Uma despedida dominada pelos veteranos: Primavera Sound Porto 2023 (Dia 4)
O encerramento da 10ª edição do festival portuense pintou-se de uma agradável mistura entre as velhas glórias do passado e os sons do presente. Se os cabeças-de-cartaz Blur e New Order selaram, a par dos norte-americanos Sparks, a intemporalidade da sua música perante uma verdadeira enchente de fãs, coube a Julia Holter e Yves Tumor trazer ao Parque da Cidade os outros principais destaques deste quarto e último dia de Primavera Sound Porto.
O orgulho dos Sparks que finalmente encontrou o seu público
Para os irmãos Mael, o tempo tem-lhes feito justiça. Durante décadas subvalorizados e algo incompreendidos pelas grandes massas, os norte-americanos Sparks estão finalmente a provar os frutos da sua glória, em parte graças ao enorme sucesso do documentário The Sparks Brothers (realizado por Edgar Wright). Se sempre foram vistos como pioneiros do seu próprio estilo, por vezes à custa de um merecido reconhecimento que tardou em chegar, aterram no festival como mestres de uma cerimónia comemorativa dos sons do passado, do qual fizeram parte e para o qual deram um contributo imensurável.
Sob o olhar atento de Damon Albarn nos bastidores, fizeram da abertura do palco principal uma vitrine do seu vasto repertório, sempre surrealista e agora congregador. Dos clássicos Angst in My Pants ou This Town Ain’t Big Enough for Both of Us às faixas do novíssimo The Girl is Crying in Her Latte (agora rebatizado de pingo), a estreia dos Sparks na cidade do Porto pintou-se de complementaridades: o antigo e o novo, o carisma incansável de Russell (sempre cheio de vida, pronto para colocar uma plateia inteira rendida à sua animação) e a aparente imobilidade de Ron (quase sempre sentado ao teclado, propositadamente estático). A meio da epopeica The Number One Song in Heaven, até a personagem do irmão mais velho acaba por quebrar. Finalmente, temos os Sparks e os fãs em uníssono, envolvidos em danças, eternamente rendidos à alegria anímica dos seus êxitos. Talvez o triunfo dos Sparks fosse inevitável e apenas uma questão de tempo para ver o seu brilhantismo repercutido pelo poder do passa-palavra. A inspiração, também ela, aparenta continuar bem viva, a provar pelas canções mais recentes, recusando qualquer oportunidade de conduzir um concerto inteiro única e exclusivamente à base do seu legado. O certo é que, ao fim de meio século de carreira, os irmãos Mael vêm-se justamente cimentados nos livros de história e a sua paixão comemorada nos grandes palcos internacionais, como sempre mereceram.
Fotografias: Bruno Ferreira
Julia Holter e os feitiços do passado e do futuro
A beleza, mesmo nos confins da música, consegue assumir uma multiplicidade de formas. Alguns encontram-na na rebeldia ou na purificação, outros na meditação. Num quarto e último dia de programação maioritariamente marcado por momentos absolutamente arrebatadores, coube a Julia Holter ocupar o prato oposto da balança. A aposta, porventura, não poderia ter sido mais certeira. Não é de agora que a norte-americana sabe envolver a sua arte de uma elegância ímpar: fale-se do sumptuoso Have You In My Wilderness (um dos álbuns mais deslumbrantes dentro e fora do seu estilo na passada década) ou do seu sucessor Aviary, bem mais obtuso e experimental, mas igualmente etéreo.
Sete anos depois da sua última passagem pelo festival, volta ao Porto num claro estado de transição, mas com a sua magia mais do que intacta. Se, por um lado, não faltaram alguns dos temas mais celebrados destes seus dois últimos trabalhos, como Sea Calls Me Home, Betsy on the Roof ou I Shall Love 2 (a fechar o alinhamento em alta), e até mesmo do já distante Loud City Song, convém salientar que foi a fornada de novas composições que causou maior espanto. Foi neste constante rebuscar do passado e desvendar do futuro artístico de Holter que manteve todo o público sob controlo, numa das atuações mais subtilmente mágicas de toda a semana. Nem as vibrações rompantes vindas do concerto dos Karate (que atuavam em simultâneo no vizinho Palco Vodafone) quebraram a imersividade ao longo de uma hora de concerto. Fora os visuais hipnotizantes que iam servindo de plano de fundo para Holter e os restantes membros da sua banda (o pôr-do-sol também ajudou), poucas foram as distrações entre faixas ou as interações intercalares. O melhor foi mesmo deixar o encanto da sua música falar por si, ficando plantada a esperança de um novo álbum que atinja o esplendor dos anteriores.
Fotografias: Bruno Ferreira
O art rock rompante e disruptivo de Yves Tumor
Poucos artistas da atual geração encarnam tão bem a expressão rockstar status como Yves Tumor. Algures entre a ambição colossal, a monstruosidade e o perfecionismo, o percurso de Sean Lee Bowie tem sido sempre em crescendo, em todos os parâmetros e medidas. Quem se apaixona pelo cénico e sensual Heaven to a Tortured Mind acaba por encontrar em Safe in the Hands of Love alguns dos seus fundamentos. O mesmo se pode dizer do mais recente Praise a Lord Who Chews but Which Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds), onde o norte-americano redobra a teatralidade, ainda que sob uma aura sónica consideravelmente menos palpitante.
Onde a precisão é dominante, porém, rapidamente fica ofuscada quando chega a altura de transportar a sua música para um registo ao vivo. A partir do momento em que Tumor sobe ao palco acompanhado pela sua banda, a anarquia e a volatilidade tomam conta, sem sacrificar o virtuosismo das composições pelo caminho. Já assim tinha sido na última edição do Vodafone Paredes de Coura e o mesmo se repetiu no seu regresso ao Parque da Cidade. Entre Kerosene, Crushed Velvet ou a novíssima Heaven Surrounds Us Like a Hood, vemo-lo pregado às filas da frente, numa erupção coletiva de emoções para ver quem consegue ecoar mais alto as letras de cada tema. Pelo meio, partilha esse entusiasmo com o guitarrista Chris Greatti ou com a baixista Gina Ramirez, fica a cantar de costas para a plateia ou fica às portas de entrar em confronto direto com o engenheiro de som: “É o nosso último concerto da digressão, eu quero é a minha voz mais alta!”. Os concertos de Yves Tumor carregam sempre o peso da imprevisibilidade, nunca sabendo se o que segue ou até mesmo se esta desordem se tornará, a certo ponto, incontrolável. Bowie nunca falha, porém, na tarefa de nos deixar perplexos bem para além da sua saída de cena – “e sempre pelas melhores razões”.
Fotografias: Bruno Ferreira
A festa conturbada dos New Order
Tudo prometia que a primeira passagem dos New Order pela cidade do Porto fosse um dos momentos mais magníficos dos últimos quatro dias de música no Parque da Cidade. O entusiasmo no Palco Vodafone era mais do que evidente, juntando fãs de todas as idades num turbilhão de emoções sem fim à vista e no prazer comum de reviver o passado dos lendários artesãos do synth pop. E assim foi, pelo menos durante praticamente uma hora. Nesse intervalo de tempo, foi possível ver os britânicos a corresponder às expectativas de todos: um concerto repleto de clássicos, de Age of Consent e Your Silent Face a Bizarre Love Triangle, tocados como se os New Order de 2023 ainda fossem os mesmos que emergiram após o falecimento de Ian Curtis e do icónico clube Haçienda. Até a voz intemporal de Bernard Summer, apesar dos 67 anos de idade, continua a vingar ao fim de tantas décadas de carreira.
Contudo, e quando tudo já parecia alinhavado para ser uma despedida em tons de vitória, rapidamente se tornou no maior pesadelo de toda a 10ª edição do festival. Com True Faith a provocar o êxtase na plateia, o PA (power amplifier) simplesmente deixa de funcionar. Nem uma segunda tentativa se provou eficaz, provocando um novo apagão no sistema de som que rapidamente instalou a confusão no recinto. O interregno que se seguiu foi longo e incómodo. Enquanto a banda aguardava uma solução, foram muitos os que se dirigiram ao Palco Porto para o início iminente (mas felizmente atrasado) dos Blur e outros tantos os que permaneciam incrédulos no local. Depois de recomeçado o alinhamento, surgiram as esperadas Blue Monday, Temptation e Love Will Tear Us Apart para os instantes finais, que retornaram quase todo o alento que tinha precedido as falhas técnicas. Mas para grande descontentamento tanto dos fãs como da própria banda, a estreia dos New Order no festival teve tanto de libertadora como de amaldiçoada.
Fotografias: Bruno Ferreira
A surpreendente celebração do património dos Blur
Nas últimas duas edições, Damon Albarn tem sido sinónimo de encerramento do Primavera Sound Porto. Assim foi com os Gorillaz em 2022, trazendo consigo “um elenco de convidados invejável e uma banda igualmente gloriosa”. Um ano depois, o motivo é diferente, mas não menos entusiasmante. Um regresso dos Blur é, para além de uma celebração por si só, uma forma praticamente perfeita de encerrar um dia repleto de concertos de carreira e dominado pela nostalgia do passado. Ainda que com um ligeiro atraso provocado pelo já mencionado problema técnico na atuação dos New Order (os outros afamados britânicos da noite), não demorou muito até que o grupo liderado por Albarn enveredasse por uma sequência ininterrupta dos esperados clássicos e de outros tesouros retirados do baú dos Blur.
Se St. Charles Square (faixa incluída no futuro longa-duração The Ballad of Darren, a ser lançado no próximo mês de julho) confundiu a enchente de fãs que marcou presença no Palco Porto, então There’s No Other Way veio, finalmente, responder às muitas preces. Daí em diante, a energia já estava propagada e assim se manteve. Fale-se das incontornáveis Beetlebum, Tender e Coffee & TV, da reaproveitada Country House ou talvez da recôndita Popscene, a confiança dos Blur foi, no mínimo, surpreendente, como se nunca tivessem abandonado os seus postos de 2015 até então. Para além de Song 2 (tendo em conta a efusão, bem podia ter aberto uma cratera no recinto), os momentos mais unificadores do concerto chegaram ao som dos múltiplos temas fortes de Parklife, de Girls and Boys e da faixa-título a End of a Century e This is a Low – naquele que talvez seja o álbum que melhor enaltece o legado incalculável dos britânicos. Para os admiradores de longa data, foi uma exibição de sonho das lendas inquestionáveis do brit pop. E mesmo para quem sempre se mostrou menos recetivo ao vasto catálogo de Albarn e companhia, a reunião dos Blur fez questão de fascinar todos os presentes: os mais dedicados, os mais céticos e até mesmo a própria banda.