Weyes Blood no Hard Club: As dádivas de Natalie Mering que devolvem a esperança à humanidade
Depois de ter sido recebida com casa cheia em Lisboa, Natalie Mering fez do seu aguardado regresso ao Porto uma celebração inexplicavelmente mágica e sentimental, revertendo o isolamento coletivo que deu origem ao seu último disco, And in the Darkness, Hearts Aglow, em propostas milagrosas para épocas adversas. A primeira parte do espetáculo ficou a cargo da artista catalã Núria Graham, que trouxe consigo os temas do seu mais recente longa-duração, Cyclamen, editado em janeiro passado.
Apocalipse. A palavra em si é quase tão antiga como a civilização humana, mas o peso imponente do seu significado continua intacto. Apresenta-se como uma catástrofe inescapável, algo que a nossa espécie simplesmente não consegue evitar ou sequer diminuir o impacto. Qualquer que seja a sua forma ou desfecho, atinge-nos a todos, sem exceção. Culpe-se uma certa costela autodestrutiva, capaz de hostilizar tudo o que orbita em seu redor, ou simplesmente o natural ciclo da vida, a pintura de um mundo às portas do colapso, num estado de catástrofe permanente, não é nova, mas vai-se tornando cada vez mais nítida com o avançar do tempo. Assistimos, por efeito da nossa própria impotência, a genocídios e guerras à distância de um clique. A iminência de catástrofes climáticas contrasta com os efeitos alarmantes do late stage capitalism. Tememos a repetição de crises passadas e caminhamos, de mãos dadas, em direção ao vácuo infinito da contemporaneidade. Como consegue alguém navegar, quanto mais sobreviver, numa realidade onde a luz ao fundo do túnel parece progressivamente ofuscada? Há cinco anos que Natalie Mering, a mente brilhante por detrás de Weyes Blood, tenta fazer sentido da ruína, individual e coletiva, numa procura incessante por respostas, perante a eventualidade deste “destino fatídico”. Titanic Rising – o primeiro capítulo de uma trilogia assumida de discos temáticos – perspetivou soluções universais para problemas modernos, transformando “peças grandiosas de proporções épicas, cheias de instrumentação etérea e deslumbrantes melodias vocais” em contemplações profundamente geracionais, com um subtil toque de nostalgia à mistura. A intemporalidade das mensagens nele contidas ganha uma dimensão quase profética, tendo em conta o desenrolar pandémico que acabou por inspirar o seu sucessor. “Alimentando-se do desespero e do isolamento” que continuam a pairar no quotidiano, sem esquecer a crescente e intimidatória relação de forças entre o homem e a máquina, And in the Darkness, Hearts Aglow simplesmente aceita a desgraça em que vivemos, nunca perdendo, contudo, a perseverança que tem vindo a dar às suas criações um alento irreplicável.
Fotografias da Autoria de Carolina Ribeiro @ DIREITOS RESERVADOS
Muito mudou na vida de Mering (e de todos nós) desde que se cruzou pela última vez com a cidade invicta, na longínqua edição de 2017 do Primavera Sound Porto. Considerando a atualidade trágica, é seguro afirmar que a música de Weyes Blood nunca se assumiu tão unificadora como agora. Naquele que é o segundo concerto da atual digressão europeia, a brutal empatia e honestidade da sua música vê-se aqui transfigurada num recinto completamente esgotado, assistindo-se, em direto, a uma contagiante sinergia na base da catarse comunitária. A partir do momento em que entra em cena, juntamente com a sua banda, sente-se de imediato que a “festa” reconfortante de Mering (brincou-se, inclusive, com o conceito de uma rave ou um mosh neste cenário apaziguador), tal como a dor do momento, é para ser partilhada em uníssono. Não fosse It’s Not Just Me, It’s Everybody o mote de entrada ideal para uma noite praticamente perfeita e este estado de comunhão seria igualmente notável. Para muitos dos presentes, a arte da norte-americana não é apenas fruto do seu tempo, mas igualmente criada a pensar no seu tempo. Assim nos revemos em Everyday (interpretada divertidamente com um serrote à cabeça) e nas suas inquietações do romantismo na era digital, nos apelos à ação de Children of the Empire ou então na urgência cabal de Andromeda e Do You Need My Love – um dos três temas fortes de Front Row Seat to Earth escolhidos para o alinhamento, e onde melhor se avistam as tendências mais psicadélicas da sua discografia.
Também ajuda, claro está, que a presença de Mering em palco atinja proporções religiosas. Enquanto dança o caos do dia-a-dia para longe com o seu vestido translúcido, vêmo-la iluminada por candelabros artificiais, um jogo de luzes vibrantes e, mais tarde, pelo seu próprio coração reluzente em Hearts Aglow. A atmosfera remete, inegavelmente, para o divino, mas Mering quebra-a elegantemente com o seu sentido de humor. Antes da ternura sintética de Twin Flame, por exemplo, inicia-se uma sondagem cómica sobre a veracidade da astrologia: uma crença para uns e uma farsa para tantos outros. E na ocorrência inesperada de uma corda partida, ainda nos primeiros minutos da atuação, a relação entre a norte-americana e o seu público parte para uma demonstração de afeto bem mais direta. Enquanto se avizinha uma solução para o imprevisto, dá-se azo à já habitual oferenda de DVD’s. Revelam-se, posteriormente, filmes de culto como But I’m a Cheerleader e Millennium Mambo, não esquecendo a ironia de uma cassete dupla de Titanic ou a incontornável série de David Lynch, Twin Peaks. A ficção, também ela, funciona como uma escapatória do mundo real. Mering sabe isso melhor do que ninguém, não fosse Movies uma ode ao caráter libertador da sétima arte, culminando num resolução fervilhante, enaltecida por uma projeção de múltiplas cenas icónicas e celebrada com rosas brancas a voarem por entre a plateia. God Turn Me Into a Flower, possivelmente a faixa mais transcendental deste seu último álbum (e uma espécie de sucessor espiritual de Movies), aposta novamente no poder da montagem cinematográfica. À medida que se contorce o mito de Narciso “num lamento em tempos incertos”, os sintetizadores hipnóticos e os ecos vocais da artista levam-nos para uma conclusão simplesmente arrepiante, com as colagens documentais do britânico Adam Curtis a servirem de pano de fundo, onde as “dissonâncias cognitivas” da experiência humana dão lugar a uma performance capaz de comover o mais comum dos mortais.
Fotografias da Autoria de Carolina Ribeiro @ DIREITOS RESERVADOS
Em jeito de despedida, Wild Time – entusiasticamente implorada por alguns fãs na plateia e autoproclamada como o “final boss” desta noite de domingo – brilha como um derradeiro pico de compaixão (em Lisboa, coube a Picture Me Better encerrar o encore), mas serve também como a tese de todo o simbolismo que carrega a música de Weyes Blood. Nas suas palavras, surge um convite a encontrar razões suficientes para existir no presente, apesar da distopia que nos rodeia e do provável apocalipse do futuro. Talvez o ser humano e a terra inóspita que habitamos sejam capazes de salvação, ou talvez não. Ao comando de Mering, porventura, aceitamos o nosso próprio existencialismo, com as emoções sempre à flor da pele. A beleza da vida, afinal, é algo que não se explica, sente-se. Leva-nos a sucumbir à intensidade do amor, faz-nos admirar a simplicidade da natureza e desvendar um turbilhão de sensações num filme, num mito, num concerto – fenómenos que a tecnologia nunca conseguirá codificar na sua plenitude. Mais do que altamente gratificante, a oportunidade de ver Weyes Blood em palco traz consigo instantes de pura magia e são precisamente momentos como este que invocam o que, por vezes, parece impossível: devolver o encanto e, acima de tudo, a esperança a uma humanidade que ainda vai a tempo de se redimir.