Vodafone Paredes de Coura 2023 (3º Dia): A música que fez esquecer um verdadeiro dilúvio
O terceiro dia da 30ª edição do festival ficou marcado pela chuva forte e persistente, que em nada afetou o ambiente inconfundível do Taboão (e muito menos o impacto dos seus grandes concertos). Entre o hip-hop glorioso de Little Simz, a tempestade impetuosa dos black midi e o jazz colorido de DOMi & JD BECK, também se destacaram as estreias de Yung Lean e Kenny Beats em Portugal.
A descontração e o virtuosismo de DOMi & JD BECK
De desconhecidos a companheiros inseparáveis, e de sensações digitais a talentos máximos do jazz contemporâneo, a teclista francesa Domi Louna e o baterista norte-americano JD Beck assumem-se como os prodígios improváveis com as cartas certas. Colaborações com artistas idolatrados (Anderson .Paak, Thundercat e Mac DeMarco somam-se aos demais) e a chancela da lendária Blue Note fazem de NOT TiGHT muito mais do que um simples primeiro disco. Não fosse a invejável leveza com que a dupla lida com a sua crescente mediatização e poderíamos estar perante um par de sensações geracionais que sucumbem à pressão. O que poderia, contudo, ser uma estreia intimidante de DOMi & JD BECK em Portugal – ocupar o anfiteatro natural de Coura como novatos assumidos não é propriamente uma tarefa fácil – converte-se numa oportunidade justíssima para fazerem do seu jazz radiante um estupendo pontapé de saída desta terceira noite.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Em temas como SMiLE, U DON’T HAVE TO ROB ME ou SNiFF, a destreza da dupla impressiona qualquer um. DOMi divide braços e pernas pelos dois teclados e pedais (isto quando não contribui simultaneamente com as suas próprias passagens vocais ou tenta não “arruinar a setlist”), ao passo que JD Beck ataca a sua bateria com a precisão de um soldado, tal como no primoroso medley de Madvillainy, carregando consigo o espírito eternizado de MF DOOM e Madlib, ou nos covers de Jaco Pastorius ou Aphex Twin (o momento que seria, de acordo com JD Beck, o momento que íamos “adorar ou então querer sair” do concerto). Num duelo amigável para ver quem impressiona mais com o seu perfecionismo, desvenda-se um sentido cómico contagiante e inócuo. O breve ecoar (quase) satírico de Van Halen ou Led Zeppelin nos teclados de DOMi, a sanita que usou como assento, as piadas auto-depreciativas de JD Beck que aliviavam as inseguranças antes de cada canção. Tudo tão espontâneo e próprio da juventude da dupla, mas capaz de cair nas boas graças de qualquer um dos presentes. Com a chuva em permanente ameaça, absorvem com alguma surpresa a receção fervorosa do público. Uma divina história, ainda no seu prólogo, vai sendo escrita por estes dois músicos magníficos, a ultrapassarem cada desafio com a maior das naturalidades.
A celebração surpreendente (e fragmentada) de Yung Lean
Parece bizarro, mas foi há pouco mais de uma década que o sueco Yung Lean subiu ao estrelato com a música que mudou a sua vida. As afamadas escadas de Ginseng Strip 2002 já não vivem para contar a história (a viralidade do tema, por outro lado, não se alterou), o seu império é palpável, a estética inconfundível e alguma reticência inicial dentro e fora do panorama do hip-hop cada vez menos determinante. Para os milhares de “sad boys” que vão retribuindo as letras de Kyoto ou Red Bottom Sky, a plenos pulmões, nesta tão aguardada estreia em Portugal, o sueco é nada menos do que um herói. Revêem-se na atmosfera nebulosa que envolve muitos dos seus êxitos, na melancolia das suas suas letras, sentidas por toda uma geração que vê nele uma representação das suas próprias agonias. Ao seu lado, também instalam honradamente o caos, manifestado em mosh pits e efusões coletivas, ao som da disrupção de Yoshi City ou Pikachu, pintada por 808s e auto-tune.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Esta foi, aliás, a oportunidade perfeita para prestar as devidas homenagens ao dono do seu próprio trono, ecoando os melhores momentos do já vasto catálogo de Yung Lean, alto e bom som. Não se pode concluir, contudo, que a sua primeira atuação em solo nacional tenha sido inteiramente consensual e muito menos isenta de contratempos (sofreu um acidente de carro à saída do aeroporto). Lean ganha confortavelmente o prémio de pior geógrafo desta edição do festival – se alguém bebesse um shot a cada vez que o rapper afirmou estar no Porto, estaria, a esta hora, em mau estado. Notava-se, por igual, que a comunhão entre o sueco e os seus fãs mais ávidos não se refletia em todo o anfiteatro, ainda que o ambiente nas filas da frente fosse tremendo. Mas no país que já escolheu como destino para afogar mágoas amorosas, estes são detalhes desculpáveis num alinhamento surpreendentemente imersivo. Se o cloud rap é hoje reconhecido como mais do que uma artimanha ou anomalia, é porque bem lutou por esse desfecho. Se os admiradores superam em larga escala os mais céticos, é porque a erosão inicial da sua música se vai dissipando. E se Lean sai de cena satisfeito com as reações que conseguiu provocar, é porque a caminhada para aqui chegar valeu inteiramente a pena.
O inferno inescapável dos black midi
Para quem acredita que as trevas têm um lugar na Terra, os black midi passaram o último ano a fazerem-se dos seus orgulhosos anfitriões. Na passada edição do Primavera Sound Porto, poucas semanas antes de divulgarem o fulminante Hellfire, “uma verdadeira viagem pelo abismo ao som do prog rock mais vanguardista desta geração”, abriram precisamente um portal para esse mundo, à data, por desvendar – foi tão memorável que até motivou o seu lançamento em formato físico. Tentar racionalizar esta espiral de insanidade dos britânicos para quem nunca se viu sugado por ela prova-se, aliás, uma incumbência arriscada, dada a imprevisibilidade da sua música e, por extensão, dos seus concertos. Sim, um concerto dos black midi é suposto ser errático e tresloucado, cómico até, mas cada oportunidade de os ver ao vivo relembra-nos de que, neste ringue de boxe da “banda mais trabalhadora do show business”, os lutadores somos todos nós.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Neste segundo combate em Coura, o dilúvio não fez frente ao seu virtuosismo e a anarquia foi imperativa, tanto no palco como no aceso coletivo de fãs que não parou de se render a este seu caos controlado. Na bateria explosiva de Morgan Simpson, nas vozes e guitarras rompantes de Geordie Greep e Cameron Picton ou no baixo de Seth Evans, denota-se uma agilidade inigualável, à boleia do frenetismo de Sugar/Tzu, Slow ou Near DT, MI. Tudo tão incrivelmente calculado, mas sempre impetuoso e angular, enquanto a plateia se envolve, à sua frente, num escalar de descargas de energia verdadeiramente sensacionais. Ecoavam as melodias de 953 e Welcome to Hell nas filas da frente, abriam-se os expectáveis mosh pits e, pouco a pouco, não havia como escapar à erupção volátil dos black midi em horário nobre. Não admira que Greep tenha ficado visivelmente rendido no final da atuação: “Aqui, tocamos perante deuses gregos”. No olimpo de Coura, o inferno vingou e o combate foi ganho. A música experimental do grupo rapidamente se tornou universal, num concerto já selado nos livros de história do festival.
A glória de Little Simz, replicada em Coura
Nas terras de sua majestade, habita uma rainha que não vive em palácios, introvertida e orgulhosa de si mesma, dona da verdade, do talento e de tudo o que escolhe alcançar. O seu nome é Little Simz e o seu império está à vista de todos. Três estonteantes álbuns em pouco menos de meia década, um deles – Sometimes I Might Be Introvert – vencedor do Mercury Prize, e uma recente estreia em Portugal no Primavera Sound Porto que a coroou logo à primeira vista. Na sua primeira visita a Coura, o domínio estava já traçado e nem a chuva, que parecia não dar tréguas a um anfiteatro praticamente lotado, impediu o seu desfecho vitorioso.
Fotografias da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Ao som da minuciosa Silhouette, Simz entrou em cena com o comando do mundo nas suas mãos. Assim permaneceu, sozinha em palco, durante a grande maioria do concerto (complementada por mais dois músicos na reta final), bem diferente do registo maximalista adotado há pouco mais de um ano – um reflexo do recentíssimo NO THANK YOU, onde a “orquestração triunfante” de outrora se vê atenuada. Em nada retira, contudo, o ímpeto da sua presença em palco e muito menos das suas letras sentidas, apoiadas, como já é habitual, pela elegante produção de Inflo. Os destaques foram, aliás, repartidos entre a sua obra-prima homérica e o seu sucessor. Na assertividade de No Merci e Heart on Fire, tal como nas grandiosas Introvert e I Love You, I Hate You, cada palavra, cada rima carrega consigo uma história e o peso do seu próprio testemunho. Para não falar, claro está, de outros tantos temas incontornáveis, como 101 FM, Gorilla ou Woman, que encerrou a atuação com chave de ouro, num coro de vozes afinadas, dando lugar a merecidíssima onda de aplausos fervorosos. Não há como não recebê-la de braços abertos, tamanha a dedicação, a entrega e, acima de tudo, a humanidade desta figura que, durante uma hora, pareceu não ter defeitos. “Quero que saibam que estão a testemunhar grandeza, e digo-o não com arrogância, mas com confiança”, confessa a própria durante o espetáculo. Depois de mais uma demonstração de peso praticamente perfeita em solo nacional, torna-se impossível negar uma afirmação destas.
A receita eficaz de Kenny Beats ao cair da noite (e da chuva)
Foi já com uma porção considerável dos festivaleiros a escaparem à precipitação impiedosa que o norte-americano Kenny Beats conseguiu o impensável: colocar uma verdadeira multidão ao seu dispor às altas horas da madrugada. Não que o feito surpreenda quem tem acompanhado o seu trabalho nos últimos anos. Qualquer discussão acerca de produtores de hip-hop contemporâneo em 2023 implica falar do seu percurso ideal, desde uma diversa lista de colaborações (de IDLES a Denzel Curry ou Vince Staples) até ao recentíssimo Louie, um disco de estreia que tanto serve como um reflexo do seu império e uma tocante homenagem ao seu pai. Na sua estreia em solo nacional, porém, o registo é diferente. À semelhança das suas recentes passagens por festivais internacionais, Kenny Beats surge em Coura como o seu próprio mestre de cerimónias, conduzindo um DJ set que, ao se focar no essencial, emerge como extraordinariamente eficaz.
Fotografia da Autoria de Mariana Silva @ DIREITOS RESERVADOS
Em vez de reforçar a aposta em efeitos ou transições meticulosas, faz questão de dar ao público os êxitos que tanto deseja, sem grandes desvios ou interrupções, num excelente exercício de leitura da sala (ou, melhor dizendo, do recinto) que soube misturar estilos musicais tão dispersos. Aquilo que será, para alguns, uma atuação de serviços mínimos torna-se numa festa acessível e repleta de momentos altos para a grande generalidade dos festivaleiros – não fizesse o próprio da descomplicação o seu modus operandi (“Don’t Over Think Shit!”). Num alinhamento maioritariamente dominado pelo hip-hop de Chief Keef, Lil Uzi Vert ou Playboi Carti, também não faltaram os clássicos incontornáveis de Britney Spears ou Kelis, a música house de Fred again.. ou Daft Punk e as breves passagens pelo funk brasileiro ou o rock dos Nirvana. O carisma magnetizante de Kenny Beats, diga-se, em muito reforça esta estratégia incrivelmente segura e, até certo ponto, previsível e dececionante. À medida que vai observando as reações calorosas do público, também ele vai dando alento ao entusiasmo que vai carregando a noite cerrada. Na sua primeira visita por Portugal, e apesar de uma presença lamentavelmente fugaz que só durou uma hora, Kenny Beats consegue, ainda assim, ser a prova viva de que a receita mais afortunada nem sempre é a mais elaborada.