Ageas Cooljazz: A Coroação de Chaka Khan e o Trip Hop contagiante de Morcheeba

É prazeroso ir a um festival de música onde as pessoas se sentem em casa e não se inibem de o expressar por algo simples e, por vezes, desvalorizado: o prazer pelo convívio e pelo conforto num espaço comum.

Pouco tempo depois de chegar ao Hipódromo Manuel Possolo, na zona de Cascais, foi agradável observar uma audiência tão híbrida a nível de nacionalidades e de idades. Quer se fosse português, espanhol ou neerlandês, ou com 30, 50 ou 70 anos, sentia-se uma coexistência saudável pela parte dos visitantes e o seu depositar de confiança num festival familiar e acolhedor como o Ageas Cooljazz.

A zona de restauração é bastante central e pode-se desfrutar de bons locais para se sentar (mas cuidado, pois a carteira pode lacrimejar ligeiramente; é um risco que nós, como amantes de música, temos de correr). As casas de banho ficam ao lado do palco “Ageas” portanto, se estiveres nos outros, prepara-te para andar!

Os acessos aos três palcos (palco principal “Ageas”, palco secundário “Cascais Jazz Sessions” e palco “DJ Late Nights”) são razoáveis e a acústica de qualquer um deles é bastante boa (tendo em conta os desafios de um palco aberto, propício a irregularidades geradas pelo vento e pela regulação mais complicada de frequências graves; o sound designer e produtor musical que há em mim já parou, prometo).

Enquanto a boa disposição ia pairando, fui espreitar o palco “Cascais Jazz Sessions” e cheguei a tempo da atuação do combo português de free jazz, Onoma. Graças à sua vitória num concurso de bandas, os estudantes da faculdade do Porto tiveram a oportunidade de arrancar o dia da melhor maneira!

O resultado passou por um set de temas originais (destaco “Pueblo”) com arranjos repletos de jazz, ambient e música experimental imersiva, bem como de uma coordenação exímia entre os 6 músicos e as suas secções instrumentais (secção melódica composta por 1 teclista, 2 saxofonistas e 1 trompetista/corneta, e a rítmica constituída por 1 contrabaixista e 1 baterista).

Inicialmente o público fez-se de difícil, mas depois o que estranhou começou a entranhar e foram merecidamente aplaudidos pela tímida plateia a assistir. Foram os primeiros passos e acredito que poderão ter o seu espaço no panorama jazz e contemporâneo nacional!

Na sua 18º atuação em solo nacional (claramente entusiastas de pastel de nata e do Algarve), esta foi a primeiríssima vez do lendário grupo de trip hop britânico no Ageas Cooljazz.

Composto pela vocalista eletrizante Skye Edwards, e pelo guitarrista e baixista Ross Godfrey, os Morcheeba são considerados uma das bandas mais bem-sucedidas de trip hop do final dos anos 90 e do início do novo milénio, com uma sucessão de êxitos internacionais como “Rome Wasn’t Built In a Day”, “The Sea”, “Blood Like Lemonade”, “Blindfold”, entre muitos outros! O seu último projeto foi realizado durante a pandemia, intitulado “The Blackest Blue”, lançado em maio de 2021, mas não vieram. 

Enquanto ia procurando o meu lugar, as 21 horas iam-se aproximando e procurei perceber a recetividade do público. Como previsto, a maioria ainda não tinha chegado ao recinto e logo aí se viu qual era a atuação mais aguardada da noite.

Durante o concerto, as várias tentativas de cativar a audiência, por parte de uma das melhores vocalistas da sua geração, foram em vão (pediu que fizessem um cântico em “The Sea” ou que repetissem a frase “Oh Yeah, Oh Yeah” no tema “Oh Oh Yeah”, mas sem grande adesão).

Alguns dos presentes, como em qualquer plateia, não estavam interessados na prestação dos ingleses de Kent e não tiveram a devida consideração pelo seu trabalho que, a meu ver, foi digno de uma ovação de pé (acabaram por a ter claro, mas já lá vamos)!

Atualmente são acompanhados de uma backing band constituída por um baixista, um baterista e um teclista do mais alto nível, contribuindo assim para as cadências progressivas, o uso eficaz de sampling e as influências de eletrónica, rock, pop, R&B, downtempo e psychedelia que tanto caracterizam a sonoridade da banda.

A guitarra distorcida e psicadélica de Godfrey (em temas como “The Sea” e “Otherwise”), os contrapontos musicais do baixista e as linhas melódicas do teclista marcaram o set de 1 hora, mas especialmente a vivacidade e prestação vocal contagiante de Skye Edwards! Realço a teatralidade e a mística da vocalista em frases como “I’m on My Knees to Pray” na faixa “Never an Easy Way”, tal como o hipnotismo entoado pela letra “Love the Trigger Hippie” em “Trigger Hippie”.

O público em geral lá deu o ar da sua “graça” em músicas como “Blood Like Lemonade” e “Rome Wasn’t Built In a Day”, colocando-se de pé de forma espontânea e com apreço por Skye Edwards.

Ainda assim, foi um concerto carregado de feeling, harmonia e, acima de tudo, muita e ótima musicalidade! Para quem nunca teve a oportunidade de os ver, procurem os próximos concertos nas redes sociais e website da banda. Asseguro que fãs de eletrónica, soul, R&B, hip hop e ambient não vão ficar desiludidos!

PS: Recomendo o álbum “Charango” e o single “Otherwise”, a minha música de eleição da banda!

Depois dos Morcheeba acabarem o seu set, coube a uma das maiores ícones da música funk americana quebrar a espera de milhares de fãs e finalmente subir a palco: Ms. Chaka Khan!

No seu regresso a Portugal e estreia no festival, pela digressão internacional “A Celebration Of 50 Years In Music“, Khan levou o público numa jornada audiovisual pela sua carreira ímpar na música contemporânea. Nesta exibiu imagens dos seus anos áureos e diversos testemunhos de figuras da cultura popular norte-americana, como Stevie Wonder, Michelle Obama, Whitney Houston, Joni Mitchell, entre outras(os), dando assim o mote para um concerto memorável comemorativo de 5 décadas no ativo!

A performance foi brutal e com muita energia do início ao fim, proporcionando-nos com músicas da sua fase com a banda Rufus nos anos 70, como “Tell Me Something Good”, “Sweet Thing” e “Ain’t Nobody”, como as do seu percurso a solo como “I Feel For You” (originalmente de Prince e marcada pelo icónico sample de entrada), “Through The Fire” (tema posteriormente “samplado” em “Through The Wire”, por Kanye West) e o clássico de empoderamento feminino “I’m Every Woman” (muitos passaram a conhecê-la pela versão de Whitney Houston).

A sonoridade identitária de funk, soul, R&B, disco e de “fazer bebés” esteve sempre presente. Até houve tempo para um cover de Fleetwood Mac (“Everywhere”), e um tributo à cultura afro-americana e ao hip-hop, onde 4 bailarinos subiram a palco e arrasaram a partir da arte do breakdance!

A plateia manteve-se sempre fervorosa, especialmente em “I Feel For You”, “I’m Every Woman” e “Ain’t Nobody”, fazendo com que a maioria das pessoas tivesse o impulso de se levantar e de dançar ao som da grande voz de Khan e da sua banda virtuosa (realço o guitarrista, o baixista e o seu coro de 3 mulheres).

É o perfeito exemplo da postura que uma lenda viva deve ter: uma líder humilde e que procura sempre enaltecer o talento de cada colega, a cada oportunidade que tenha (fez isso por inúmeras vezes, como por um momento de “chamada e resposta” entre Khan e as três coristas em “I’m a Woman (I’m a Backbone)”; um bailarino a dançar à sua volta em “I Remember U”, etc.).

Aos jovens 71 anos de idade, Khan é uma referência para qualquer artista e qualquer mulher: uma mulher independente que sabe o que quer e que não se deixa abater pelos obstáculos pessoais e, acima de tudo, da vida! Ela é “Every Woman” e, sem dúvida, “Ain’t Nobody” como a Ms. Chaka Khan!

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