Primavera Sound Porto 2025 (1º Dia): O triunfo repetido de Fontaines D.C. e a celebração pop de Charli xcx e Magdalena Bay
O arranque da 12ª edição do festival ficou marcado pela chegada do fenómeno brat ao Parque da Cidade, onde a britânica Charli xcx foi cabeça-de-cartaz deste primeiro dia de programação ao lado do regresso vitorioso de Fontaines D.C. a Portugal. A noite de quinta-feira contou ainda com o pop imaginário de Magdalena Bay, as receitas certeiras do passado de Momma e a hibridez multifacetada de This Is Lorelei.
Após o warm-up proporcionado por Alan Sparhawk e Milan W. no Primavera na Galeria, o Primavera Sound Porto volta a entrar em ação após uma edição de 2024 marcada por recordes de audiência e incidentes negativos, com muitos dos nomes fortes da edição-mãe de Barcelona a visitarem o país vizinho uma semana depois. Ao longo de quatro dias de programação (o último deles dedicado exclusivamente à música eletrónica), a CONTRABANDA volta a marcar presença no Parque da Cidade pelo quarto ano consecutivo para relatar o espírito vivido durante o evento. Seguem-se, por ordem cronológica, os destaques do primeiro dia de concertos do Primavera Sound Porto 2025.
O alt-rock importado e aprazível de Momma
À medida que os primeiros ecos de música regressavam ao Parque da Cidade para mais um fim-de-semana prolongado de concertos memoráveis, vimos o quarteto nova-iorquino Momma estrear o Palco Revolut ao som de Medicine e I Want You (Fever), um dos temas fortes do fresquíssimo Welcome to My Blue Sky. Acompanhadas pelo baixista e produtor Aron Kobayashi Ritch e pelo baterista Preston Fulks, as músicas de Etta Friedman e Allegra Weingarten são, inegavelmente, derivadas das fundações do alt-rock que dominaram os anos 90, através de atos como Pavement, The Breeders ou The Smashing Pumpkins, estreitando conscientemente o que separa a nostalgia do pastiche, mas oferecendo pelo caminho uma destilação contemporânea, ainda que pouco cativante, das receitas que tão bem resultaram no passado.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Por cada influência e cliché expectáveis, as canções de estrada que compõem este mais recente disco ganham uma nova vida consoante o cenário exterior que as acompanha. Com o sol ainda alto nos céus da cidade do Porto, as guitarras tímidas e refrões esticados de Bottle Blonde soam mais descontraídos e os riffs carnudos de Rodeo ou Last Kiss mais arrojados. Vêem-se, inegavelmente, beneficiados pelo cunho confessional e angustiante de Friedman e Weingarten, traduzidos com profissionalismo para palcos de maior dimensão. Mesmo quando falta alguma urgência ou ardor à sua execução, as canções veranis de Momma funcionam melhor quando regressam às suas raízes contextuais: expostas ao mundo exterior, rodeadas por multidões empenhadas que carregam a emoção e a narrativa destes contos de melancolia e frustração.
This Is Lorelei e o rosto discreto da dissonância
Há cerca de um ano, Nate Amos entrava em cena sob a alçada dos Water From Your Eyes, no mesmo cenário em que é recebido nesta tarde inaugural de quinta-feira, num desgoverno estilístico que viu a dupla abraçar “a distorção das guitarras e sintetizadores num intrigante misto entre o desconfortável, o harmónico e o dançável, o minimalismo e o caleidoscópico”. Enquanto os seus esforços criativos ao lado de Rachel Brown abraçam o conceito de uma “rutura irreverente com os convencionalismos da pop”, o projeto a solo do cantor, compositor e multi-instrumentista nova-iorquino dilata a sua paleta sónica para acomodar os pilares do indie rock, pop psicadélico, alt-country e folk, seguindo sempre os mesmos princípios dissonantes que há muito definem o seu estilo de produção idiossincrático. O seu último lançamento enquanto This Is Lorelei (Box For Buddy, Box For Star) é talvez o exemplo mais pleno e conciso da exuberância e imprevisibilidade tão características da música de Amos, deixando espaço suficiente para que o seu desejo inato de perturbação sónica em todas as formas e feitios se manifeste com enorme eficácia.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Novamente acompanhado por Bailey Wollowitz e Al Nardo, Amos racionaliza e transpõe a sua própria dicotomia de género para o regimento mais contido de um concerto, criando um efeito em muito diferente da erosão visceral e desconcertante que projetou na última edição do festival. Se a balada acústica e suave de Angel’s Eye enternece o público por entre o seu confessionalismo inocente e subjugado, I’m All Fucked Up faz questão de não se levar demasiado a sério, com um toque humorístico não muito distante dos melhores temas dos Ween. Quando os ritmos eletrizantes de Dancing In The Club provocam nas primeiras filas um baile discreto e congregador, a serenidade na postura de Amos prefere, neste registo, não ser quebrada pelos retoques de autotune que dominam o original (que faz lembrar, inclusive, a transposição entre o humano e o digital que cimentou a já mencionada passagem dos Water From Your Eyes). Seja qual for a tarefa em mãos, a aparente facilidade de Amos em navegar pela hibridez das suas canções revela-se sempre refrescante, sem necessitar de clímaxes vistosos ou apresentações maximalistas para fazer sentida a sua presença.
O triunfo anunciado dos Fontaines D.C.
A ascensão dos Fontaines D.C. ao escalão máximo do rock atual sempre foi uma questão de tempo, uma iminência da última meia década que, entretanto, se tornou num feito mais do que alcançado no ano de 2025. Da última vez que se cruzaram com um festival português, estavam prestes a lançar o álbum que os cimentou como o equivalente desta geração aos pioneiros de britpop que dominaram os holofotes há cerca de 30 anos. O lançamento de Romance (e, por associação, o espetáculo na Praia Fluvial do Taboão que “teve no anfiteatro do Taboão um dos últimos degraus antes de cimentarem o seu lugar entre os grandes nomes da contemporaneidade”) trouxe-lhes a aclamação mundial, colou ao vocalista Grian Chatten uma imagem de galã não muito distinta às de Jarvis Cocker, Damon Albarn e Liam Gallagher no auge dos anos 90, e ao público de Paredes de Coura um “antecipar o que estava à espreita na próxima página do manuscrito”.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Dez meses depois, a entrada em cena dos irlandeses no palco principal do Primavera Sound Porto já se fazia em tons de vitória anunciada. Durante um alinhamento não muito diferente ao apresentado nos últimos dois concertos em território nacional, Chatten e companhia imediatamente reanimaram o público em níveis ferozes de energia, sem nunca quebrar a imersão ou vacilar abaixo da mais alta das apostas durante a hora e meia seguinte. Consistentes e ditados a cada momento, as letras de Jackie Down the Line ou os refrões gritantes de Death Kink são devolvidos a plenos pulmões para o púlpito, ganhando o palco Porto a dimensão hipotética de um estádio. Torna-se fácil imaginar como as canções tocadas de Skinty Fia ou Dogrel – repletas de um “post-punk rasgado de sujidade e críticas sociais de extrema importância” – abriram caminho para os hinos penetrantes de Romance, sempre assegurados pelas massas frenéticas que fazem ricochete a cada verso. É um fascinante exercício de controlo da multidão, onde a tenacidade da música fala por si e reflete a importância atual dos Fontaines D.C. para a música rock como um todo. Quando Chatten solta os suspiros frenéticos no refrão de Starbuster ou dedica I Love You ao povo palestiniano (com as palavras “Israel is committing genocide, use your voice” espalhadas nos ecrãs paralelos), a noite, o concerto e a narrativa geral já lhes pertence.
Dentro da fantasia imaginária de Magdalena Bay e Imaginal Disk
A música, no seu melhor, pode levar-nos a descobrir novos mundos, onde o som nos liberta das inibições e a experiência de o ouvir (ou melhor, de o viver) é capaz de reconstruir o meio que nos rodeia. Se há algum disco lançado em 2024 em que a mundividência é tida como a mais elementar das suas qualidades, é Imaginal Disk de Magdalena Bay, sonicamente tão distante deste universo em que vivemos sem nunca se distanciar do que tem vindo a definir a era moderna. Refletindo sobre a realidade contemporânea e os seus muitos prazeres, ansiedades e domínios (tanto orgânicos como digitais), a dupla composta por Mica Tenenbaum e Matthew Lewin foi capaz de produzir hinos pop transcendentes, submetidos à escala e sensibilidade libertárias de um grupo de rock, com as próprias canções a navegarem entre diferentes ambições e raízes temáticas num constante relembrar do quão formidável é o leque de talento e inteligência por trás da música em si.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Com a garantia da apresentação na íntegra das 15 faixas que compõem Imaginal Disk, a chegada de Magdalena Bay à esta noite inaugural veio com a certeza de uma narrativa à altura dos originais (senão até prolongada), onde atrair uma multidão mais pequena e investida do que a que esteve presente no Palco Vodafone para ver o regresso de ANOHNI and the Johnsons ao Porto trouxe consigo uma energia trabalhada à perfeição entre todos os atores em jogo. Fazendo o maior uso possível de todo o palco enquanto dança e salta sem parar ao som das favoritas Image, Death & Romance e Cry for Me, a presença de Tenenbaum tem um efeito absolutamente magnético, ostentando passagens vocais de cortar a respiração em Vampire in the Corner e uma dose de teatralidade performativa mais do que suficiente para dar vida às personagens que encarna através da maquilhagem azul e das muitas mudanças de vestuário. Se Fear, Sex levou Lewin a deixar a sua ancoragem discreta nos sintetizadores e nas guitarras para vestir um fato vermelho estrelado e inserir o disco homónimo na testa de Tenenbaum (mesmo antes desta colocar uma máscara de girassol), Angel on a Satellite e The Ballad of Matt and Mica viram a vocalista ressurgir para o voo final com o seu próprio par de asas brancas. O fascínio de um disco como Imaginal Disk bem pode falar por si, mas a forma como é transposta e executada para um registo ao vivo – com uma paixão e um compromisso tão nítidos para com a experiência sensorial que é entrar neste mundo fantasioso – faz com que qualquer um saia com uma camada adicional de apreciação por todo o trabalho da dupla, que tão bem funciona e soa quando é projetada perante uma onda humana. Durante uma hora de alinhamento, a magia que convocaram pareceu inquebrável e, à exceção da atuação de uma superestrela pop, ninguém foi capaz de igualar o poderio de Magdalena Bay durante a noite de quinta-feira.
Charli xcx e a eternidade de se ser brat
Pode não parecer, mas BRAT – o megafenómeno musical de 2024 que quase se sobrepôs à própria música – acaba de completar um ano de vida no início de junho. O que provou ser a merecidíssima coroação de uma das figuras pop mais transgressivas da última década – equilibrando o rótulo das grandes editoras e a iconografia de culto – também ganhou, com o passar do tempo, um certo desgaste. Torna-se impossível não reparar na capa verde-néon, impressa nas cortinas que caem à medida que os primeiros ecos do remix de 365 se anunciam, como se de um alarme se tratasse. O que agora vemos são trapos, rasgados e descolorados, relíquias de uma festa saturada que viu o seu significado enfraquecido quando tudo e todos passaram a ser brat, tal como já se acostumou orgulhosamente à ideia de prolongar a rave bem para lá da anunciada hora de fecho. Mais do que a ironia do destino, a ideia da estreia nacional há muito adiada de Charli xcx coincidir, precisamente, com o que ainda resta de uma festa que tem visto o seu fim infinitamente prolongado só vem provar o que ainda a mantém de pé: o principal disco de pop por excelência dos últimos cinco anos; autêntico, desconfortável e autorreferencial na forma como analisa e transforma as ansiedades crescentes que fervilham sob o estrelato numa descarga fresca e sem pudor capaz de ditar o zeitgeist e destruí-lo por completo.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
É com esta carga demolidora que a britânica entra num Palco Porto dominado, logo à partida, pela euforia coletiva de abraçar por igual o prazer e o contemplar da crescente tensão entre o BRAT do passado e do presente, e se esta sua natureza hedonista ainda é capaz de manter o espetáculo vivo perante a promessa e voto generalizados da eternidade. A segurar a rotina está apenas Charli, quase sempre sozinha, prendendo a atenção de uma verdadeira multidão de fãs com uma atitude inigualável (mesmo que não tão fervorosa quanto o esperado), e apenas acompanhada por um operador de câmara que vai captando os seus abanões de anca, sacudidelas de cabelo e olhares trovejantes enquanto as batidas intoxicantes de Von Dutch, Guess ou Club Classics ameaçavam abrir no chão uma cratera com tamanha agitação. Recuperando o seu equilíbrio genial entre a alegria depravada e a emoção genuína, o foco de Charli no ethos mais amplo de BRAT – que preencheu a maioria do alinhamento de 17 músicas – trouxe consigo um significado pessoal que, quer venham da artista ou da plateia, passam a contribuir para cada descarga coletiva. Enquanto o dueto com Lorde em Girl, so confusing se converte num mote comunitário de solidariedade feminina, Apple e toda a viralidade da sua dança funcionam como um pano de fundo comicamente irónico para uma canção sobre traumas geracionais. É uma dualidade que serve também o propósito agora profético dos seus êxitos antigos. Se Track 10 mostra Charli no seu estado mais catártico, a sempre eletrizante Vroom Vroom assume-se igualmente como uma homenagem agridoce a SOPHIE, pioneira que partiu demasiado cedo e que tanto contribuiu para traçar o perfil da estrela pop que Charli tem hoje.
Dada a emoção projetada dentro e fora do palco, são precisamente os vislumbres de vulnerabilidade que melhor revelam a fragilidade escondida por detrás de toda a persona imponente e do autotune inconfundível. A ideia de um espetáculo totalmente centrado nela própria, a dependência de estar à altura do legado que criou nos últimos 365 dias e, acima de tudo, a pressão de se ver confrontada com a ideia do que vem a seguir quando não queremos assistir ao descer das cortinas. Para além de refrescante, chega a ser emotivo a forma como Charli traz união a um concerto pop particularmente solitário e individualizado, em que cada um transporta as suas memórias e experiências para o ímpeto sentido pelos cânticos em uníssono, sempre em nome de uma causa (ou, melhor dizendo, de um brat summer) que teria previsivelmente os seus dias contados. “I’ve decided I want this to last forever”, indicam os painéis mesmo antes de a deixarmos de ver enquanto I Love It de Icona Pop ecoa pelo recinto. Ninguém quer que o momento acabe, e enquanto formos à sua festa, esta nunca verá o seu fim.
The Jesus Lizard e como o descontrolo não tem validade
David Yow aborda cada concerto como se fosse o último. Aos 64 anos de idade, o icónico vocalista dos The Jesus Lizard continua a ser uma força da natureza, indomável, preocupando-se pouco com a sua própria segurança, tudo em nome da arte de um bom espetáculo, tão monumental e anárquico como na década de noventa. O brilhantismo único e desmedido de uma das bandas seminais do noise rock reaparece sem amarras ao longo de Rack, o primeiro regresso ao estúdio neste século, o som de uma banda revigorada e a impulsionar o seu som principal para acolher novos detalhes, sem nunca reinventar ou sacrificar a sua integridade criativa.
Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Rondando o Palco Revolut enquanto incita uma tempestade interminável nas linhas da frente através dos seus gritos guturais e reações viscerais, a primeira passagem por Portugal de Yow e companhia foi uma reencenação alegremente perturbadora de velhos hábitos, induzindo todos os envolvidos num ritual musical de alta intensidade e recompensas ainda maiores. Uma vez que as suas letras requerem atuações igualmente desvairadas, Yow aprecia visivelmente a satisfação do público com o caos e o humor macabro tão inerentes à banda que lidera – e a base de muitos dos seus novos e antigos expoentes. Enquanto planeia, ao som de Puss e Gladiator, os inúmeros crowdsurfs que se desenrolaram ao longo de uma hora de concerto, o vocalista vai devorando freneticamente o microfone, atirando copos para a plateia (e, sem saber, para a testa de um dos presentes) e fazendo tudo o que está ao seu alcance para manter o ruído dos The Jesus Lizard implacável. Para Yow e companhia, existe um certo orgulho na possibilidade de implodir quando necessário e de não obedecer a quaisquer regras ou desejos do público, que se verga perante cada uma das ordens, troças e vulgaridades de Yow lançadas entre as canções. Acaba por ser, inclusive, um verdadeiro testemunho do quão arrebatadores são os The Jesus Lizard quando, na altura em que se despedem com a incontornável dose dupla de Seasick e Monkey Trick, os seus efeitos bombásticos sobre tudo o que os rodeia ainda conseguem subir uma velocidade no acelerador antes de desaparecerem em glória, com o seu legado intocado e a astúcia para desafiar tudo e todos a manter-se tão ou mais relevante ao fim de tantos anos de música.