Tim Bernardes no Coliseu do Porto: Baladas de grandes emoções com um recinto à medida

Nascer, viver, morrer”. É o ciclo a que a condição humana nos sujeita e que transpomos no que escolhemos deixar como legado: as relações que construímos, as memórias que procuramos fazer perdurar através dessa partilha de afetos ou, talvez mesmo, a emoção convertida em arte. É com estas três palavras, tão carregadas de valor metafísico, que Tim Bernardes arranca Mil Coisas Invisíveis, o seu segundo e mais recente trabalho, prestes a completar dois anos de existência e que, efetivamente, já viveu muitas vidas desde o seu lançamento. É um trabalho com inspirações além-fronteiras que obteve, justamente, a exposição internacional que tanto ambicionava. Por entre os arranjos ornamentados e a sua aura profundamente intimista, desvenda-se, nas suas composições enternecedoras, uma universalidade que ultrapassa quaisquer barreiras linguísticas ou territoriais. Evoca-se a época dourada da música popular brasileira, admite-se uma profunda devoção à “beatlemania” e cruza-se ainda o requinte instrumental tão presente na identidade artística dos Grizzly Bear, dos Dirty Projectors ou então dos Fleet Foxes – banda esta que o convidou para participar no seu último álbum e para abrir os espetáculos da digressão norte-americana de Shore.

É caso para se dizer que, mais do que melancólicas ou profundamente existencialistas, as baladas de Tim Bernardes conquistam e quebram corações em qualquer lugar onde haja vida: num pequeno compartimento dominado pelo solidão e isolamento pandémico que circunscreveu muitas das suas últimas criações, numa sala de espetáculos absolutamente lotada ou até mesmo ao ar livre. Foi o que ocorreu, aliás, em agosto passado, quando fez da sua passagem pelo anfiteatro natural do Vodafone Paredes de Coura uma atuação rara sob um formato mais compacto e tão inerente ao circuito de festivais. Foi uma oportunidade estonteante que selou com chave de ouro o segundo fim de tarde da última edição do evento, onde a experiência muito recomendável de ver Tim Bernardes ao vivo ganhava o seu próprio momento Woodstock do outro lado do Atlântico, com uma enchente à medida a sentir na pele “esse poder quase incrédulo de criar um vínculo inquebrável por onde passa”.

Seis meses depois, a fórmula, a multidão de fãs e o resultado final mantêm-se praticamente inalterados para mais um acarinhado reencontro com o público português. Num dos últimos concertos de apresentação de Mil Coisas Invisíveis em solo nacional, e na sua estreia em pleno no Coliseu do Porto, Tim Bernardes voltou a transformar uma das maiores salas da cidade no eixo central do sentimentalismo – algo que nem os problemas iniciais com a iluminação, que atrasaram ligeiramente o começo do evento, conseguiram abalar. Ao longo de quase duas horas de alinhamento, vemos o músico sozinho em palco, rodeado pelas suas três guitarras, pelo piano e sem a necessidade dos “arranjos ostensivos deste seu segundo álbum” e de grandes adereços adicionais, a conter uma plateia inteira na simplicidade de um acorde, na poesia dos seus versos e, acima de tudo, na delicadeza magistral da sua voz.

Numa questão de segundos, o coliseu rapidamente se fez capela, o silêncio instalou-se para escutar a beleza saudosista de Fases, Mesmo Se Você Não Vê ou Última Vez à luz das velas (ou, neste caso, dos dois holofotes em palco), que vão escondendo e motivando as lágrimas, as habituais trocas de afeto e a revigoração que daí decorre. As viagens narrativas de Meus 26 – inicialmente esboçadas nos hotéis de Lisboa, mas sempre com “um pé no mundo e outro no Brasil” – atravessam o domínio pessoal e passam a servir como lembranças coletivas de tudo o que nos conforta e agonia e que ganham, nas palavras de Bernardes, uma oportunidade de ver as suas feridas saradas e os seus desejos refletidos. Dos refrões apaixonantes de BB (Garupa de Moto Amarela), por outro lado, surgem coros libertadores, com Bernardes e o público em uníssono, numa sinergia mais tarde repetida em Melhor Do Que Parece e Volta, dois hinos incontornáveis dos seus O Terno. E para além das promessas subtis de um regresso do grupo e das tradicionais, mas sempre aguardadas repescagens dos temas do seu disco de estreia, não faltaram as evocações a muitos dos seus ídolos artísticos, evocando “a monumental Gal Costa com Realmente Lindo”, reapropriando as letras que escreveu para Prudência de Maria Bethânia, ou ainda aproveitando a ligação histórica de Bob Dylan com o Coliseu do Porto para interpretar It’s All Over Now, Baby Blue – ou, melhor dizendo, a versão traduzida por Caetano Veloso, entitulada Negro Amor – em todo o seu esplendor.

Não é nenhuma novidade que a música de Tim Bernardes – e, por extensão, os seus espetáculos ao vivo – possui um caráter inegavelmente sensorial e também “não há como enganar o seu efeito ou até mesmo sobreanalisar o que é tão humano e realista, sendo que vivê-lo é precisamente o melhor remédio, com a certeza de terminar cada encontro com a alma purificada”. Mais do que uma relação de amor prolongada entre quem experiencia estes momentos envoltos em arrepios e quem os proporciona, estabelece-se uma resolução ingénua para o fim deste ciclo artístico que já se parece avizinhar na carreira do paulista. Mil Coisas Invisíveis vai-se despedindo, a pouco e pouco, do público português, para dar certamente lugar ao que se segue no seu repertório magistral. As sensações que concertos desta natureza despertam, porventura, ultrapassam a efemeridade do tempo e tornam-se imortais, capazes de serem revisitados no nosso subconsciente, na eternidade dos discos de Bernardes e, sempre que surgir a oportunidade, recomeçar o processo a seu lado.

Depois do concerto de Tim Bernardes no Coliseu do Porto, o artista brasileiro retoma a sua presente digressão europeia, que passará por cidades como Madrid, Paris ou Londres nas próximas semanas, destacando-se as duas atuações no Coliseu de Lisboa nos dias 1 e 2 de fevereiro, em mais dois espetáculos com o selo da promotora Sons em Trânsito.

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