Primavera Sound Porto 2025 (3º Dia): O hardcore glorioso de Turnstile que conquistou o Parque da Cidade

As cicatrizes consagradas da victory lap de Maria Reis

Mesmo quando Maria Reis já se assumia como um dos rostos principais do rock DIY português ao lado da irmã Júlia em Pega Monstro, poucos poderiam prever a dimensão do sucesso que alcançaria daí em diante na sua carreira a solo. Depois de uma trilogia ambiciosa de EPs que a viu ir para além das fundações de guitarra eu tão bem conduzem o seu léxico, as tendências brilhantes do seu disco de estreia (Suspiro) para apostar em arranjos distorcidos e numa reinvenção constante acabaram por pontuar como nunca a genialidade da forma como escreve canções, feitas em jeito de fluxos de consciência, algures entre a angústia e a euforia que é conviver com os outros e connosco mesmos. Torna-se, aliás, particularmente simbólico que o seu trabalho mais maduro até hoje tenha coincidido com o papel de destaque que recentemente assumiu no mais recente álbum de Noah Lennox enquanto Panda Bear, o brilhante Sinister Grift editado no passado mês de fevereiro.

Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

Recém-chegada de várias datas norte-americanas e britânicas que tem partilhado com uma das figuras maiores dos Animal Collective, a paragem de Maria Reis no Primavera Sound Porto foi uma celebração recompensadora à imagem de uma das vozes mais marcantes da música nacional contemporânea, numa altura em que a sua projeção internacional tem (merecidamente) crescido a olhos vistos. Acompanhada no Palco Super Bock por Tomé Silva na bateria e Francisco Couto no baixo, a força lírica das suas canções impôs-se por absoluto ao longo de quase uma hora de concerto, mesmo quando a timidez atrás da guitarra revelava um nervosismo natural. A crueza de Obsessão, por exemplo, conviveu bem quando colocada lado a lado com a ousadia e frontalidade de alguns dos seus temas mais antigos, enquanto que Metadata arrebatou por completo a multidão que tinha ao seu dispor, trocando a existência de um refrão tradicional por uma exposição interminável e quase que expressionista da fragilidade humana. Quando a voz rouca de Reis se impõe e ganha corpo para selar o alinhamento Coisas do Passado, a fragilidade de outrora transforma-se em empoderamento, deixando tanto a artista como quem a assistia num estado de euforia perpétua até que o mantra central soasse a vitória, para que Reis possa sair de cena (com a bandeira palestiniana atrás das costas) com o sentimento de missão cumprida.

A estreia tímida de Horsegirl e o peso da promessa nos grandes palcos

Em apenas três anos, Penelope Lowenstein, Nora Cheng e Gigi Reece passaram do ensino secundário para a universidade, de Chicago para Nova Iorque, e da cena local para os palcos internacionais. Não há como negar a trajetória repentina de Horsegirl, em muito impulsionada pela energia juvenil e cool que tem acompanhado o clarividente potencial musical. Depois de um álbum de estreia (Versions of Modern Performance) fortemente marcado por influências do noise rock e post-punk, o segundo lançamento do trio — Phonetics On and On, editado em fevereiro passado — opta por uma mudança estilística no sentido oposto, apostando nas raízes do twee pop para formar um conjunto cativamente e instantâneo de novos temas onde a leveza e a melodia são exploradas com serenidade e uma dose saudável de irreverência.

Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

A chegada ao Palco Super Bock fez-se com a química inegável que tanto tem guiado as criações das três, tão encantadora de assistir em tempo real como de ouvir florescer nas versões originais. 2468, com um ritmo alegremente básico e quase que infantil, conquistou de imediato o público pela progressão constante e dançável que conseguem desencadear, enquanto Switch Over colocou parte do público a cantar timidamente o refrão repetitivo e contagiante. Onde o concerto dos Horsegirl em Portugal vacilou, porventura, foi precisamente na transposição do encanto melódico e carisma da banda para este registo, como se a confiança sinérgica que possuem em estúdio tivesse sido ofuscada pelo nervosismo de tocar perante uma audiência mais numerosa. Julie ou Well I Know You’re Shy, por exemplo, ficaram aquém da sua carga emocional, assemelhando-se mais a um ensaio hesitante do que a uma atuação digna de um concerto massificador. Lowenstein e Cheng bem se esforçaram nas poucas interações algo desajeitadas que tiveram com o público, tentando arrancar o entusiasmo suficiente para aumentar o fôlego da atuação. E apesar dos fãs nas primeiras filas se terem mostrado relativamente cativados, a promessa evidente que as Horsegirl tão bem souberam provar nos seus dois discos ficou por vingar na sua estreia nacional.

O magnetismo eterno de Destroyer

Ir a um concerto de Destroyer é como reencontrar um velho amigo. É certo que Dan Bejar tem vindo a fazer, desde o magnífico Kaputt em 2011, das influências sophisti-pop um fio condutor persistente, mas ao longo dos quase trinta anos de existência do projeto que chefia, cada novo disco tem surgido como uma oportunidade para o canadiano refinar a forma como compõe e estrutura as suas criações, apurando continuamente os seus talentos sem nunca comprometer a qualidade daquilo que entrega. O recém-editado Dan’s Boogie segue esse mesmo princípio, mas aposta com mais afinco na improvisação e na fluidez amorfa, oferecendo tantos hinos marcantes como qualquer outro trabalho da sua autoria.

Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

Num regresso ao festival nove anos depois da primeira passagem pelo Primavera Sound Porto, as suas meditações cínicas – tanto antigas como novas – sobre o envelhecimento, a memória e a absurdidade da vida moderna soam tão soltas e divinas como sempre nos acostumou. Clássicos intemporais como European Oils, Tinseltown Swimming in Blood ou Chinatown ficam em pé de igualdade com as recentíssimas The Same Thing as Nothing at All e Bologna, declamadas por Bejar com um tom monocórdico enquanto vagueia pelo Palco Super Bock, ora a tocar uma pandeireta com uma postura curvada ora a beber de um copo de álcool meio cheio ao mesmo tempo que folheia as suas cábulas. Cue Synthesizer, numa ótica oposta, vê-se reinventada num punk desgovernado, permitindo à banda de apoio fomentar o colapso progressivamente caótico a que Bejar se vai sucumbindo. Mesmo nestes momentos mais imprevisíveis, é precisamente a sua estranheza performativa que o torna fascinante de observar. Poucos artistas conseguiriam prender a atenção do público com tão pouco fascínio aparente como nos minutos iniciais de Suicide Demo for Kara Walker, em que Bejar se limita a agachar-se no chão, a olhar para o horizonte como uma forma de passar o tempo. Mas quando o retorno emocional das canções consegue ser tão forte e invariável, o desmazelo magnético e quase inebriado de Bejar transforma-se num espetáculo à parte, tão cativante quanto a música que o acompanha.

O regresso desinspirado das HAIM que foi da euforia à desistência

Onze anos depois de terem pisado o mesmo anfiteatro verde do Palco Vodafone, as HAIM parecem estar prontas para desistir de tudo. Pelo menos é isso que sugere o texto minimalista projetado como pano de fundo. Acabou-se o isolamento, a vida amorosa, os empregos e até mesmo as desistências. É uma declaração tão definitiva quanto possível, não fosse as irmãs, na verdade, tão indecisas e humanas como qualquer um. Porém, enquanto o espetáculo decorre e estão no centro das atenções, o trio precisa de manter viva a narrativa e, acima de tudo, torná-la convincente.

Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

Esse tão necessário imersão no novo mundo de I Quit, no entanto, desmoronou-se rapidamente. Um atraso inesperado de 10 minutos foi o primeiro de vários presságios de que a noite não iria correr de feição para os fãs da banda, mas uma abertura em pico de energia ao som da intemporal The Wire — rapidamente seguida por Now I’m In It e Don’t Wanna (ambas do último e talvez mais sólido conjunto de canções que têm no seu repertório, Women in Music Pt. III) — foram a prova máxima de como os seus êxitos conseguem soar gloriosos e magnéticos em qualquer local. Até uma faixa como Relationships, o tema de apresentação do novo álbum das HAIM (editado apenas uma semana após este concerto), teria feito o seu impacto sem recorrer às histórias de traições que iam sendo projetadas nos ecrãs. Bastariam, aliás, os riffs contagiantes, os refrões prazerosos e as rimas sincopadas para garantir o apoio do público. Mas assim que o trio começou a esbater a linha entre um concerto e um número de stand-up comedy (como a mais irmã mais nova assim o apelidou), a pouca autenticidade que se pode apontam ao carisma das três perdeu-se por completo. Entre Alana a elogiar o público portuense como “a melhor e mais longa relação que já tiveram”, Este a chorar em êxtase e Danielle a apresentar exageradamente o “saxofone muito sexy” de Summer Girl, os demasiados momentos de humor e conversa paralela foram, para além de forçados, pouco inspirados e com falta de piada. Foi o suficiente para quebrar o ímpeto criado pela própria música, e quando a recente (e francamente desinspirada, como a maioria dos novos singles) Down To Be Wrong serviu de despedida ao fim de apenas uma hora de alinhamento em vez dos 90 minutos previstos, uma fatia significativa do público já tinha seguido à risca o lema que tanto se esforçaram para impingir. Um regresso desapontante a Portugal, com poucos momentos altos e demasiadas falhas para os justificar.

A revolução triunfante de Turnstile em trazer o hardcore para as massas

A ascensão dos Turnstile ao estrelato nos últimos quatro anos não tem precedentes. O nível de visibilidade que a banda de Baltimore alcançou desde o lançamento de GLOW ON em 2021 – “um dos discos de hardcore mais vanguardistas dos últimos anos” – ultrapassou largamente os limiares do próprio estilo musical de onde emergiram. Ao fazerem aquilo que mais nenhuma banda de hardcore ousou fazer, abrindo a bolha ao grande público e quebrando convenções há muito associadas a um certo conservadorismo, também deixaram os mais puristas a questionar se ainda fazem efetivamente parte do hardcore como um todo. Os aspetos que fazem os Turnstile parecer desalinhados com este ethos tradicional para um certo tipo de público são exatamente o que os torna especiais para tantos outros – sempre prontos para a produção eclética, os refrões intoxicantes, as guitarras sonantes e repletas de reverb, até mesmo para colaborações inesperadas com nomes como Shabaka Hutchings, Hayley Williams ou Dev Hynes. E apesar de toda esta divisão, a fórmula que os trouxe até aqui é tão instantânea e satisfatória que, nas suas repetições, o sucessor de GLOW ON continua a acertar em cheio, e quando se afasta dessa base, fá-lo com ousadia suficiente para merecer o título de um dos discos de rock mais arrojados deste ano.

Fotografias da Autoria de Bruno Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

O regresso do quinteto a Portugal – três anos depois de um concerto praticamente perfeito em Paredes de Coura e com a recente adição da guitarrista Meg Mills ao elenco – trouxe consigo o selo de uma celebração coletiva, com o lançamento de NEVER ENOUGH na semana anterior já a ressoar por entre a verdadeira enchente que encheu o Palco Vodafone com a vontade de fechar a presente edição do Primavera Sound Porto com chave de ouro. Bastaram os primeiros segundos da faixa-título e já se faziam ouvir os mantras cantados a plenos pulmões em cada recanto do anfiteatro, antes de se abrir um moshpit colossal junto às grades. O frontman Brendan Yates, a coordenar as operações com um entusiamo equiparável, rodopiava e saltava sem limites antes de descarregar toda a energia ao seu dispor no microfone ao som de T.L.C. (TURNSTILE LOVE CONNECTION) ou DON’T PLAY. A sinergia demolidora criada entre a bateria errática de Daniel Fang, os riffs contundentes de Mills e Pat McRory, os incitamentos estimulantes do baixista Franz Lyons (sempre entusiasmado em ver a anarquia tomar conta da plateia) e, claro está, os gritos melódicos e penetrantes de Yates revela-se inalcançável por qualquer outra banda que tenha passado pelos palcos principais durante os três dias de programação. Não é preciso ir mais longe do que a fresquíssima LOOK OUT FOR ME para encontrar provas do seu ímpeto, com cada refrão a ser anunciado como um voto catártico, permitindo ao breakdown em tons de ambient e aos breakbeats subsequentes na segunda metade construírem uma acalmia momentânea entre as sucessivas explosões de emoção. É o tipo de adrenalina arrebatadora que só se sente verdadeiramente quando se está presente, conquistada segundo a segundo por todas as partes, à medida que se vai selando mais um espetáculo inesquecível. Tal como já tinha acontecido da última vez que cruzaram caminhos com o público nacional, quem assiste a um concerto dos Turnstile sai convencido e a jurar a todos sobre o quão essencial é vê-los neste registo. Não só a afirmação está totalmente correta, como é o tipo de reputação com que tantas bandas sonham ao testar construir o seu legado. Já há muito que conquistaram esse direito de contribuir para o testamento da música rock contemporânea como os principais impulsionadores por levar o hardcore às massas, restando agora à lenda fazer jus aos seus grandiosos méritos.

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