Julia Holter no Festival Para Gente Sentada 2024: Explorações oníricas com um dinamismo inescapável
No concerto de encerramento de mais uma edição do Festival Para Gente Sentada, a artista californiana fez do seu regresso a Portugal mais um epicentro de purificação musical, refletindo a meditação etérea que informa o seu último trabalho de estúdio, Something in the Room She Moves, no grandioso cenário do Theatro Circo.
10 de junho de 2023. Decorria o último fim de tarde da edição de 2023 do Primavera Sound Porto quando Julia Holter, rodeada por um pôr-do-sol revitalizador, ia desvendando os esboços finais do que viria a ser o seu primeiro disco em cinco anos. Algures entre o “rebuscar do passado e o desvendar” do seu futuro artístico, o verdadeiro esplendor da sua música falava por si, como se aquele plano de fundo pitoresco tivesse sido alinhado pelos astros, de maneira a refletir na sua plenitude as qualidades de “uma das atuações mais subtilmente mágicas de toda a semana”. Há muito que é um dado adquirido que a norte-americana é praticamente incapaz de não “envolver a sua arte de uma elegância ímpar”, mas Something in the Room She Moves – editado em março passado – veio provar que, uma década e meia depois de ter semeado as raízes de tudo o que se seguiu no seu deslumbrante percurso, ainda consegue desvendar “novas formas de hipnotizar quem se rende à sua magia”. Assim obrigou o contexto que circundou a sua gravação: a vasta maioria das suas faixas foi escrita e gravada durante a gravidez e os confinamentos pandémicos. Redireciona-se a escala epopeica de Aviary para caber em declarações de amor mais introspetivas, evocando tanto o corpóreo como o metafísico. Pelo caminho, desconcerta-se ainda mais a “dicotomia entre ambição sónica e contenção estrutural, mas sem esquecer o eterno compromisso de Holter com a ideia de uma viagem musical tão transformadora como as sensações que tão bem consegue invocar”. A beleza, nas suas múltiplas formas, é dominante onde quer que Holter coloque os seus esforços. E num último dia do Festival Para Gente Sentada onde assumiu o protagonismo por inteiro, a sala magnífica do Theatro Circo voltou a encher as medidas de quem se deixa absorver no meio de todo o seu encanto.
Fotografias da Autoria de Hélder Oliveira @ DIREITOS RESERVADOS
Acompanhada por Beth Goodfellow na bateria, Dev Hoff no baixo e o seu parceiro Tashi Wada, as canções de Holter procuram manter-se fiéis às suas versões originais. Sea Calls Me Home e Feel You – dois dos temas maiores de Have You In My Wilderness, “um dos álbuns mais deslumbrantes dentro e fora do seu estilo na passada década” – seguem carregados por um perfecionismo incisivo na execução de cada elemento que os molda, mantendo o público em suspenso com os seus visuais hipnotizantes num estado permanente de imersividade. Evening Mood, por outro lado, replica a sua amálgama de jazz noturno e chamber pop onírico com enorme sucesso, enquanto Words I Heard vai fervilhando lentamente até encontrar um desfecho arrebatador que expõe o caráter transcendental que é ver a música de Holter a florescer em tempo real. E apesar de tamanha meticulosidade na apresentação dos clássicos de sempre, é precisamente o novo e refrescante cabaz de canções que deram azo a Something in the Room She Moves que mostram uma maior espontaneidade neste registo. Os refrões cintilantes de Sun Girl, logo a abrir o alinhamento, surgem aqui acompanhados dos solos inesperados de Wada na gaita de foles, quase como se de um órgão se tratasse – peculiares ao início, mas não menos complementares. Já Spinning soube tirar proveito das suas “locomoções percussivas e de sintetizadores para fazer avançar a composição”. Cada loop progredia com um alento saltitante, florescendo em direção a um culminar instrumental repleto de irreverência trémula que soube manter as emoções de uma sala inteira à flor da pele. A própria postura cuidada de Holter parecia atenuar com uma certa leveza com o desenrolar das composições mais recentes, trocando sorrisos carismáticos com a sua banda de suporte, pelo meio destes exercícios conjuntos de precisão minuciosa.
Fotografias da Autoria de Hélder Oliveira @ DIREITOS RESERVADOS
Todo um auditório, dominado pelos feitiços da artista e de mão dada com a escuridão do cenário, aparentava validar as investidas cinéticas de Holter sem precisar de quaisquer discursos de incentivo prévio, irrompendo em aplausos mal surgisse uma oportunidade. Antes de fechar o concerto com chave de ouro ao som da incontornável Betsy On The Roof (com um derradeiro crescendo capaz de purificar qualquer alma humana), quebrou finalmente o silêncio para a habitual ronda de agradecimentos, com especial destaque para a sua tour manager. “Está a cuidar do nosso bebé neste momento”, desabafou com humor e a sinceridade de alguém cujos papéis de mãe e artista são crescentemente indissociáveis – não fosse o seu nascimento uma peça central para contextualizar este seu último disco, encarnando o mesmo amor e graciosidade que transpõe em tudo o que faz. Dentro e fora do palco, são poucos os que comunicam estes sentimentos com a intuição artística de Holter, nunca falhando na promessa incessante de devolver a quem a escuta os sentimentos revigoradores que nos mantêm vivos.