Os Destaques de Março 2024

Kim Gordon – The Collective

Género: Industrial Hip-Hop; Noise Rock
Data de Lançamento: 08/03/2024
Editora: Matador

Após mais de quatro décadas de música vinculada a projetos colaborativos, chega a ser impressionante a forma como Kim Gordon, agora em nome próprio, se conseguiu reinventar e adaptar aos valores dominantes da contemporaneidade. E tendo em conta que a maioria dos seus contemporâneos vacila nessa transição para a era digital, a sua segunda vida artística tem voltado a provar o quão espontânea e intemporal a imagem de marca de Gordon consegue ser aos olhos do seu público-alvo, e bem para lá dos anos gloriosos em que assumia o papel de baixista e cofundadora de um dos principais grupos de referência dos anos 80 e 90. Os Sonic Youth, além do seu papel imensamente influente na música rock moderna, representaram uma evolução dos pilares do rock para um estado de rutura, circunscritos pelo ambiente hipersaturado que viveram no seu auge e igualmente fascinados com todas as suas implicações, intrigados pelo caos quotidiano e pelas tendências que o moldam e conseguindo reapropriá-las em seu próprio benefício. Foi o que impulsionou a obsessão por figuras da pop culture como Madonna ou as sátiras provocadoras ao hip-hop enquanto movimento em crescimento. Aos 70 anos de idade, a carreira a solo de Gordon mantém estes mesmos princípios intactos. The Collective, o seu segundo álbum sob a chancela da Matador Records, está certamente obcecado com a era moderna, expandindo ainda mais as influências clarividentes de vários subgéneros do hip-hop, inicialmente introduzidas em No Home Record (editado em 2019), e usando-as como uma banda sonora eletrizante para a interminável sensação de paranoia e mundanidade que parece pautar os dias de hoje.

Fundamental para esta nova abordagem de Gordon é o produtor Justin Raisen, envolvido em trabalhos passados de Yves Tumor, Lil Yachty ou Sky Ferreira, que opta agora por uma coleção de instrumentais que permeiam a natureza ardente da música trap com a abrasividade do rock experimental que Gordon transformou no seu carimbo criativo. O resultado final rompe os limiares destes dois estilos musicais com a mesma angularidade e fluidez de qualquer disco dos Death Grips, por exemplo. BYE BYE, o single de apresentação e ponto de partida de The Collective, não só se assemelha a algo que Playboi Carti implementaria nos seus próprios projetos, como foi inicialmente concebido como tal. Em vez disso, Gordon faz do tema uma enunciação cinicamente monótona e dissonante de uma lista de compras. The Candy House, por outro lado, contorce progressivamente as suas frequências para criar algo agradavelmente nauseante. É um efeito igualmente atingido por I Don’t Miss My Mind, quebrando os beats minimalistas e pujantes que seguram o todo da faixa com o recurso a guitarras rompantes. É um dos muitos casos em que o álbum parece propositadamente tão fragmentado como navegar por um algoritmo de reels. Os jogos temáticos de It’s Dark Inside ou Shelf Warmer, aliás, conseguem ser tão ou mais desarticulados que a própria sonoridade do álbum, com a artista a divagar sobre a futilidade de uma prenda, lamentos existenciais ou repressões sistémicas com uma falta de coesão surpreendentemente imersiva. O que Gordon consegue captar com The Collective vai bem para além do fluxo interminável de informação que consome o cérebro humano, focando-se, sobretudo, nas consequências avassaladoras e provavelmente inescapáveis que deixa naqueles que convivem com ele – e essa é uma proeza de que poucos discos se podem gabar.

Adrianne Lenker – Bright Future

Género: Indie Folk
Data de Lançamento: 22/03/2024
Editora: 4AD

A arte, no seu melhor, consegue ser surreal e até mesmo inexplicável – pelo menos Adrianne Lenker alcança-o com bastante frequência, tanto dentro como fora da esfera de Big Thief. Quem já esteve em contacto com ela sabe do que se trata. Existe um certo fascínio na sua escrita contundente e na sua voz dorida que ganha contornos quase sobrenaturais, tanto ao vivo como em estúdio. Acima de tudo, porém, Lenker faz música que encanta e se deixa encantar pelos simples prazeres da vida: pelas “experiências que nos unem enquanto pessoas, a beleza dos sentimentos que vamos partilhando, as maravilhas da natureza humana“. É algo que nunca se perde na transição entre o portfólio dos Big Thief e as suas respetivas carreiras a solo, mas é algo especialmente notável no caso de Lenker. Tudo o que tem editado nos últimos anos tem sido a prova máxima do seu talento geracional. Dragon New Warm Mountain I Believe In You, o disco mais recente da sua banda-mãe é “uma espécie de milagre musical, uma viagem heterogénea de 20 faixas e 80 minutos que desvenda toda uma panóplia de ideias e explorações refrescantes” que bem poderá vir a ser uma das grandes obras-primas da presente década. Já songs, em contrapartida, é incrivelmente autêntico e íntimo na sua simplicidade, na medida da restante discografia em nome próprio, gravada de forma analógica, deixando frequentemente o ouvinte e a artista sob o efeito do mesmo espaço, da mesma onda de vulnerabilidade e, lá está, do mesmo feitiço. É um efeito que Lenker traz de volta (e muito bem) para Bright Future, quatro anos mais tarde, tentando conter a magia de um dado momento e das composições que o acompanham numa fotografia para mais tarde recordar, com saudosismo e emoções à flor da pele. Ter estes refúgios sempre à disposição é, por si só, um tesouro incalculável. O facto de, para além disso, corresponder à genialidade dos restantes triunfos de Lenker consegue ser um feito tão ou mais extraordinário.

Real House, logo a abrir, recorda memórias soltas da sua infância como um fluxo de consciência, com um impacto emocional ainda mais esmagador do que o habitual (até mesmo para o historial de Lenker), o tipo de faixa que torna inescapável uma descarga de lágrimas ainda antes do seu término. É uma de várias ocasiões onde se vê separada da sua fiel guitarra, o instrumento que faz questão de afirmar como uma extensão do seu corpo e alma, atirando o piano de Nick Hakim para primeiro plano. Evol contrapõe-o à voz trémula de Lenker e à inocência frágil do seu jogo de palavras, enfatizando a dualidade da própria experiência humana, onde o amor e a morte, a felicidade e a tristeza funcionam como duas faces da mesma moeda. Sadness as a Gift encontra nessa necessidade patente de um equilíbrio uma réstia de otimismo e esperança, tal como Donut Seam tenta fazer as pazes com um mundo em extinção, na esperança de retirar o máximo partido do que temos ao nosso redor, mesmo perante a iminência de um apocalipse. Free Treasure, escrito em conjunto com James Krivchenia, é tão discretamente vibrante e simbólica como os melhores temas de songs, com uma escrita praticamente instantânea e, tal como já é habitual com Lenker, dominada pela empatia. É, por igual, uma de duas instâncias em que a sua própria realidade e a dos Big Thief convergem numa só, destacando-se a reimaginação da fenomenal Vampire Empire, aqui reduzida aos seus elementos mais basilares, mas sem nunca perder a sua imponência condutora. À medida que Bright Future se começa a tornar, também ele, numa memória, Ruined vai deixando uma última impressão devastadora e consumidora deste mundo envolvente de Lenker, mas nunca sem voltar a reforçar a ideia central de todo o disco: quando confrontados com a finitude do nosso próprio ser e de tudo o que partilha a mesma condição, a melhor coisa que qualquer um pode fazer é saborear o momento enquanto ainda podemos.

Julia Holter – Something in the Room She Moves

Género: Art Pop
Data de Lançamento: 22/03/2024
Editora: Domino

Durante mais de uma década, Julia Holter tem feito da metamorfose a sua palavra de ordem. Fale-se da natureza assoberbante da sociedade moderna captada por via de Loud City Song, das estruturas clássicas que propõe na obra-prima sumptuosa que é Have You In My Wilderness (“um dos álbuns mais deslumbrantes dentro e fora do seu estilo na passada década”) e até mesmo do “caráter bem mais obtuso e experimental, mas igualmente etéreo” do seu sucessor Aviary. Em todos estes casos, estamos perante alguns dos discos mais exploratórios do seu tempo, potentes na sua ideia de expansão, mas não menos acessíveis, onde todos os elementos musicais se vão fundindo em algo amorfo, de forma a criar um ambiente verdadeiramente sofisticado (e só talvez igualado pelo onírico) para saborear e revisitar para lá dos domínios do espaço e do tempo. Acima de tudo, a arte de Holter é inexplicavelmente encantadora, de uma forma que poucas peças e experiências realmente o conseguem ser ou até fingir. Something in the Room She Moves não foge à regra, desconcertando ainda mais a dicotomia entre ambição sónica e contenção estrutural, mas sem esquecer o eterno compromisso de Holter com a ideia de uma viagem musical tão transformadora como as sensações que tão bem consegue invocar.

Holter, que compôs e começou a gravar o seu sexto trabalho de estúdio enquanto estava grávida e em confinamento (Evening Mood, inclusive, incorpora o ultrassom da artista no seu enquadramento sonhador), rapidamente procurou uma mudança de paradigma nos cinco anos e meio que se seguiram ao lançamento de Aviary. A maioria de Something in the Room She Moves transforma a escala maciça do seu antecessor e encapsula-a com introspeção, mostrando, por igual, Holter no seu estado mais abstrato, pelo menos desde o início da carreira. É o caso da faixa de abertura Sun Girl, tão hipnotizante e colorida quanto abstrata e psicadélica, à semelhança da pintura de Christina Quarles que encabeça a capa do álbum, nunca permitindo que o som e a língua se consolidem em algo verdadeiramente reconhecível. Spinning adota este mesmo nível de dinamismo, usando locomoções percussivas e de sintetizadores para fazer avançar a composição, além de dar espaço às passagens vocais cintilantes de Holter e, mais tarde, a Ocean, uma peça totalmente instrumental. Do outro lado do espetro está Materia, quase exclusivamente assente num piano elétrico e na própria Holter, e num contraste meditativo em relação à expressiva faixa-título. Meyou, também ela, prende a nossa atenção aos elementos musicais mais escassos, à medida que distorce cada canto coral até ao seu expoente máximo – da mesma forma que uma composição de Kali Malone o faria. Holter entrega, contudo, a essência de Something in the Room She Moves aos lados físico e espiritual do amor e do luto. Nas suas peças mais transformadoras e maximalistas, cria a sensação genuína de que um portão para o além se vai abrindo em tempo real. E ao ouvir o desfecho arrepiante de Talking to the Whisper, em tons de free jazz, lembramo-nos de que Holter não só é praticamente incapaz de não “envolver a sua arte de uma elegância ímpar” como consegue desvendar, 13 anos após ter ficado plantada a semente de todo o seu encanto, novas formas de hipnotizar quem se rende à sua magia.

Waxahatchee – Tigers Blood

Género: Alt-Country
Data de Lançamento: 22/03/2024
Editora: Anti-

Katie Crutchfield sempre se regeu pelo princípio da vulnerabilidade. É a tónica da sua escrita, o que permite que as suas canções encontrem uma força própria e, ao mesmo tempo, consigam evocar algo tamanhamente universal, sem necessidade de correlação com o mundo sincero de Waxahatchee e de todo o meio provinciano norte-americano – um princípio que tanto a música que catapultou este seu projeto como tudo o que se seguiu desde então partilham, e sempre de forma tão autêntica. Agora longe das fases iniciais da sua carreira, Crutchfield parece estar finalmente onde sempre quis estar. Longe vai o punk rústico de um American Weekend ou Cerulean Salt, cedendo agora, mais do que nunca, às influências do country e da americana, onde o tom lamacento da sua voz e das guitarras são substituídos por uma clareza generalizada e omnipresente. Saint Cloud, editado em 2020, soube cimentar esta reimaginação das suas raízes artísticas com uma emoção abrasadora, com Crutchfield a explorar o fantasma latente da dependência, do alcoolismo e do trauma, mas também a leveza que lhe trouxe a sobriedade. Volta a ser, aliás, tema de análise durante o seu sucessor, especialmente na dolorosa 365, onde ainda se debate com os efeitos iminentes do passado por entre a clareza da superação.

Tigers Blood tenta encontrar, de várias maneiras, o conforto no desconforto e no sentimento permanente e existencial de que nunca somos suficientes, seja através do desejo de amar e ser amado, da autorreflexão (olhando para o passado através de uma nova perspetiva) ou da procura interminável de um verdadeiro sentido na vida artística. É algo que tanto Crimes of the Heart como Burns Out at Midnight abordam nas entrelinhas, com Crutchfield a tentar não se sentir instrumentalizada, ao diluir a divisão entre a expressão dos seus próprios sentimentos e a profissão que escolheu. Mesmo no domínio instrumental, as 12 faixas que dão forma a Tigers Blood revelam um triunfo de um álbum que desenvolve e aperfeiçoa todas as fundações estabelecidas pelo seu antecessor. Crowbar, por exemplo, presta uma viagem nostálgica e tocante que encaixaria bem no catálogo dos R.E.M., já Bored chega como um hino à frustração que rapidamente ganha contornos extasiantes. À semelhança de Saint Cloud, Brad Cook ficou a cargo da produção. O destaque, porventura, vai para o amplo leque de novos recrutas, nomeadamente o enorme papel colaborativo que MJ Lenderman em cada recanto de Tigers Blood, não fosse ele uma promessa patente na fusão entre o alt-country e o indie rock – recomenda-se o seu trabalho a solo, bem como os recentes sucessos que tem tido no quinteto Wednesday (estiveram presentes na última edição do Primavera Sound Porto). Mais do que um simples acentuar referencial ou inclusões vocais esporádicas (como acontece em Evil Spawn), é em Right Back To It onde a química entre os dois artistas realmente se revela, desdobrando-se em trocas de harmonias magistrais naquele que é, para todos os efeitos, a primeira vez que um tema de Waxahatchee não tem medo de se assumir como romântico (e, como tal, é simplesmente perfeito). Mesmo na ambiguidade dos momentos finais do álbum (repletos de coros arrepiantes e declarações calorosas), Tigers Blood mantém-se firme nas qualidades que fazem a viagem pessoal e artística de Crutchfield valer a pena. Não é apenas o seu melhor trabalho até à data, mas uma ode convicta à sobrevivência humana com um claro toque de companheirismo, musicalidade e um coração sem limites.

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