MEO Kalorama 2023 (2º Dia): Uma noite de sonho ao som de música transcendental
Após um arranque de festival maioritariamente marcado pelo regresso dos Blur e dos Yeah Yeah Yeahs a Portugal, a expectativa gerada em volta do segundo dos três dias de programação deu frutos, proporcionando um vasto leque de atuações inesquecíveis, desde os sermões libertadores de Florence + The Machine e Ethel Cain à eletrónica altiva de Arca e Aphex Twin, sem esquecer o regresso dos escoceses Belle and Sebastian aos palcos nacionais.
A missa purificadora de Ethel Cain
Há quem defenda que a música pode ser uma religião. Para qualquer crente, o porquê para tal devoção chega a ser complicado de verbalizar, quanto mais de replicar ou reproduzir a quem ainda não se converteu. Em vários parâmetros, o culto em volta de Ethel Cain orbita em torno dos mesmos valores. Nos sermões de Preacher’s Daughter, uma estreia nos discos “repleta de iconografia cristã, de relacionamentos condenados e de tragédias devastadoras que nos afogam numa piscina de escuridão”, encontra-se essa espiritualidade em cada recanto, numa narrativa condenada por ciclos intergeracionais de abusos e traumas – inspirados na própria experiência de Hayden Anhedönia como mulher trans num ambiente profundamente católico – que consegue, ainda assim, encontrar os seus refúgios, divinos ou não.
Fotografia da Autoria de Ana Rocha Nené @ DIREITOS RESERVADOS
Para os seguidores imediatamente rendidos à sua primeira missa em Portugal, a capela gótica de Ethel Cain toma aqui o lugar de porto seguro – não muito distante do simbolismo que persegue House in Nebraska, diga-se. Existe uma condição metafísica em cada palavra da oradora, submergidas pela instrumentação nebulosa que a apoia. Carregando consigo o coração na mão, assistem-se a trocas sentidas das múltiplas passagens de Family Tree ou Sun Bleached Flies. “God loves you, but not enough to save you”, isso é sabido, mas partilha-se em comunhão um espírito igualmente purgativo, capaz de responder a todas as preces imagináveis. Não bastasse o poderio subtil da sua voz, Cain comanda a complexidade quase bíblica das suas histórias da forma mais impactante possível. A devoção, junto às grades, é palpável e por lá andou em Crush e, acima de tudo, em American Teenager, “uma faixa triunfantemente pop – ao estilo de Springsteen – e altamente libertadora”, enunciada a plenos pulmões nas filas da frente. Mas neste arrepiante sermão de Ethel Cain, contudo, Thoroughfare ganhou um extra yeehaw, com a inesperada entrada em cena de Florence Welch para um dueto entre estudante e professora (não seria a última vez que partilhariam o palco neste dia). Era visível a comoção da própria norte-americana, que também vê aqui, num dos momentos altos de todo o festival, um ciclo pessoal a ser fechado, muito provavelmente impossível de colocar em palavras. O que é espiritual, afinal, sente-se mais do que se explica e difícil foi não sair de um concerto desta magnitude sem acreditar no domínio da fé.
O turbilhão de nostalgia e imprevistos da festa dos Belle and Sebastian
Para o bem e para o mal, os Belle and Sebastian serão sempre lembrados pelo legado que já deixaram. É um processo inevitável de qualquer grupo de renome, diga-se, e o impacto dos escoceses naquilo que veio a ser uma corrente mais assumidamente twee do indie pop é indiscutível, largamente pautada pelos feitos brilhantes de If You’re Feeling Sinister ou Tigermilk. Mesmo sendo veteranos no seu ofício, Stuart Murdoch e companhia aceitam sem pressões a colocação desse rótulo e prosseguem o seu percurso. Olhe-se para os dois últimos discos editados em sequência de anos, A Bit of Previous e Late Developers, onde a natureza desprotegida e aconchegante dos Belle and Sebastian continua bem assente e permanentemente familiar, ainda que a inspiração de épocas passadas acabe por assombrar tudo o que têm editado desde então.
Fotografia da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Neste regresso a Lisboa ao fim de quatro anos, a atuação festiva dos Belle and Sebastian começou por ser cintilante, dando praticamente uma amostra de cada fase da já longa carreira dos escoceses. Nos clássicos longínquos de outrora, de She’s Losing It a Piazza, New York Catcher, não esquecendo a deslumbrante Get Me Away From Here, I’m Dying, o que não faltou foi um sentimento coletivo de nostalgia, elevado pelo caráter humilde e até agradavelmente desajeitado de Murdoch, que ora percorre a fileira central do recinto, de mãos dadas ao público, ora vai brincando com os seus companheiros de banda entre passagens. Não demoraram, porventura, a surgir os imprevistos, que ameaçaram atormentar a segunda metade do concerto. Se os problemas técnicos no teclado obrigaram a adiar o grande e habitual número dos escoceses ao vivo, então a tão desejada The Boy With the Arab Strap, já com os esperados membros da audiência em palco, rapidamente se tornou caótica. Das constantes interrupções para selfies quase forçadas à rendição improvisada dos The Rolling Stones, a sinceridade que percorre a música da banda deu lugar, ainda que por breves instantes, a algo bem mais plastificado. Não obstante, e como qualquer artista experiente, Murdoch retoma o comando da atuação pela última vez. Ao som de There’s Too Much Love, volta a cair a ficha do património dos Belle and Sebastian, que nem os contratempos conseguem apagar por completo.
O regresso imponente de Florence + The Machine aos palcos
Cada concerto dos Florence + The Machine é, diga-se, muito mais do que um simples concerto. Guiados pela mão de Florence Welch, embarcamos numa incessante viagem a um paraíso térreo, envolto em velas e candelabros reluzentes, uma experiência sem igual feita de presenças etéreas e momentos de pura libertação. Chega a ser uma marca assente na já longa caminhada da britânica, onde a linha que separa as suas atuações de um ritual extra-corporal de adoração mútua fica cada vez mais ténue. Tudo apontava, no entanto, para que o seu aguardado regresso a Portugal fosse diferente dos que se antecederam, sendo o contexto, neste caso, praticamente indissociável do concerto em si. O destino ditava que este seria o regresso aos palcos de Welch, após ter sido submetida a uma cirurgia de emergência que afirma ter-lhe salvado a vida. Esta seria, igualmente, uma celebração tardia do seu 37º aniversário, realizado poucos dias antes da presente atuação. E na noite em que o culto que a contorna mais precisou da sua ninfa, a artista britânica mostrou-se na sua máxima glória.
Fotografia da Autoria de Eduardo Filho @ DIREITOS RESERVADOS
A banda sonora parece, quase como por magia, ainda mais apta para a ocasião, não fosse o seu quinto e último disco, Dance Fever, um convite solene e, simultaneamente, um compromisso à reconexão humana, resultante de dois anos de pandemia, e à euforia das interações coletivas. Esta relação direito-dever chega a ser um requisito nesta porta de entrada para o universo de Welch. Quando suplica que se troquem os telemóveis pelo contacto físico dos mais próximos antes do culminar de My Love, sob a forma de um gigante salto humano (e de uma consequente nuvem de poeira), o público não tem opção senão obedecer. Para os fãs mais dedicados, essa sintonia nem precisou de ser procurada, bastando a urgência de temas como Ship to Wreck, Free ou Choreomania para se dar azo à submissão total. Não faltaram, obviamente, os clássicos intemporais do seu catálogo, esses sim mais do que consensuais. Bastaram as primeiras notas de You’ve Got the Love, Kiss With a Fist ou Dog Days Are Over para se desenrolar uma série infindável de coros assertivos e explosões de alegria, devolvendo a Welch toda a paixão ali depositada. Sem desvalorizar um fenomenal e derradeiro trio de canções para o seu encore (Never Let Me Go, Shake It Out e Rabbit Heart), o momento mais simbólico de toda a atuação surgiu sob a forma de um retorno de favores. Se, cerca de três horas antes, Welch tinha aparecido de surpresa no concerto de Ethel Cain, as duas voltaram a cantar lado a lado, agora no palco principal, ao som da comovente Morning Elvis, que ganha aqui uma carga emocional acrescida. “And if I make it to the stage, i’ll show you what it means. To be saved”, cantam ambas em uníssono, de mão dada, testa com testa. A verdade é que, perante todas as adversidades, Welch aterrou mesmo em palco. Nesta sua ressurreição, a catarse, tal como a exaltação adjacente à sua música, é partilhada e a noite, essa sim, eternizada na memória dos que ali se renderam.
A espontaneidade da suíte eletrizante de Arca
Ao longo de pouco mais de uma década, Arca tem deixado bem ciente que, na sua arte, não existe espaço para quaisquer rotulações ou preconceitos. A única força em jogo nesta sua tempestade artística prende-se na artista venezuelana, um raro caso de espontaneidade numa indústria que tanto faz para tentar limitar a liberdade criativa dos seus próprios artistas. Lançar quatro álbuns da sua coletânea Kick numa só semana? Porque não? Fazer uma centena de edições do seu tema Riquiquí com recurso a inteligência artificial? Ninguém se opõe. Parte do seu apelo passa precisamente por esta sua postura desafetada de fazer música. Não fosse Arca, desde a sua génese, uma figura assumidamente indefinível, e todo o ato desafiador associado à sua eletrónica angular e, por extensão, às suas performances saíriam atenuadas.
Fotografias da Autoria de Eduardo Filho e Jéssica Simões @ DIREITOS RESERVADOS
Neste regresso a território nacional, que contou com alguns minutos de atraso, somos convidados a entrar na sua suíte multifacetada, repleta de excentricidades e circundada de ramos de flores, onde a desinibição sexual é uma garantia e a tenacidade de Arca uma constante. Também fica, logo à partida, evidente a imprevisibilidade de todos os elementos em jogo. Abrindo as hostes com um DJ set que percorre as mais variadas bases estilísticas (do reggaeton ao hip-hop de Earl Sweatshirt, e do baile funk ao techno), rapidamente vira o mood do concerto do avesso, dirigindo-se a uma minúscula sex room, feita de bancos e correntes metálicas, onde provocava sem desdém uma audiência absolutamente rendida à sua presença, ao som de What It Feels Like For a Girl de Madonna, ou roçando-se, mais tarde, num conjunto de vidros, envolvendo-se num ritual sangrento e, ainda assim, não menos dançável. Quando chega a vez de se prender ao microfone, o clima mantém-se apropriadamente extasiante. Fale-se de trio irresistível de Prada, Rakata e Tiro ou ainda da sua incontornável colaboração com ROSALÍA, KLK, foram mesmo as faixas mais assumidamente reggaeton de KiCk i e KICK ii a provocar as maiores ondas de choque numa plateia pronta para o que der e vier, esquecendo, por alguns instantes, o confronto logístico com um dos absolutos titãs da música eletrónica no palco principal, onde já se instalava, a esta hora o seu equipamento impactante (e com Incendio a ecoar no lado oposto do recinto). Foram muitos os que escolheram partir mais cedo deste seu mundo fantasioso, mas, ainda que encurtada, a visita permitiu testemunhar uma belíssima amostra da imponência de Arca.
A odisseia sensorial e palpitante de Aphex Twin (e do seu cubo gigante)
A música de Aphex Twin sempre se mostrou obcecada com o conceito de espaço e tempo – e de como moldá-los ao extremo. Na realidade do irlandês Richard D. James, essas noções existem única e exclusivamente com o objetivo de serem perturbadas e, por vezes, até ridicularizadas. Estar na vanguarda da música eletrónica durante mais de três décadas, afinal, também implica algum tipo de redefinição, quer assuma a forma dos seus trabalhos mais orientados para a música ambiente e o IDM, ou o puro experimentalismo das suas muitas obras-primas nas áreas do techno e do jungle. No seu mundo, algo parece claro e transversal: não existe Aphex Twin sem abrasividade e quebra de limites. Com um novo EP em seu nome (Blackbox Life Recorder 21f / In a Room7 F760), o produtor regressa a Portugal após seis anos de ausência e com um cubo, tão colossal como camaleónico, a fazer de protagonista.
Fotografia da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
O espetáculo que se seguiu foi puramente desconcertante, capaz de intimidar uns e deixar outros tantos incrédulos, como só Richard D. James sabe fazer. Aliás, foi visível a massa humana que, ao fim de escassos minutos de atuação, se quis distanciar deste universo geométrico, sensorial e indubitavelmente estranho para o mais comum dos mortais. Tudo o que o produtor escolhia tocar – como seria de esperar, foram poucos os temas facilmente identificáveis (ouviu-se PAPAT4 (pineal mix) de Syro ou Vordhosbn do já longínquo Drukqs, por exemplo) – acabava por consumir um recinto inteiro numa onda inescapável de graves ensurdecedores, breakbeats eletrizantes e visuais histriónicos que iam sendo projetados nos painéis em palco. Com James escondido por detrás do seu próprio estaminé e imóvel perante o caos que instalou, seguia a experiência audiovisual, repleta de luzes estroboscópicas e símbolos iconográficos, do seu icónico logótipo aos stiff smiles, manipulados em si mesmo e num vasto leque de celebridades portuguesas (de Marcelo Rebelo de Sousa a Fernando Mendes, e de Teresa Guilherme a José Saramago). Ao fim de uma hora e meia de concerto, a violência epiléptica sai de cena tão bruscamente quanto entrou. James já não pisa o mesmo chão que o público que tão bem conseguiu alienar. A confusão e o fascínio juntam-se numa só emoção e a raridade deste momento começa verdadeiramente a deixar marcas na consciência humana. Não restam dúvidas: Aphex Twin esteve aqui e a sua missão foi cumprida.