de harmonias magistrais” capazes de conquistar a alma de qualquer um. O facto de Crutchfield possuir este tipo de imediatismo para com aqueles que a rodeiam não é uma novidade, mas vê-lo em ação, mesmo após tantos anos a afinar a ressonância da sua escrita, nunca deixará de ser impactante.
A frustração em comunhão com Los Campesinos!
“É a nossa primeira vez em Portugal desde 2010”, declarou o vocalista dos Los Campesinos!, Gareth David, à multidão no Palco Revolut, que acolheu de coração cheio o regresso fulgurante dos veteranos a Portugal, como se a espera não tivesse sido longa. Mesmo que os anos entre a última passagem por Paredes de Coura e esta estreia no Parque da Cidade tenham feito com que os galeses se expandissem para caminhos mais amplos, All Hell, editado no ano passado, tem como a sua maior proeza ter assumido ao máximo a identidade própria que passaram duas décadas a cultivar. Mesmo reconhecendo uma certa costela nostálgica, a lealdade perante os mesmos valores de sempre continua a ser o princípio dominante dos Los Campesinos! e do público que os aguardava à hora de jantar de sexta-feira.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Entre as mensagens de apoio à comunidade trans e ao povo palestiniano que escolheram utilizar como pano de fundo, a banda percorreu todos os recantos da sua carreira sem nunca perder um fio condutor, numa atuação cheia de angústia emo pura e dura que trouxe à superfície o porquê da música dos Los Campesinos ter resistido tão bem à passagem do tempo. Alternando entre as músicas recém-refinadas de All Hell e um destaque (pelo menos) de todos os seus lançamentos anteriores, David e a sua assertividade em palco viram-se perpetuamente corroboradas por uma plateia em êxtase constante. Num instante, faz-se um choro trocista em nome dos punks atuais ao som de Psychic Wound, no seguinte vemos David visivelmente comovido com o peso emocional de Feast of Tongues. E enquanto kms vê Kim Paisey a assumir o encargo de vocalista (pouco antes de participar num abraço coletivo a meio de You! Me! Dancing!), é quando David mergulha diretamente na multidão para a derradeira 0898 HEARTACHE – abrindo um corredor para si mesmo antes de mergulhar nos arrebatadores moshpits – que a carga catártica dos Los Campesinos! atinge um pleno de imponência, mais do que suficiente para construir uma residência temporária onde as frustrações do passado e do presente encontram consolo na perda coletiva da inibição.
Uma hora de escapatória no paraíso dos Beach House
Pouco ou nada mudou desde que Victoria Legrand e Alex Scally presentearam Paredes de Coura com “um sonho de concerto” há três anos atrás, vingando não só a “performance azarada de 2017”, como dando a “quem sempre se emocionou com o dream pop transcendente de Beach House” uma noite absolutamente inesquecível. Desta vez, o propósito do regresso a território nacional – o 17º em 17 anos – coincide com o interesse da dupla em descobrir uma forma de fazer atuações pequenas e intimistas, com um alinhamento maioritariamente composto por deep cuts, bem como espetáculos maiores que amplifiquem o encanto dos seus maiores êxitos para multidões à escala de um festival.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Se na última passagem por Portugal os Beach House privilegiaram um foco mais profundo na escala epopeica de Once Twice Melody (que continua a ser o seu álbum mais recente até à data), a seleção promovida nesta segunda noite de música no Parque da Cidade viu uma repartição mais equilibrada dos seus sucessos intermináveis, entre um portfólio que já soma quase duas décadas de comprovativos de uma excelência sem paralelo. Quer se tenha em conta a perfeição onírica de Lazuli e Myth, a natureza psicadélica dos muitos destaques de 7 ou então a magia congregadora de Depression Cherry, a presença em palco da dupla mantém-se subjugada, mas inteiramente hipnótica, com Legrand e Scally a esconderem-se timidamente por entre as luzes de fundo e os visuais simples e surrealistas que sustentam todos os seus movimentos. Ambos estão conscientes do enquadramento mais amplo que surge com a experiência de ver os Beach House ao vivo, onde os próprios artistas, embora propositadamente fora de foco, assumem total autoridade na criação deste sonho inescapável e o executam com uma consistência e mestria extraordinariamente raras de ver em qualquer concerto. Os seus efeitos não só conduzem com naturalidade cada uma das faixas até às suas resoluções etéreas, como se apoderam do tempo, do espaço e toda e qualquer dimensão pelo caminho, à medida que a audiência levita e se curva perante a onda interminável de emoção que foi desencadeada. Não importa quantas vezes já se tenha sentido as repercussões de ver os Beach House ao vivo, o prazer e o estímulo que acompanham esta escapatória para a sua realidade divina, mesmo que por apenas por uma hora, é demasiado grande para se desviar a atenção.
O inferno dissonante e cínico de Chat Pile
Quando o mundo em que vivemos se assemelha cada vez mais a um apocalipse ardente, uma banda com a tenacidade dos Chat Pile parece ser, cada vez mais, uma resposta adequada ao inferno da atualidade. Especialistas absolutos em retratar a urgência de sobreviver com as poucas ferramentas que temos para enfrentar este permanente estado de decadência, ambos os álbuns lançados pelo grupo de Oklahoma – God’s Country e o ainda mais sombrio Cool World – enfatizam os horrores do late-stage capitalism através do humor negro e da volatilidade instrumental, cruzando elementos de metal, hardcore, punk e noise rock numa sonoridade tão brutal e devastadora quanto as imagens que tantas vezes nos apresentam.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Para a sua primeira atuação em território nacional, o vocalista Raygun Busch soube introduzir desde o primeiro instante os ingredientes perfeitos para instalar e cultivar o caos no Palco Super Bock. A meio de abrir as hostilidades ao som de I Am Dog Now, já se encontrava de tronco nu, andando de um lado para o outro com um olhar ameaçador e trocista, reagindo aos comandos dos seus companheiros de banda com convulsões espontâneas e ladrando desmesuradamente na direção dos moshpits, tão obviamente absorvidos pela explosividade do ruído de fundo. Entre cada tema interpretado, Busch desempenhou o papel de cinéfilo hostil, enumerando vários filmes rodados em Portugal como se os estivesse a registar e avaliar na sua própria conta de Letterboxd, para logo a seguir dar continuidade ao espetáculo e às suas dissecações sobre as tendências mais sombrias da humanidade (desde a ode de Why aos sem-abrigo até às exaltações melódicas e desesperadas sobre o isolamento em Frownland). E, no entanto, estas alternâncias repentinas entre o absurdismo da improvisação (quase em tom de stand-up comedy) e a libertação fulminante são exatamente o que torna toda esta transição do repertório dos Chat Pile para um registo ao vivo tão cativante. É uma turbulência que não só amplifica as mensagens no cerne de todo o ADN dos Chat Pile, como também faz com que tudo em seu redor pareça muito mais instigante e anárquico, deixando tanto os fãs que vieram preparados como aqueles que desde então se deixaram conquistar com a vontade de voltar a presenciar os métodos erráticos dos Chat Pile o mais rapidamente possível.
A aula magistral dos veteranos Deftones e uma herança que une gerações
Entre os poucos nomes exclusivos à edição deste ano do Primavera Sound Porto, um em particular destacou-se claramente entre os demais. Embora Central Cee se tenha apresentado no palco principal como o efetivo cabeça de cartaz deste segundo dia de programação, foram claramente os Deftones que chamaram a atenção das massas no recinto, com a antecipação do seu primeiro regresso a Portugal em oito anos a fazer-se sentir em cada canto do anfiteatro natural do Parque da Cidade. Viu-se uma colisão de gerações a tomar conta do Palco Vodafone, entre os fãs de nu metal da velha guarda que assistiram às primeiras réplicas do impacto dos seus discos intemporais e uma camada bem mais jovem que tão bem provam o quão duradoura a sonoridade arrojada da banda natural de Sacramento realmente é, ao fim de três décadas de carreira.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
É sem dúvida um bom presságio para uma banda do calibre dos Deftones ter carta branca para explorar a fundo uma discografia influente e consagrada perante um público que fará tudo o que estiver ao seu alcance para a tornar tão imponente quanto o cenário lhe permitir. Mal Chino Moreno entra em cena para dar o pontapé inicial com a dupla explosiva de Be Quiet and Drive (Far Away) e My Own Summer (Shove It), cada riff nas guitarras faz o chão tremer, as cabeças abanar e encher tanto os fãs como a própria banda com uma vontade incessante de fazer dos seus efeitos intermináveis. Fale-se das fusões de metal alternativo e shoegaze que dominaram os inúmeros destaques de Koi No Yokan e Diamond Eyes ou dos resgates surreais que dão a White Pony uma celebração antecipada do seu 25º aniversário: pouco importou quais fossem os temas que se seguiam, quando as descargas extasiantes replicam as mesmas repercussões e alargavam o seu contágio com o desenrolar da noite. Mas mais do que ver as canções em si manterem o seu fulgor após tantos anos, é a presença irrepreensível de Moreno em palco que mais surpreende. Vemos o líder de 51 anos oscilar entre passagens vocais límpidas e gritos demoníacos – proferindo Hole in the Earth ou 7 Words com a mesma garra de sempre – e saltando das colunas de som e das plataformas em satisfação com a ferocidade que acabara de soltar. Se o poder da música não diminuiu com o passar do tempo, a energia dos seus protagonistas também não mostra sinais de esmorecer, mantendo-se no topo da sua forma e lutando por cada atuação como se a sua reputação lacrada ainda estivesse em jogo. E mesmo que assim fosse, a dimensão épica e incendiária de ver os Deftones em modo concerto é mais do que suficiente para relembrar tudo e todos de um legado imensurável.