Soul Glo + Hetta no Maus Hábitos: A reunião frenética de duas vozes pioneiras do hardcore

Depois de encherem a Galeria Zé dos Bois em Lisboa na noite anterior, os norte-americanos Soul Glo encerraram ontem, dia 6 de junho, a sua estreia em Portugal com mais uma brilhante amostra de toda a sua visceralidade e intransigência. Pouco mais de um ano após o lançamento de Diaspora Problems, o trio natural de Filadélfia fez-se, novamente, acompanhar dos portugueses Hetta, que assumiram a primeira parte do espetáculo.

No mundo da música ao vivo, existem poucas experiências que se aproximem a um concerto de hardcore. É o tipo de energia, de caos, difícil de tentar replicar ou sequer traduzir para quem nunca tenha tido contacto com esta bolha. Ainda que um nicho na esfera musical nacional e internacional, é também interessante olhar para o enorme sucesso de bandas como os Turnstile e ver como estas desafiam o que cabe ou não numa caixa descritiva. À partida, os norte-americanos Soul Glo e os portugueses Hetta certamente encaixam neste rótulo. O suporte estilístico de ambos os grupos, contudo, consegue florescer noutras direções igualmente angulares, indo para além das balizas do hardcore. Sim, é música áspera e densa, que eleva o caos e a ferocidade ao patamar de voz dominante, mas também multifacetada. Ouvem-se pedaços de screamo nos seus respetivos trabalhos. No caso dos Soul Glo, são até notáveis as influências do rap, de forma mais ou menos literal. Num registo ao vivo (e nesta interessante conjuntura de duas das principais bandas do seu estilo nos Estados Unidos e em Portugal), unem-se em torno do mesmo frenetismo, comandando o público portuense com eficácia numa celebração multinacional do hardcore.

Nesta véspera de arranque de uma nova edição do Primavera Sound Porto (que passou  ao lado de uma banda que faz parte das edições de Barcelona e de Madrid), via um público composto por duas metades bem distintas. A mais devota rendia-se à libertação dos moshpits nas filas da frente. A mais distante, por outro lado, ia observando com curiosidade a natureza avassaladora e fulminante que se instalava no início de cada “malha”. E mesmo que a estreia do trio composto por Pierce Jordan, GG Guerra e TJ Stevenson em território nacional coincida com o lançamento que os catapultou para novos palcos e públicos (Diaspora Problems, um dos melhores álbuns de 2022 para a CONTRABANDA) e com a saída forçada do guitarrista Ruben Polo, o espírito desta comunidade manteve-se intacto.

Se os Hetta não perderam tempo em tentar aquecer os ânimos para a segunda metade da noite (intercalando faixas novas, como Ritalin Kid, com vários destaques do EP Headlights, editado no ano passado), os Soul Glo seguiram a mesma deixa. Mal começaram a despejar a impressionante fornada de temas saídos do seu último disco, como Jump!! (Or Get Jumped!!!)((by the future)) ou We Wants Revenge, o difícil foi mesmo conter a anarquia da sala. Contudo, e, ao contrário do vocalista dos Hetta, Alex Domingos, que espreitava qualquer oportunidade para ir para o meio dos fãs ou para investir em crowd surfs espontâneos, Pierce Jordan recolhia a atenção com uma postura mais estática – o mais controlado possível para um líder de uma banda de hardcore, claro está. O entusiástico GG Guerra, em troca, assume-se como a peça mais heterogénea da banda, dividindo os deveres de guitarrista com o uso do seu computador portátil, que, a par de um MPC, vai projetando alguns samples transitórios e elevando os momentos onde os Soul Glo mais se aproximam das texturas do hip-hop industrial, como em Driponomics. Antes de rematar o primeiro concerto dos Soul Glo no Porto – que tanto teve de intenso como de fugaz – com a clássica Gold Chain Punk (whogonbeatmyass?), Jordan dirige-se à plateia com um discurso sentido: “É engraçado ver como uma música nos leva longe.”. Entre as suas fortes (e extremamente pertinentes) mensagens políticas e o poder catártico da sua música, o marco dos norte-americanos vai caminhando a passos largos para se tornar ainda maior do que já consegue ser.

Após esta curta passagem por Portugal, os Soul Glo retomam a sua presente digressão europeia, que ainda conta com a passagem por vários festivais de referência, como é o caso do Primavera Sound Madrid, do Outbreak Festival em Manchester e do Roskilde Festival na Dinamarca. Quanto aos Hetta, têm atuações marcadas para os próximos dias 17 e 23 de junho (na SMUP em Cascais e no Centro Cultural e Congressos de Caldas da Rainha, respetivamente), bem como um lugar assegurado no cartaz da próxima edição do Amplifest (nos dias 23 e 24 de setembro, no Hard Club).

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