Vodafone Paredes de Coura 2024 (4º Dia): O passado, presente e futuro da música de guitarras

Após um terceiro dia de concertos onde as celebrações universais, as propostas nostálgicas e a importância da diversidade foram prevalentes no anfiteatro natural do Taboão, começava-se a avistar o final de mais uma viagem neste festival. Levamos daqui inúmeros concertos de alto nível, uma organização eficaz, que soube dar resposta à importância do acontecimento e condições meteorológicas que em muito contribuíram para que os quatro dias passados no recinto – entre a música, os banhos no rio e o campismo – fossem, no mínimo, memoráveis. A CONTRABANDA marcou presença no último dia do Vodafone Paredes de Coura 2024, que prometia ser o mais tradicional de toda a programação. Com um foco patente naquilo que tem sido a história da música rock ao longo das últimas três décadas (e como uma certa banda irlandesa parece estar a preparar o seu próximo capítulo).

O conforto de Hurray for the Riff Raff em aprender com o tempo

Não há como fugir da nossa história. Este é um pensamento recorrente na maioria das reflexões de Alynda Segarra sobre si mesma e a sociedade em que habita: como nos deliciamos na nossa própria natureza, aprendemos com a mesma e, num ato incessante de coragem e compaixão, tentamos encontrar consolo nas raízes que possuímos, de forma a entender melhor o que somos hoje. A benevolência e a vida em movimento são pontos-chave de todo o ethos narrativo do nono e mais recente trabalho de Hurray for the Riff Raff, The Past Is Still Alive, e o mesmo se pode aplicar, mais amplamente, à música folk como um todo – um molde há muito reencontrado na lente descomplexada de Segarra, que combina o valor tradicional da herança estilística com os sons e as identidades de hoje.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

No regresso do seu projeto a solo nacional, as suas canções foram um santuário apaziguador numa tarde de despedidas pouco desejadas ao habitat natural da música. E ainda que tivesse entrado e saído do Palco Vodafone perante uma das plateias mais reduzidas nesse mesmo local durante toda a edição, Segarra bem apostou num balanço saudável: entre relaxamento, imersão e moralismo para tentar colmatar um cenário relativamente vazio – e que tornaria constrangedor qualquer tipo de intervenção prolongada. Se Alibi, logo a abrir o alinhamento, utiliza a aspereza da sua voz para encabeçar uma cortante reflexão sobre um amigo a recuperar dos limiares da dependência, então Buffalo aumenta os tons do otimismo e, com o plano de fundo da suavidade das guitarras, equipara um romance fluorescente a uma biodiversidade que lida diariamente com os riscos da extinção (conseguindo, na maioria dos casos, prevalecer). Independentemente da temática ou ânsia em jogo, existe sempre uma sensação de segurança nas baladas de Segarra, conseguindo proporcionar a comodidade e meditação necessárias para fazer esquecer, durante alguns instantes, um mundo dominado pela hostilidade.

A parede de ruído implacável dos Hotline TNT

Pouco menos de uma hora antes dos Slowdive subirem ao topo do palco principal, os Hotline TNT apareceram, do outro lado do recinto, para mostrar a sua visão expressiva e amplificadora das fundações do shoegaze que prevaleceram durante as últimas três décadas. Cartwheel – o trabalho que recentemente os colocou na ribalta – faz a ponte entre o que lhe antecedeu e a possibilidade do que se segue com uma enorme eficácia, tendo em conta as suas 12 faixas e 33 minutos de duração. Entre a trémula franqueza que transparece nas passagens vocais de Will Anderson (repletas de reflexões contundentes sobre desgostos amorosos que abraçam o lado mais instável da emoção humana) e a pura brutalidade com que se preenche cada corrente de guitarras distorcidas, assiste-se a uma reconfiguração dos sons nostálgicos de inúmeras referências evidentes, de maneira a se adaptarem a épocas e sensações contemporâneas.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

A primeira passagem dos Hotline TNT por território português também reflete esta dicotomia patente. Para além da presença clarividente de fãs de todas as idades em cada recanto do Palco Yorn (que tiveram direito a uma sorteio fugaz de t-shirts, atiradas para as filas da frente, antes de History Channel), três dos quatro membros em cena assumem a função de guitarristas – um estilo e decisão estética tão inegavelmente noventistas, mas feito, novamente, através de uma lente progressista. Protocol, por exemplo, empilha cada camada de instrumentação numa evolução a lume brando que acaba por dar forma a uma parede desenfreada e prazerosa de ruído. Já I Thought You’d Change fica entre o power pop de uns R.E.M. e os arrojos slacker dos Cloud Nothings, irradiando claridade através de cada explosão lustrosa de som e arrastando consigo uma plateia que nunca hesitou em acompanhar a energia propagada pelo quarteto. É o tipo de intensidade sónica que parece, por vezes, nunca ter um fim à vista, dado o seu crescimento gradual e ilimitado, mas que nunca corre o risco de se tornar monótono nas mãos dos Hotline TNT. A dada altura (e como tudo o que é finito), a onda fervente de barulho implode e acaba abruptamente, ficando tanto o público como a banda com o desejo de voltar a sentir o seu vigor o mais depressa possível.

O deslumbre onírico dos veteranos Slowdive

Em 2017, o retorno ao ativo dos Slowdive conseguiu o que muitos achariam impensável. Quase como por magia, uma banda que pouco precisava de voltar a reafirmar o seu estatuto como “uma das referências duradouras do shoegaze” conseguiu renascer para lá das glórias antigas e transportar o seu cunho artístico na década de 90 para novas e refrescantes direções. Voltariam a expandir esta sua segunda vida no ano passado, com um everything is alive que se junta à lista de marcos invejáveis de um quinteto que vai envelhecendo “com enorme graciosidade”. Talvez a maior prova da sua intemporalidade, porventura, seja a onda humana – algures entre as gerações mais novas, recentemente apaixonadas por este tipo de sonoridades, e uma camada de admiradores da velha guarda – que tanto ansiava pela oportunidade de assistir à sua terceira passagem por Paredes de Coura.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

Mal os “crescendos sonhadores de shanty” inauguram as festividades, sentem-se de imediato as consequências extasiantes do que os Slowdive melhor sabem fazer, até neste seu estado mais minimalista e sintetizado: enfeitiçar quem por ali passa com música que estreita a divisão entre o sonho e a realidade. De uma ponta à outra do anfiteatro, tudo contribui para uma imersão vivida em uníssono: os visuais hipnóticos que amplificam ainda mais os elementos transcendentais de Souvlaki Space Station e Sugar for the Pill; as tonalidades românticas e sedativas de kisses; a muralha de guitarras carregadas de efeitos que se forma ao longo de Catch the Breeze e abalroa qualquer um com uma maré inescapável de emoção. Até a lua praticamente cheia que subia no céu (como Rachel Goswell fez questão de sublinhar) contribuiu para uma conjuntura terrena com contornos de paraíso. São já 35 os anos contados a envolver multidões que não param de crescer, e mesmo que estejam mais interessados em evoluir do que se prenderem às canções “muito antigas” (assim apelidadas por Neil Halstead num breve discurso antes de Alison), o poder sentido quando se sonha ao lado dos Slowdive nunca deixará de fascinar.

A herança nostálgica e inerte dos The Jesus and Mary Chain

Quando os The Jesus and Mary Chain atravessavam o seu pleno criativo na década de 80, poucos seriam os que poderiam prever que os escoceses ainda estariam em atividade ao fim de quatro décadas, com digressões e, sobretudo, novos trabalhos de estúdio em seu nome. É um luxo incomum para a grande maioria dos grupos do seu tempo, mas não existe maneira de contornar o valor absoluto dos laços familiares que ainda unem Jim e William Reid ao universo artístico. Se Glasgow Eyes, o primeiro álbum de inéditos em apenas sete anos, voltou a ficar expectavelmente aquém de investidas passadas, servindo mais como um lembrete do seu estatuto duradouro e da cultura rock que os informa, também é sabido que a principal razão para motivar multidões para cada um dos seus concertos permanece intacta.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS
[Nota: A banda não permite fotos frontais nem de perto]

Quem decidiu marcar presença no regresso dos The Jesus and Mary Chain aos palcos nacionais quis ouvir, claro está, os clássicos de sempre, tocados por uma banda que tanto merece continuar a colher os louros de discos fenomenais como Darklands ou Psychocandy. Happy When It Rains, Head On e Nine Million Rainy Days, por exemplo, ainda embala refrões melódicos, merecedores de serem ecoados por multidões com a quantidade ideal de frieza e devoção ao fim de tantos anos de carreira. Por entre cada farol de grandeza, no entanto, surgem os temas mais recentes do repertório dos escoceses, como Jamcod ou Chemical Animal, que simplesmente não possuem a mesma eletricidade dos seus hinos maiores. A inescapável apatia de Jim Reid – uma postura expectável quando consideramos o historial deixado pela maioria dos espetáculos dos The Jesus and Mary Chain desde a sua génese – e uma plateia que respondeu com a mesma moeda de troca também não contribuíram para que a sua passagem pelo festival ganhasse contornos memoráveis. Nem um encore composto por Taste of Cindy, Reverance e uma incontornável Just Like Honey com o fator-surpresa de Rachel Goswell dos Slowdive – que tinham acabado de dar, duas horas antes, um espetáculo bem mais enaltecedor do seu legado – chegaram para compor uma exibição pouco memorável que tão frequentemente oscilou entre o aprazível e o entediante.

A proclamação dos Fontaines D.C. como o próximo passo da música rock

Desenhe-se o cenário: os Fontaines D.C. pisam o palco principal do Vodafone Paredes de Coura para um concerto que, antes sequer de entrarem em cena, já permitia adivinhar os seus contornos especiais. A iminência do lançamento de Romance, seis dias mais tarde, preparava-os para serem catapultados do escalão de mera promessa para fenómeno garantido. Feitos anteriores como A Hero’s Death e Skinty Fia certamente apontavam um diamante em bruto, mas toda a caminhada preliminar deste seu quarto álbum tem vindo a demonstrar que têm muito mais trunfos ao dispor para além de um post-punk rasgado de sujidade e críticas sociais de extrema importância. Assistiu-se, na passada noite de sábado, ao quase-culminar de uma revolução de tudo o que os irlandeses representam, que teve no anfiteatro do Taboão um dos últimos degraus antes de cimentarem o seu lugar entre os grandes nomes da contemporaneidade.

Fotografias da Autoria de Sérgio Monteiro @ DIREITOS RESERVADOS

Ainda o vocalista Grian Chatten avançava para o seu posto ao som da faixa-título de Romance, apenas sobrevoado pelo logótipo policromático da banda, e a sua comparência irradiava, por si só, uma confiança quase profética. Logo a abrir, a sequência de Jackie Down the Line e Televised Mind acaba a projetar cânticos a plenos pulmões nas filas da frente, para mais tarde se desvendar uma Death Kink pautada pela sua brutalidade cabal. Acima de tudo, a tenacidade dos Fontaines D.C. neste registo fala por si e Chatten leva esse sentimento à letra. Foram escassas as interações dirigidas ao púlpito e bastou a visão omnipresente da bandeira palestiniana para ser-se menos forçado nas necessárias alusões do que Joe Talbot e companhia. Deixem-se as reflexões românticas de I Love You ser cantadas em eco por uma das plateias mais numerosas de toda a semana ou a narrativa contundente de Boys in the Better Land transpor mais do que uma série de discursos vazios. E nem o fresquíssimo trio de In the Modern World, Favourite e Starbuster mudou o que já parecia uma vitória anunciada. Num último dia de atuações onde se canonizou a história da música rock ao som de várias épocas e sonoridades complementares, os Fontaines D.C. quiseram antecipar o que está à espreita na próxima página do manuscrito, antes da aclamação universal e deste concerto em Paredes de Coura – vivido no contexto certo, na altura certa – ficar para a história, esperemos, como a coroação de uma das bandas mais transformativas e únicas do seu tempo.

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