Vodafone Paredes de Coura 2023 (4º Dia): Um final de festa com chave de ouro
Depois do dilúvio que marcou o terceiro dia de programação, o encerramento da 30ª edição do festival trouxe de volta uma meteorologia favorável e contou com casa cheia para receber a neozelandesa Lorde pela terceira vez em Portugal, numa quarta e derradeira noite de música que também celebrou o esplendor dos veteranos Wilco, o post-rock imponente dos Explosions in the Sky e o post-punk abrasivo dos Sleaford Mods.
O regresso confrontacional e dececionante dos Sleaford Mods
No meio das crescentes fraturas mundiais, os britânicos Jason Williamson e Andrew Fearn são, mais do que nunca, a voz do povo. Vêm, assim o defendem, de um país “de inúteis”, repleto de lixo e demasiados problemas estruturais. Não é preciso ser um cínico para se concordar com este sentimento-base, mas, num Reino Unido cada vez mais dividido, os Sleaford Mods vão fazendo desta fúria um combustível e da estética que os impulsionou há cerca de dez anos com Austerity Dogs um bom porto. Não retirando o devido mérito, no entanto, o que inicialmente os colocou no mapa parece ter perdido o brilho inicial, a avaliar pelos seus dois últimos discos, Spare Ribs e UK GRIM (editado este ano). Não há como negar a relevância sócio-política das mensagens de Williamson (e muito menos a sua autenticidade), mas a excessiva simplicidade e o cariz minimalista da música dos Sleaford Mods é também o que acaba por os encurralar criativamente.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
De regresso a Coura ao fim de sete anos (e longe da chuva que amaldiçoou a noite anterior), esta prisão sónica em que os britânicos se encontram vê-se agora replicada ao vivo. Com Fearn a assumir um papel híbrido entre um dançarino efusivo e um hypeman, fica Williamson com a tarefa de expelir todos os seus recados com a voz rouca e a assertividade a que sempre nos acostumou. Fá-lo em Pit 2 Pit ou Force 10 From Navarone, tema que conta com a colaboração de Florence Shaw dos Dry Cleaning, que por aqui atuaram três dias antes. Mas, à medida que o sol começa a surgir por entre as nuvens, os feitiços da dupla vão-se enfraquecendo. O tom provocatório com que Williamson inicialmente despertou os olhares da plateia torna-se cada vez mais previsível e o mesmo se pode aplicar à produção de Fearn. Num concerto que refletiu, para o melhor e para o pior, este ciclo artístico vicioso dos Sleaford Mods, fica para relembrar, ainda assim, o carisma inegável da dupla, a consensualidade dos seus mantras e a esperança de uma reviravolta artística que tanto necessitam.
A serenidade magistral dos Explosions in the Sky
Pode não parecer, mas já lá vão 20 anos desde que os primorosos texanos Explosions in the Sky editaram aquele que talvez seja o seu maior feito, The Earth Is Not a Cold Dead Place. Nele, abraçamos uma tempestade de emoções e encontramos no seu mundo sombrio rasgos de esperança e a beleza pura da experiência humana. Ver um concerto dos Explosions in the Sky em 2023, ouvindo neste anfiteatro natural as suas cinco composições na totalidade (somando-se a estes mais dois temas), vem captar este exato espírito em toda a sua plenitude, já bem conhecido do público português e agora replicado nesta estreia tão aguardada em Coura.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Foi nesta pintura de guitarras oscilantes e explorações imersivas que o quarteto deu início a um estado hipnótico que se tornou difícil de escapar, ao longo de toda a sua permanência em palco. Ao som de First Breath After Coma, The Only Moment We Were Alone ou Your Hand In Mine, levaram-nos da serenidade às explosões catárticas com a mestria de quem já domina a arte das progressões há mais de duas décadas. Nesse campo e em tantos outros, este foi um momento único nos quatro dias do evento. Não é o tipo de concerto que agrada aos mais impacientes, claro está, nem possui o caráter imediato de tantos outros pontos altos que por aqui passaram. A recompensa de quem escolhe entrar neste universo revigorante da banda, contudo, assume-se como triunfante. É música para viver e deixar viver, surpreendentemente adequada ao recinto que agora a recebe de braços abertos: um refúgio das mágoas da realidade em seu redor e uma celebração cintilante e atmosférica ao som de uma das peças centrais por detrás da popularização do post-rock.
O merecido triunfo dos experientes Wilco
Foi preciso esperar quase uma década para voltar a ver os Wilco em território nacional, dada a surpreendente raridade com que se cruzam com Portugal. Sendo apenas o quarto concerto dos veteranos no país (e o primeiro em Coura), as introduções são, todavia, praticamente dispensadas, não fosse a banda de Jeff Tweedy e companhia um marco histórico do panorama rock norte-americano dos últimos trinta anos. Somam-se os clássicos, de Yankee Hotel Foxtrot a Summerteeth, mas os veteranos, que pouco precisam de novas consagrações, também não se querem deixar conhecer apenas pelos feitos do passado. Vire-se o foco, por exemplo, para Cruel Country, um 12º disco que os vê a abraçarem por completo a palete sónica do country, claro está, há muito perdida por entre as restantes raízes musicais que os definem, e tudo isto com o habitual toque de melancolia e cinismo que corre em cada recanto das várias obras consagradas do seu catálogo.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Mesmo sem um olhar para o futuro próximo da banda, que se inicia já no próximo mês de setembro, com o lançamento de Cousin, o passado e o presente dos norte-americanos têm demasiadas pérolas para não nos perdermos nelas. Foi com uma classe inconfundível que Tweedy nos brindou com as poderosíssimas I Am Trying to Break Your Heart, Jesus, Etc. ou Impossible Germany, sem esquecer os vários temas fortes de A Ghost Is Born (de Hummingbird a Handshake Drugs). Até temas mais recentes como Random Name Generator ou I Am My Mother convenceram os que permaneciam nas filas da frente por motivos igualmente válidos, envolvidos em abraços e, mais tarde, retribuindo todo o carinho a Tweedy, sempre solto, modesto e animado por dar ao público uma brilhante amostra da sua mestria. A familiaridade da música dos Wilco e a sua capacidade de unir multidões com recurso ao sentimentalismo estiveram, aliás, de braço dado ao longo dos quase 80 minutos de alinhamento. Neste momento da noite, quando já muitos aguardavam que a principal estrela do cartaz tomasse conta do Palco Vodafone, os Wilco colocaram um anfiteatro inteiro aos seus pés e deram finalmente uma oportunidade a Coura de celebrar a imensidão do seu legado.
A magia eterna (e renovada) de Lorde
Neste quarto e último dia de festival, a razão de ali estar é praticamente unânime – todos o sabem, todos o anseiam e, contudo, ninguém está realmente preparado para uma despedida feita em tons de glória. Lorde não é uma figura qualquer, tal como Paredes de Coura (confundido novamente com o Porto, mas perdoemos mais um lapso geográfico) não é um local qualquer. Para a impressionante maré de fãs que decidiu arredar pé bem para além da meia-noite (hábito cultural que causou algum espanto a quem vinha do hemisfério oposto), a neozelandesa carrega consigo o peso da glória dos seus dois primeiros discos. Nem um Solar Power que, diga-se, ficou muito aquém do esperado, denegriu o que muitos consideram ser uma espécie de profeta infalível, que nos faz sentir vistos, que nos oferece as perguntas e as respostas para preenchermos cada pedaço da nossa vida. Como pode a autora de Melodrama, afinal, não ser elevada a esse patamar?
Descreva-se então o cenário. Com o sol já posto, uma réplica do mesmo já montada em palco e Ella ainda por detrás da cortina, Royals dá início a esta “visão noturna” e confessadamente arriscada da sua última digressão, feita de transições ininterruptas, sentimentos ao alto e danças sem parar. Temas como Mood Ring ou The Path vêem-se retrabalhados para caber no universo das suas grandes obras, que foram justamente as mais ouvidas ao longo de praticamente hora e meia de pura festa. Sentimos na pele cada letra de The Louvre ou Hard Feelings e gritam-se os refrões de Perfect Places, Ribs ou Buzzcut Season em uníssono, como se não houvesse amanhã. Mas, na verdade, não era suposto Lorde estar aqui, a eternizar o nosso verão como só ela o sabe fazer. Não tinha também previsto um último ano pintado por choros e aprendizagens, agora parte do passado, mas ainda bem presentes neste novo início de ciclo em que diz precisar de toda a força que conseguir recolher. Assim o confirma no tocante discurso que precede a incontornável Liability, levando qualquer um ao pico da comoção, e assim o antecipa nos dois inéditos que fez questão de desvendar. E não se adivinhava, há praticamente uma década, que a artista de 16 anos que inundava o Rock In Rio Lisboa com a rebelião de Pure Heroine se viesse mesmo a tornar na heroína improvável de uma geração inteira, que agora vive, através da sua música, as suas próprias histórias. Histórias de amor e de agonia, de corações partidos e perdidos, de libertação e solidão, mas sempre conduzidas pelo que nos torna a todos humanos.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
No fim de uma noite absolutamente inesquecível (encerrada com a extasiante Green Light), Lorde sai de cena a sentir-se compreendida. Talvez o anfiteatro que se entregou, sem hesitação, a este seu turbilhão de emoções tenha só tentado, com enorme sucesso, retribuir o amor. Talvez tudo isto não passe de uma tentativa falhada de verbalizar aquilo que o coração sente mas não diz, quando a vemos e ouvimos a fazer a sua magia novamente ao mais alto nível, até mesmo neste processo transitório em que atualmente se encontra – chega até a rivalizar a sua atuação no Primavera Sound Porto, há cinco anos atrás. Nesta celebração de improbabilidades, talvez o mais provável seja mesmo confirmar que noites como esta, para além de escassas, são especiais.