MEO Kalorama 2023 (1º Dia): Um regresso de festival pintado pelas lendas do passado
O primeiro dos três dias da segunda edição do festival lisboeta ficou marcado por mais um concerto memorável dos britânicos Blur nesta temporada de festivais de verão e pelo brilhante regresso dos novaiorquinos Yeah Yeah Yeahs a Portugal após 17 anos de ausência, enquanto artistas como Pongo, M83 e Shame preenchem os restantes destaques deste dia de arranque do MEO Kalorama.
Num país dominado por uma oferta tão extensa e diversificada de festivais, a afirmação de um novo evento musical, independentemente da sua dimensão e da dependência que exercem no panorama cultural nacional, nunca é fácil. Há precisamente um ano, bem no centro de Lisboa, o MEO Kalorama tentou e conseguiu afirmar-se como uma concorrência de peso, num calendário, por si só, já altamente competitivo. Foi com cabeças-de-cartaz como The Chemical Brothers, Kraftwerk ou Arctic Monkeys que o festival deixou o seu rasto logo na sua estreia. 12 meses depois, com setembro já à porta e o encerramento iminente de mais uma temporada de festivais de verão, a CONTRABANDA estreou-se no Parque da Bela Vista numa segunda edição do MEO Kalorama que prometeu, logo à primeira vista, um vasto cabaz de concertos que se prometiam inesquecíveis. O cartaz apresentado para 2023 orbita entre o passado, o presente e o futuro da música nacional e internacional, apostando em lendas incontornáveis como Aphex Twin, Blur ou Yeah Yeah Yeahs e promessas vigentes como Ethel Cain, Shygirl ou shame – não esquecendo, por igual, nomes como Florence + The Machine, Arca ou Belle & Sebastian. Acima de tudo, veio cimentar o que muitos já previam à época do seu voo inaugural: o espírito do MEO Kalorama, ainda que esteja a dar os seus primeiros passos, veio mesmo para ficar.
A calorosa energia de Pongo que deu início às festividades
Já lá vão 15 anos desde que Engrácia Domingues, amplamente conhecida como Pongo, levou Angola para o mundo com Wegue Wegue, talvez o mais indiscutível hino dos Buraka Som Sistema, sempre guiado pela sua voz e pela sua história, mas raramente acreditado à artista angolana. Entre a sua desvinculação do grupo e um início de carreira a solo, torna-se cada vez mais evidente que falar de Pongo é também falar do seu percurso e da determinação com que tem encarado qualquer adversidade. Quem escolhe desvendar o seu recente disco de estreia, Sakidla, encontra nele uma reinvenção notável de uma mulher africana que viu, em tempos, a sua arte como pouco acarinha em solo nacional, e um fogo impossível de apagar, pautada pelos sons do kuduro (fundido, por vezes, com outras bases estilísticas, do amapiano ao baile funk) e uma motivação altamente contagiante. Sempre foi assim, mas mais do que nunca, a música da artista angolana é feita, precisamente, para se partilhar e viver em conjunto, fazendo da sua positividade uma força para fazer esquecer o medo constante do dia de amanhã.
Fotografias da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Na intimidante tarefa de abrir o palco principal de um festival desta escala, Pongo escolheu fazê-lo junto da sua própria família. Do elenco inteiramente feminino em palco à sua própria filha (que voltou, inclusive, a entrar em palco para uma derradeira vénia de agradecimento de toda a sua equipa), Pongo também recolhe daí a determinação necessária para fazer dos ritmos magnetizantes uma ordem inescapável. Temas como Kusola, Bruxos ou Baia indubitavelmente aqueceram os ânimos, e nem o calor sentido no Parque da Bela Vista – que colocava uma das laterais do público inicialmente apática – evitou um crescendo de energia que, felizmente, resultou em verdadeiros momentos de libertação comunitária. Claro está que Wegue Wegue – ainda que numa versão recentemente revisitada – provou ser a receita ideal para os mais hesitantes, partilhada lado a lado com os fãs, envoltos em saltos extasiantes que faziam esquecer a aridez, as nuvens de pó e, acima de tudo, qualquer adversidade. Ao lado de Pongo, damos valor ao sentido de pertença, de criar uma comunidade dentro de cada momento de comunhão, capaz de restabelecer espíritos, quebrar preconceitos e instalar, em cada um de nós, o calor da sua música.
A imersividade dos M83 num cenário improvável
Ao longo de mais de duas décadas, a música dos M83 tentou, quase sempre, encontrar um balanço entre a nostalgia e a grandiosidade, numa corda-bamba artística que até hoje parece não ter sofrido alterações de maior. Na meticulosidade de Dead Cities, Red Seas & Lost Ghosts e Saturdays = Youth ou na escala cinemática do renomado Hurry Up, We’re Dreaming, as sensações despertadas são idênticas. Corre nela uma ambição arrasadora, sem dúvida, mas também uma relação entre o onírico e o melodramático, uma onda feita de emoções e sintetizadores apta para a claustrofobia de um quarto opaco e para a natureza transcendental de qualquer viagem noturna. O mesmo se aplica a Fantasy, um retorno aos discos que volta novamente a jogar os trunfos seguros do projeto chefiado pelo francês Anthony Gonzalez.
Fotografias da Autoria de Gonçalo Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Confrontar-se, por isso mesmo, com um concerto dos M83 em plena tarde num Palco San Miguel – mais reduzido em tamanho – torna-se numa tarefa algo desconcertante. Neste regresso a Portugal, tanto a banda como o público se vêm obrigados a reajustarem. Nada que afete substancialmente a imensidão de Oceans Niagara ou Sunny Boy, por exemplo. Mesmo sendo uma banda sonora que implora por um cenário bem diferente, a imersividade dos temas fortes de Gonzalez e da sua banda é igualmente transversal ao vivo. Encontramo-la em todos os recantos dos seus trabalhos e, neste registo, fica patente a facilidade com que consegue mergulhar qualquer um num mar de exaltação. Repescar alguns dos seus clássicos foi, certamente, uma fórmula ganhadora. Não surpreende ninguém que Wait, We Own the Sky e, especialmente, a inescapável Midnight City tenham levado uma plateia inteira numa experiência sem igual, por mais que não seja graças a um dado apreço por todas as emoções que estas faixas conseguem despertar. Para quem subestimou o poder transformador e levitativo dos M83, teve aqui a sua resposta mais certeira, algo que nem os problemas de som do Palco San Miguel conseguiram boicotar. Não importa a condição ou os constrangimentos, deixemos Gonzalez e companhia guiarem o caminho, a imaginação é capaz de tratar do resto.
O glorioso regresso dos Yeah Yeah Yeahs a Portugal
Nova Iorque, viragem do milénio: o garage rock provoca uma autêntica revolução no panorama musical internacional. A lenda é mais do que conhecida – as suas personagens também – e são vários os nomes que a história se recusa a ver sumidos. Para Karen O, Brian Chase e Nick Zinner, mais do que simplesmente viverem à sombra do seu legado, trata-se de nos relembrar do seu impacto eterno. Não teríamos o panorama atual da música rock sem bandas como os Yeah Yeah Yeahs, isso é certo, mas são vários os motivos para assim o ser – e no ano do vigésimo aniversário do seu fulgurante disco de estreia, Fever To Tell, tudo se torna mais evidente. As fusões agora normalizadas entre o pop e o punk, a crueza e a comercialidade juntas em uníssono, mas sobretudo a força imparável que é a vocalista Karen O, carregando consigo (ou, melhor dito, com as personagens que veste em palco) uma energia irreplicável, conjugando euforia, frenetismo e um poderoso sentido de identidade, presente em muitos dos marcos dispersos da sua carreira. O recentíssimo Cool It Down não só prova que os Yeah Yeah Yeahs são tudo menos uma relíquia do passado, como propõe uma celebração majestosa de tudo o que sempre simbolizaram. Na primeira passagem por Portugal em 17 anos, a aura emblemática do trio novaiorquino ganha contornos saudosos, sem perder nenhum do seu ímpeto pelo meio.
Fotografias da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Spitting Off The Edge Of The World serve, logo à partida, como uma bandeira “da força e esperança das gerações” que tão bem souberam influenciar com a intemporalidade de hinos como Pin, Zero ou Y Control. Essa massa humana de admiradores – importantíssima para manter qualquer ídolo vivo – não hesitou em marcar presença e envolver-se no espírito festivo do grupo. Karen O, sem a efusividade de outras épocas, vai mantendo a sua chama punk intacta, mas não inalterada. Mais subtil, mas sem nunca esconder os seus traços provocatórios, tenta engolir o microfone ou colocá-lo dentro das calças, usa os seus cabos como uma corda ou um chicote, gira a sua capa como um tornado policromático. Comanda imperativamente todos os segundos da atuação e eleva o turbilhão de emoções que se vai sentindo na plateia a um pedestal, o mesmo em que tantos fãs a colocam. Ora se enxerga o coração com Maps – a grande ode amorosa do seu catálogo e, diga-se, o trio no seu estado mais perfeitamente pop – ora se iniciam explosões de alegria ao som das míticas Heads Will Roll e Date With the Night. Desfecho merecido para um concerto tão aguardado como excecional, feito em danças coletivas, gritos de vitória e lembranças daquela que foi, é e sempre será uma herança inapagável. Os Yeah Yeah Yeahs estão efetivamente de volta, todos agradecem.
Uma segunda dose menos extasiante dos Blur num só verão
Em junho passado, seria difícil de prever que a digressão que marcou o regresso aos palcos dos britânicos Blur encontraria novamente em Portugal um fim de ciclo. Dois meses passaram desde essa “exibição de sonho das lendas inquestionáveis do brit pop”. Troca-se agora o local (e junta-se uma inesperada referência ao Museu da Marioneta), mas a novidade mais distintiva passa pelo recente lançamento de The Ballad of Darren, um nono álbum elevado por alguns tiros certeiros, mas bem aquém dos feitos mais icónicos do grupo. Mesmo neste abraçar dos Blur à meia-idade, não é como se Damon Albarn e companhia precisem de dar mais provas do seu esplendor. Aliás, a atuação dos Blur no MEO Kalorama em pouco difere da ocorrida na última edição do Primavera Sound Porto. Saem Tracey Jacks ou End of a Century, entra uma fornada diminuta de temas frescos, de The Heights a Goodbye Albert, mas o essencial permanece.
Fotografias da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS
Assistir a um concerto dos Blur em 2023 significa prestar-se a uma celebração de cada recanto do seu invejável catálogo, claramente orientada para os fãs de longa data, mas igualmente prazerosa para quem está disposto a desvendar os inúmeros tesouros dos britânicos, que vão bem para além dos êxitos. Esses são vários, sempre desejados e com resultados previsíveis. É evidente que Coffee & TV, Beetlebum ou Song 2 provocaram algumas das reações mais acesas da noite. E se a paixão de Tender continua a fazer-se sentir em qualquer audiência, então revisitar a inevitável Girls and Boys – com o icónico tracksuit de Albarn e a bandeira trans às costas – permanece um sinónimo de efusão garantida. Convém, contudo, referir que, apesar de um público significativamente mais apático do que aquele com que se confrontaram mais a norte, a banda bem se esforçou para fazer vingar as suas composições mais recônditas, atacando Popscene ou Trimm Trabb num registo mais solto e desprendido – natural de quem já leva vários meses de estrada. Não atingindo os constantes picos da atuação do Porto, qualquer oportunidade para ver e ouvir os britânicos a enaltecer os seus próprios tesouros é mais do que bem-vinda.
A abrasividade dos shame no seu habitat natural
Nos cinco anos desde o lançamento de Songs for Praise, os britânicos shame têm evitado fugir à sua própria desconstrução. Para alguns, os heróis improváveis de uma nova vanguarda do post-punk britânico, para outros, uma banda refreada pela sua própria simplicidade, é impossível negar que cada novo ciclo do quinteto liderado pelo vocalista Charlie Steen vê o grupo a aceitar um reconhecido sentido de maturidade. Sente-se isso, melhor do que nunca, no recém-lançado Food for Worms, que tanto expande as suas ambições sónicas, abraçando por completo as subtilezas melancólicas do indie rock de vários dos seus contemporâneos, como os vê a evocar a crueza dos seus dois primeiros discos. Acima de tudo, é um terceiro álbum feito para ser experienciado num ambiente ao vivo e confiantemente gravado para soar como um. Em mais um antecipado regresso a solo nacional, viram-se obrigados, ainda que por breves instantes, a dividir atenções com outro grupo britânico bem mais afamado e com a música eletrónica dos franceses The Blaze. No que toca a concertos dos shame, contudo, não há obstáculo possível que abale a sua explosividade e perspicácia.
Fotografias da Autoria de Mariana Rocha @ DIREITOS RESERVADOS
Como frontman, Steen possui uma energia quase caótica. No calor do momento, tanto se desfaz em crowdsurfs e usa o microfone como barra de ginásio como tenta interagir em bom português com uma plateia reduzida, mas indiscutivelmente aguerrida, rendida à intensidade das novíssimas Six Pack e Alibis. Numa fase em que a emblemática sonoridade dos shame vai sofrendo as suas devidas mutações (melhor ilustrados na benevolência de Adderall ou Fingers of Steel), são expectavelmente os temas mais abrasivos dos britânicos a vingarem melhor por entre as massas. As já icónicas One Rizla, Snow Day e Gold Hole foram, aliás, o culminar ideal deste crescente estado de frenetismo que tão bem sabem incorporar em cada atuação. Não é por acaso que reconhecemos, neste formato, o grupo na sua força máxima, muitas vezes enfraquecida na transição para as gravações de estúdio. Com mais ou menos plateia, e independentemente da sua própria maturação, é nos palcos que os shame brilham de forma mais visível. Na segunda passagem por Lisboa em pouco menos de meio ano, voltaram a confirmá-lo.