MIKE no gnration: Reflexões ardentes feitas em família
Depois de ter atuado no B.leza no dia anterior, o rapper e produtor nova-iorquino rumou pela primeira vez a Braga para uma das datas inaugurais da sua digressão mundial de apresentação de Burning Desire, editado em outubro passado. A primeira parte do espetáculo ficou a cargo de Jadasea e SALIMATA.
A música de Michael J. Bonema, melhor conhecido como MIKE, consegue cobrir diversas sensações: é introspetiva, hipnotizante, incrivelmente prazerosa de ouvir até. Acima de tudo, o rapper derrama o seu coração em nome da expressão artística, transformando cada viagem musical e individual numa experiência indubitavelmente comunitária. Desde os dias em que vimos MAY GOD BLESS YOUR HUSTLE transformá-lo, com apenas 18 anos de idade, numa das principais promessas da órbita mais underground do hip-hop norte-americano, Bonema aborda tudo em que está envolvido com uma conjuntura familiar em mente. Tendo fundado o coletivo [sLUms] e, mais tarde, a sua própria editora (10k), há muito que a corrente artística que MIKE ajudou a moldar – e que tem, desde então, informado a evolução de artistas como Pink Siifu, MAVI, Navy Blue ou até mesmo o seu mentor, Earl Sweatshirt – tem colocado, bem no seu cerne, a realidade que o rodeia. Na perspetiva contemplativa que assombrou, por exemplo, os lamentos catárticos de Tears of Joy e Weight of the World, vemo-lo carregar o peso da morte da mãe com uma crueza inabalável e a arte que daí resulta com um caráter quase terapêutico. “Memórias fragmentadas são apresentadas como se de um diário se tratasse, tentando fazer sentido do seu próprio martírio” nesta sua jornada de autodescoberta tão autêntica como empática. Mesmo em Disco, do qual surgiu uma “faceta mais esperançosa e otimista”, mas igualmente “autoanalítica e instigante”, as suas experiências pessoais continuam a servir como mantras dirigidos ao ouvinte mais próximo.
Tendo o recente processo evolutivo de MIKE assumido um registo incrivelmente prolífico, acolhe-se cada nova página deste livro da sua vida como um revisitar do seu estado de consciência sob uma perspetiva recém-adquirida. E foi precisamente, no passado mês de outubro, que fez de Burning Desire, mais do que uma brilhante extensão da caminhada criativa que atravessa, um “encaixe clarividente de tudo o que o torna numa voz inegavelmente cheia de alma e, agora mais do que nunca, orgulho”. Reintroduzindo as tendências estilísticas de sempre num estado claramente refinado (“a abordagem sedativa e monocórdica com que se dirige ao microfone, os beats nebulosos, a palete heterogénea de samples” que encabeça as produções que assina enquanto dj blackpower), Bonema ressurge com uma confiança e autenticidade perentória, honrando as conquistas do destino e criando, ao lado de colaboradores novos e recorrentes, um ambiente tão celebrativo como fraternal.
Fotografias da Autoria de Francisco Alves @ DIREITOS RESERVADOS
É precisamente à boleia deste novo pleno criativo que MIKE regressa a Portugal, um ano após ter feito da sua passagem pelas Noites de Verão uma prova máxima dos valores e conexões que prevalecem dentro e fora da sua esfera musical – e eternizados, aliás, no videoclipe de Ipari Park. Ainda antes de pisar o palco do gnration, tudo o que rodeava a sua primeira atuação em Braga parecia realmente alinhado com o espírito de camaradagem que tanto se queria salvaguardar nesta noite extraordinária em ano bissexto. Enquanto o rapper londrino Jadasea e SALIMATA, artista originária de Brooklyn, se encarregavam das suas respetivas atuações de abertura (balançando confiantemente os encargos no microfone e num MPC ou num computador portátil, respetivamente), Bonema e a sua restante equipa vibravam a partir das laterais, no que muitas vezes parecia, tal como já é habitual nas suas digressões, uma mini-reunião da esfera artística nova-iorquina que ele próprio ajudou a catapultar.
Quando finalmente chegou a altura de MIKE e TAKA (o frequente contribuidor da IFE Radio que lhe serviu aqui como DJ de apoio), a onda de gratidão foi constantemente devolvida ao longo do alinhamento, com uma audiência entregada que o recebia como se fosse um campeão local. Ao longo de relíquias mais antigas como GOD’S WITH ME ou Hunger e dos muitos hinos irrepreensíveis que compõem Beware of the Monkey e, em especial, o seu último disco, debruça o peso do próprio coração em cada verso com a convicção e humildade de um ser ancestral, razão mais do que suficiente para focar a atenção de qualquer um, e “assim se aguenta até as palavras se esgotarem”. O resultado é uma performance impetuosa que consegue transpor, em grande medida, o poderio introspetivo da sua arte numa oferenda ainda mais carregada de urgência, emoção e, para surpresa de alguns, puro divertimento.
Fotografias da Autoria de Francisco Alves @ DIREITOS RESERVADOS
Não há como negar: MIKE é uma força indomável quando se encontra em cena, mas não lhe falta, igualmente, o carisma para conquistar cada receção calorosa (e também, claro está, dos seus contemporâneos). Para THEY DON’T STOP IN THE RAIN, escolhe direcionar as rimas para TAKA (que assina, na versão de estúdio, o discurso inicial do tema), desdobrando-se, mais tarde, em shoutouts a Jadasea durante What Do I Do?. Espelham-se – ora comandados por Bonema, ora iniciados espontaneamente – as passagens vocais de Burning Desire, nothin i can do is wrng ou Stop Worry! (assinadas, neste caso, pela originator Sister Nancy), as soletrações assertivas de World Market (Mo’ Money) e até mesmo o loop de Joni Mitchell que circunda o instrumental de 98 de uma ponta à outra da sala. E depois de um expressivo aperto de mão com um dos fãs mais devotos nas filas da frente, momentos antes de voltar a projetar os ritmos abrasivos de African Sex Freak Fantasy, MIKE lança a pergunta: “Are we a family or what?”, vestindo comicamente a pele de Vin Diesel nos filmes da saga Fast & Furious. A verdade é que o calor humano gerado em mais uma ronda bem-sucedida por terras lusitanas recai para tudo menos para o domínio do cliché. Basta observar os olhares cerrados que se prolongam ao longo da noite, as homenagens finais que Bonema escolhe deixar à mãe e às irmãs, interiorizar a sinceridade que transpira nas suas mensagens, e dar forma a esta devoção partilhada para manter a chama da comunidade bem acesa.