O primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura 2022: uma festa com selo português

Após três longos anos de interregno, é possível reentrar no Couraíso. Para iniciar a 28ª edição do festival, a Praia Fluvial do Taboão foi inundada pela música nacional, abençoada por alguma chuva e por muitos festivaleiros prontos para mais uma semana de emoções. Benjamim e Samuel Úria despertaram cedo um recinto levemente composto, mas Bruno Pernadas, Rita Vian e Conjunto Corona foram os principais destaques deste dia inaugural.

A presente temporada de festivais de verão já se encontra na segunda metade. Depois de eventos como o NOS Primavera Sound, o NOS Alive ou o Super Bock Super Rock a terem a sua oportunidade de recompensar os fãs de dois verões de silêncio, foi agora a vez do Vodafone Paredes de Coura, que deu ontem início à sua 28ª edição. Convém, no entanto, relembrar que Coura não parou totalmente. Não falhámos em 2020, nem em 2021 a este recinto idílico.

Quem ainda está algo de fora desta comunidade afável, não consegue imaginar a desolação dos seus visitantes regulares. Pessoalmente, tenho um maior historial e afeto pelo NOS Primavera Sound, mas Coura sempre me atraiu. Muitas histórias ouvi da Ana Duarte, nossa diretora da CONTRABANDA, que já leva bem mais de uma década de experiência aqui e decidiu apostar em mim para este festival, enquanto mantém a sua parceira com o media partner musicfest.pt. Confesso que este facto, aumenta ainda um pouco mais a pressão e ansiedade, de quem prepara esta estreia pessoal no recinto, mas há algo que qualquer festivaleiro, novo ou não partilha: a saudade dos grandes concertos. Este tem sido um sentimento transversal onde quer que se vá, mas deverá ser ainda mais acentuado em Coura. Não é por acaso que um dos pontos fortes do festival é precisamente este espírito de comunidade e a partilha do amor pela música.

E nada melhor do que um elenco 100% português para este regresso. É uma tentativa assumida de premiar quem trabalha arduamente na indústria nacional, tendo assim um dia extraordinário “inteiramente dedicado à música portuguesa”, longe dos nomes mais chamativos do panorama além-fronteiras. No entanto, os horários de meia hora para os artistas até ao anoitecer e a falta de diversidade neste leque gerou, alguma polémica e contestação. Vozes como a de Teresa Colaço no Rimas e Batidas demarcaram o quão dececionante é ver Rita Vian a ser mesmo a única mulher a solo entre os 20 nomes deste dia adicional. Contudo, há atos deste primeiro dia que efetivamente incluem mulheres no seu elenco, alguns bons exemplos são o caso de Mafalda BS dos Ocenspiea, de Claúdia Guerreiro dos Linda Martini, de Mala nos backing vocals de Sam the Kid (e até membros da orquestra) ou Margarida Campelo no diverso coletivo de Bruno Pernadas. E os dias que se avizinham têm bastante mais representação não só femme, mas também a fugir do típico white cis hetero dude.

Concerto dos Pluto no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Falando agora dos concertos propriamente ditos, fomos explorando o recinto e uma porção das atuações iniciais – como a dos The Lemon Lovers ou a dos Pluto de Manel Cruz – que foram, infelizmente, afetadas pela chuva que tanto vinha como desaparecia num abrir e fechar de olhos. Às 17 horas, decidimos ir ao encontro de Benjamim no Palco Vodafone. “Encomendámos sol, esperemos que se mantenha!”, afirmou logo a abrir. Ainda caíram algumas pingas entre os 30 minutos do seu set, mas parece que a profecia cumpriu-se. Percorreu discretamente o palco e, juntamente com a sua banda de suporte, animou tanto os mais atentos na linha da frente, como os muitos grupos sentados mais atrás na relva. Domingo, saída de Vias de Extinção, arrancou um espetáculo que não esqueceu Incógnito e Terra Firme, o sempre amado tema do seu projeto colaborativo com Barnaby Keen. Fechou com a faixa-título deste seu último longa-duração, que acredita ser a melhor canção que já escreveu.

Concerto de Benjamim no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Seguiu-lhe Samuel Úria, que ordenou que se fizesse lama neste dia relativamente chuvoso e que nos trouxe as suas Canções do Pós-Guerra. Deste seu último longa-duração, Fica Aquém e A Contenção despertaram mais as atenções dos presentes, que já se iam levantando da relva sem medo para dançar ao seu ritmo. Mas engane-se quem achar que foi só o material mais recente a estar em destaque. Como já não pisava os solos da Praia Fluvial do Taboão “há uns anos”, decidiu cortar um pouco os discursos – visto que esta falta de tempo “não dá para fala-baratos” – e fazer uma pequena demonstração de tudo o que surgiu nesse interregno. Entre Fusão ou Pequeno Mundo, foi mesmo a dupla de É preciso que eu diminua e Lenço Enxuto, dois dos seus hits incontornáveis do passado, que deixou os mais envolvidos com uma dose de alegria. Não precisou de reconquistar Paredes de Coura, o público vai e sempre irá nas suas deixas.

Concerto de Samuel Úria no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Depois de um pontapé de saída relativamente tranquilo, foi Rita Vian, que já mencionamos anteriormente, quem realmente começou a escalar a energia do recinto, no Palco Vodafone FM às 19h45. Apesar de só ter lançado o seu refrescante EP de estreia CAOS’A há pouco mais de um ano, já conquistou outros festivais de grande escala em 2022. Foi o caso no NOS Primavera Sound, repetiu-se no NOS Alive e, no Vodafone Paredes de Coura, o cenário não foi diferente. Não precisou de muita luxúria para se impor, basta a sua voz imponente para conseguir mover montanhas. “Sereia” é a prova viva desse percurso ainda curto, mas repleto de potencial, e de que é possível alcançar os sonhos, desabafou. Lembrou ainda os avós, replicando um cântico da sua autoria, trouxe Purga e Trago (imediatamente reconhecidas pelos fãs) e aliciou-nos com uma nova composição para um futuro incerto. Foi só pena ver tantos a saírem mais cedo para conseguir um lugar invejável no que se seguia no palco vizinho. Apesar de ter sido mais uma vítima desta programação-relâmpago, provou que tem tudo para subir a outros patamares com mais trabalhos e atuações deste calibre no seu portfólio.

Concerto de Rita Vian no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Pouco depois, foi a vez dos Linda Martini tomarem conta do Palco Vodafone. Num regresso que já não conta com Pedro Geraldes ao comando da guitarra (Rui Carvalho, melhor conhecido como Filho da Mãe, foi o substituto encontrado para este período de transição), o agora trio puxou, como esperado, pela adrenalina da plateia. Junto às grades, gritava-se as letras de Amor Combate, Boca de Sal ou Cem Metros Sereia. Eram formados os habituais mosh pits e viam-se alguns crowd surfs à distância, cada um mais intenso do que o anterior. ERRÔR, editado em fevereiro, ocupou evidentemente um lugar de destaque, com temas como Horário de Verão, E Não Sobrou Ninguém e Taxonomia (que fechou o espetáculo) a provocar uma tão necessária libertação da audiência. Foi mais uma sublime amostra de uma banda que, além de ser aqui acolhida como se de uma segunda casa se tratasse, faz dos seus concertos uma exibição de catarse coletiva.

Concerto dos Linda Martini no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Pouco antes das 23 horas, rendemo-nos ao sublime concerto de Bruno Pernadas, acompanhado, como sempre, pela sua variada “orquestra”, com quem partilha orgulhosamente o protagonismo. Trouxe na bagagem os irresistíveis tons exóticos e coloridos de Private Reasons, um dos grandes lançamentos do ano passado para a CONTRABANDA. Vibrou-se com Lafeta Uti e os seus ritmos de afrobeat, enquanto a majestosa Little Season deliciou os que ali estavam presentes com a fantástica junção de um jazz virtuoso e de sensibilidades mais pop a saltarem logo à vista (para além de uma reprodução inesperada da voz de Hatsune Miku, claro). Viajou-se igualmente ao som de Spaceway 70 e Ya Ya Breathe, dois esplêndidos temas saídos de Those Who Throw Objects at the Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them. Se, nas versões de estúdio, as suaves e formidáveis camadas de voz e instrumentação enchem qualquer um de fascínio, é ainda mais difícil ficar indiferente à mestria de Bruno Pernadas e da sua banda quando o seu catálogo é transportado para um cenário ao vivo, mesmo que tenham surgido alguns problemas técnicos durante o set. Não poderíamos deixar cair o quão satisfeitos ficámos ao ver a vocalista Margarida Campelo e o trompetista Diogo Duque a conquistarem o seu espaço a solo ao longo da atuação. Aliás, todo este coletivo nos deixa repletos de orgulho. Não só formam um dos elencos nacionais mais talentosos do momento, como criam música divinal para os nossos ouvidos. Foi um dos concertos da noite e pode bem vir a ser um dos mais fascinantes da presente edição.

Concerto de Bruno Pernadas no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Já para lá da meia-noite, Conjunto Corona (composto por dB, melhor conhecido como David Bruno, e Logos) foi recebido por uma verdadeira maré de fãs. Acompanhados pelo icónico Homem do Robe, os autointitulados “campeões” tiveram mesmo a receção mais entusiástica do festival até ao momento. Muito se gritou por Gondomar, muito se ansiou o tão desejado “hidromel” e, acima de tudo, muito se vibrou com os clássicos do duo de Vila Nova de Gaia, como Pacotes, Perdido na Variante ou Santa Rita Lifestyle. Pelo meio, voavam sapatilhas e camisolas do Paços de Ferreira, que obviamente provocaram cânticos de apoio ao clube. Transformou-se a passagem de um cartaz alusivo a Santa Rita em provas dos “jogos sem fronteiras” e lembrou-se do concerto de Cigarettes After Sex, neste mesmo palco secundário em 2016 – que David Bruno confessou ter sido “uma grande seca”. No meio de “um concerto de jarda”, o caos nunca se tornou perigoso e o nível de democracia e de diversão sobrepôs-se a tudo o resto. Tal como afirmou David Bruno, “esta merda não é o Sol da Caparica, é Paredes de Coura” e só mesmo um festival deste calibre consegue ter concertos tão especiais como o do Conjunto Corona.

Concerto de Conjunto Corona no Vodafone Paredes de Coura 2022 | Fotógrafa: Mariana Silva

Com mais de 12 horas seguidas de atuações, o desgaste foi crescendo de intensidade, até mesmo entre os festivaleiros. Foi um autêntico “toca e foge” que deixou um leque considerável de artistas com pouco mais de meia-hora para se darem a conhecer. Em forma de balanço final, tanto o público como os próprios artistas recriaram uma dinâmica muito própria deste festival, maximizado pelo sentimento de regresso aos tempos inesquecíveis passados em comunhão com o Vodafone Paredes de Coura. O espetáculo continua e tudo aponta para que os próximos dias tragam de volta a magia de Coura na sua máxima força.

No segundo dia do Vodafone Paredes de Coura (17 de agosto), atuam os cabeças-de-cartaz Beach House e IDLES, ao lado de artistas como Alex G, Viagra Boys, Porridge Radio e Indigo de Souza.

Fotos: Mariana Silva

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