Os Destaques de Abril 2024
Os novos lançamentos de Vampire Weekend, Fabiana Palladino, Shabaka e St. Vincent são os lançamentos em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.
Vampire Weekend – Only God Was Above Us
Género: Indie Rock
Data de Lançamento: 05/04/2024
Editora: Columbia
Quando os Vampire Weekend entraram em cena há mais de 15 anos, nada mais se assemelhava ao grupo liderado por Ezra Koenig. O nicho que, desde então, conseguiram formar – transformando a estética já longínqua da blog era e do mumblecore do final dos anos 2000 numa sonoridade multicultural, incessantemente cativante e orgulhosamente audaciosa – é ainda hoje indissociável do ethos da banda. Têm, mais do que várias das promessas musicais surgidas nesta época, uma identidade claramente polarizadora, incompreendida por alguns e amada por muitos – a comparação com a filmografia de Whit Stillman assenta-lhes na perfeição. Modern Vampires of the City, sobretudo, serve quase como uma extensão indie rock dos yuppies da Urban Haute Bourgeoisie que o cineasta tão bem soube captar em Metropolitan ou The Last Days of Disco, afastando-se discretamente do espírito jovial dos dois primeiros discos para se deixarem assombrar pelo declínio do tempo, da cultura que os criou e, como sabemos agora, das raízes primordiais do próprio grupo. Father of the Bride, lançado após uma longa paragem de seis anos e a saída do cofundador Rostam Batmanglij, sofreu consequentemente de uma crise de identidade demasiado clarividente para ser ignorada por entre as suas 18 malhas descontraídas. Com o lançamento do seu sucessor, Only God Was Above Us, os Vampire Weekend voltam a abraçar um novo começo, reintegrando o núcleo sónico da banda com a ideia de um envelhecimento saudável e não menos dignificante.
Encontram-se, dito isto, inúmeras relíquias do passado dos novaiorquinos ao longo das suas 10 faixas. Os habituais pianos em arpeggio ocupam um lugar de destaque em Connect, ao passo que a explosiva Gen-X Cops, analisando o legado da velha e nova guardas no duelo eterno dos confrontos geracionais, ocupa o mesmo território dos seus hinos mais desordeiros. Pravda, em contrapartida, reaproveita a instrumentação solarenga de Father of The Bride, enquanto Mary Boone usa um coro vocal para construir algo tão grandioso e angelical como Hannah Hunt, Hudson ou Ya Hey. Diane Young até é discretamente citada no refrão da majestosa Capricorn, com Koenig a refletir a sua própria passagem de testemunho, natural em qualquer recomeço de ciclo. Construir pontes entre o antigo e o novo só seria redundante, contudo, se Only God Was Above Us não estivesse tão fortemente ligado à tentativa do trio assegurar o seu legado antes de deixar os holofotes. Questões de tradição e repetição histórica assombram a vibrante Classical, ao mesmo tempo que Hope, encerra o disco em tons de consolação pessoal, encontrando algum otimismo em saber que não se pode derrotar o invencível, quer seja a decadência de um mundo distópico ou o peso da nossa própria herança. É uma mensagem sensata, vinda de uma banda finalmente em paz consigo mesmo e com o impacto que poderão deixar em vida. Acima de tudo, é um brilhante regresso à plena forma dos Vampire Weekend, orgulhosos da sua meia-idade, com todo o crescimento e mudança que isso pode implicar.
Fabiana Palladino – Fabiana Palladino
Género: Sophisti-Pop; R&B
Data de Lançamento: 05/04/2024
Editora: XL; Paul Institute
Pode não parecer, mas a estreia nos discos de Fabiana Palladino já é esperada há cerca de dez anos, gravado em secretismo, alvo de sucessivos adiamentos e, sobretudo, de uma procura incessante pelo perfecionismo. Pelo meio, a londrina também colocou os seus dotes musicais, enquanto compositora, vocalista e multi-instrumentalista, ao serviço de terceiros, integrando as bandas de digressão e de estúdio de nomes como Jessie Ware ou Sampha. Faz lembrar, inclusive, o rumo tomado pelo seu pai, o mítico baixista Pino Palladino. Não existe, contudo, uma figura tão influente no seu arranque enquanto artista como Jai Paul, outro meticuloso patente e uma das figuras mais alegóricas e recatadas da última década. No ainda curto percurso de Fabiana, Paul assume aqui o papel de mentor, tendo apostado nela como a primeira inclusão na sua editora, a Paul Institute. O seu contributo para este álbum inaugural é um absoluto prazer para quem o escuta. A percussão em Can You Look in the Mirror, por exemplo, adiciona um contraste eletrizante às linhas sedosas do baixo. I Care, por outro lado, reúne a dupla para uma balada deslumbrante, verdadeiramente amplificada pelo cuidado redobrado de Paul com o design de som, utilizando e temperando cada elemento – dos ricochetes vocais aos sintetizadores esporádicos e ardentes – para introduzir vibração numa faixa inegavelmente minimalista, e sensualidade por entre a incerteza da narrativa.
Influenciada tanto por ídolos intemporais como pelos contemporâneos com quem tem partilhado o palco, a música de Fabiana soa tradicional em estrutura e retro em estética. Se Shoulda evoca Prince sem nunca cair no domínio dos clichés permanentes, Closer é tão sedutor e envolvente como os melhores êxitos de Janet Jackson. O que realmente eleva, porventura, a visão pedagógica de Fabiana com o passado da música pop como um todo é a sua capacidade de se envolver com os pilares sónicos dos anos 80 e 90 sob uma ótica contemporânea, executando cada tema com uma objetividade e uma força totalmente fiéis aos seus dotes. É algo que emana tanto na entrega de Fabiana como na produção que a circunda, com densidade e, acima de tudo, personalidade suficientes para transformar estes 40 minutos numa amostra infinitamente dinâmica e sofisticada. Stay With Me Through the Night, por exemplo, une os grooves contagiantes do funk e os acordes delicados do piano com a sua voz rouca e súplicas firmes. Embora nunca explodam em declarações verdadeiramente gigantescas, cada uma das 10 composições aproveita ao máximo a sua contenção. O refrão de I Can’t Dream Anymore irrompe como uma onda, enquanto Forever se prolonga segura, mas lentamente em direção a um desfecho orquestral e panorâmico para um disco que quebra os moldes do tempo e do som com enorme frequência, propondo uma reinvenção de tendências passadas através da abordagem pulsante e distinta de Fabiana às sonoridades de hoje.
Shabaka – Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace
Género: New Age; Spiritual Jazz
Data de Lançamento: 12/04/2024
Editora: Impulse!
Poucas semanas após a última passagem dos The Comet is Coming por Portugal (atuaram, em junho passado, na última edição do Primavera Sound Porto), Shabaka Hutchings – líder do trio de jazz intergalático, nome proeminente da música britânica e, também ele, líder de grupos vanguardistas como os Sons of Kemet ou os seus Shabaka and the Ancestors – anunciava a sua reforma enquanto saxofonista. Sendo uma retirada surpreendente daquele que foi o seu parceiro de eleição, não se pode dizer que não tivesse já apontado para esta mudança de paradigma nas suas últimas andanças, nomeadamente em Afrikan Culture, um EP de oito faixas que editou no final de 2022, onde orbita sobretudo entre o clarinete, o shakuhachi e a flauta. Com ela, surge uma reformulação daquilo que é a identidade musical de Shabaka. A agressividade vigorosa com que o víamos conduzir solos efervescentes, como se de um choque elétrico se tratasse, vê-se agora trocada por um registo mais contido, marcado por instrumentos de sopro mais serenos.
No seu primeiro longa-duração a solo (e, claro está, enquanto flautista assumido), existe um especial cuidado em manter um certo repouso contemplativo, sempre assente neste seu novo rumo e em muito inspirado pela serenidade hipnotizante tão bem captada pelas figuras ancestrais do spiritual jazz e do new age. É algo que atinge na perfeição em faixas como End of Innocence ou The Wounded Need to Be Replenished, ambas embelezadas pela subtileza do piano de Nduduzo Makhathini. Nem mesmo os instantes finais de Breaking, o único momento em que Shabaka resgata o seu velho companheiro de viagens, conseguem quebrar esse encanto. O elenco que o acompanha em Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace também contribui e muito para que esta graciosidade que contorna o disco não se torne amorfa ou até mesmo redundante. As vozes hipnotizantes de Moses Sumney e Lianne La Havas fundem-se e amplificam as atuações de Shabaka, adicionando intrigantes camadas sónicas a Insecurities e Kiss Me Before I Forget, respetivamente. Em Body to Inhabit, por outro lado, o rapper ELUCID da dupla Armand Hammer entra numa espiral de spoken word, numa luta constante com a restante orquestração que cria inegavelmente uma atmosfera psicadélica. Até mesmo a inclusão discreta de André 3000 (que retribui o favor a Shabaka, depois do próprio se ter reinventado no final do ano passado com New Blue Sun), ao lado das breves passagens vocais de Laraaji e da eletrónica palpitante de Sam Shepard (mais conhecido como Floating Points), produz, também aqui, um efeito de transe difícil de escapar. Sacrificando talvez o caráter imediato de outrora, Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace é, mais do que um simples recomeço para Shabaka, um reorientar das suas qualidades transversais sob um estado perene de meditação musical, não tão distante de fases passadas do seu percurso artístico em espírito, mas bem mais díspar e intimista na sua execução.
St. Vincent – All Born Screaming
Género: Art Rock
Data de Lançamento: 26/04/2024
Editora: Virgin; Total Pleasure Records
Annie Clark nunca se deu muito à estagnação. Sendo esta uma parte integrante do ADN artístico da norte-americana desde que iniciou uma carreira cheia de glórias, há praticamente duas décadas, acaba por trazer consigo um efeito perverso. Com cada novo álbum, surge sempre a exigência (ou, pelo menos, a expectativa) de uma reinvenção, convidando tanto os mais céticos como os seus apologistas a aceitar que não existe, nem nunca existirá, uma verdade absoluta sobre quem é St. Vincent e o que o projeto em si representa. As duas colaborações com o agora magnata da produção, Jack Antonoff, trouxeram consigo uma quebra estilística para os fãs de longa data. Apesar de serem trabalhos igualmente triunfantes, quer o pop vibrante e sintetizado de MASSEDUCTION como a “nostalgia assumida pelo psicadelismo da década de 70” (com um retoque autobiográfico) de Daddy’s Home encarnaram uma camada quase artificial de teatralidade que, claro está, provocou reações polarizadas, ainda que algo esbatidas pelo espetáculo verdadeiramente performativo na última edição do Primavera Sound Porto. Para quem não tem ficado convencido com os seus últimos lançamentos, contudo, All Born Screaming oferece um regresso às origens mais abrasivas de Clark, no seu estado mais arrojado desde os tempos de Strange Mercy.
Tudo em redor deste seu sétimo e mais recente disco rejeita e retifica categoricamente todas as decisões criativas tomadas na última década, trazendo novamente para primeiro plano a componente humana que parecia ofuscada nos seus antecessores. O funk contorcido, misturado com algumas passagens em spoken word, de Big Time Nothing ou a estética tropical de So Many Planets voltam a abraçar as sonoridades de outrora com o domínio de uma veterana. Mas onde All Born Screaming realmente espanta é nos seus temas mais inovadores (dentro do cânone da artista) e desconcertantes, quer em termos de registos como de temáticas. Broken Man e Flea, por exemplo, mostram uma faceta mais industrial de St. Vincent, amplificada pela bateria feroz de Dave Grohl e, principalmente, pelas explosões frenéticas que Clark consegue desencadear. Já a dupla inicial de Hell is Near e Reckless evolui em lume brando, para introduzir uma escuridão que tudo consome e assombra, pelo menos até à erupção mecânica desta segunda faixa. É um de muitos momentos em que All Born Screaming se desdobra com um hipotético cenário pós-apocalíptico (que podemos ou não já estar a viver). Sweetest Fruit debate-se de frente com o luto, usando as mortes precoces de dois outros artistas queer, SOPHIE e o cartonista Daniel Sotomayor para refletir sobre a beleza e a finitude da experiência humana. Já em The Power’s Out, desenha-se uma balada fraturante, com a iconografia e a teatralidade de vários hinos maiores de David Bowie, onde imaginamos esse mesmo colapso inevitável de tudo o que nos rodeia. Quando All Born Screaming nos brinda com um derradeiro e exultante coro de vozes na sua faixa-título, já vemos Annie Clark renascida das chamas, em paz consigo mesma e, acima de tudo, pronta para desafiar, ao nosso lado, o destino fúnebre que nos aguarda.