Os Destaques de Julho 2022
Os novos lançamentos dos Viagra Boys, dos black midi, de Steve Lacy e de Beyoncé são os destaques do mês de julho para o nosso melómano e crítico musical, Rui Cunha.
Viagra Boys – Cave World
Género: Post-Punk; Dance-Punk
Data de Lançamento: 08/07/2022
Primatas e seres humanos. Ligados pela cadeia da evolução, separados pelo tempo. A espécie humana já foi bem diferente do que é hoje. Eram outras as formas de comunicação e sobrevivência, o pensamento humano estava noutro patamar. A nossa sociedade de specimens progrediu, teoricamente, para o seu próprio benefício. Ainda assim, estaremos nós numa trajetória de declínio, de retrocesso? Para os mais pessimistas, a sucessão e escalada de gravidade das crises, divisões e extremismos, juntamente com os fenómenos de desinformação e teorias da conspiração apontam nesse sentido. Para os suecos Viagra Boys, esta questão não só tem a sua razão de ser, como é o tema central do seu terceiro álbum.
Cave World é consideravelmente mais concetual do que Welfare Jazz e Street Worms. Com 40 minutos de duração, é bem mais conciso e instrumentalmente energético do que os seus antecessores, traços que estiveram algo ausentes em Welfare Jazz. Também retém e até amplia o tom satírico das suas letras, o que já é uma marca nos trabalhos da banda. Na irresistível Troglodyte, ouvimos Sebastian Murphy a apontar as hipocrisias dos movimentos alt-right, por cima de um conjunto de instrumentação a fazer lembrar Girl U Want dos Devo. O vocalista dos Viagra Boys até acaba por personificar estes apoiantes, entrando em paranóia sobre vacinas, microchips, cabelo e caudas de animal. Certamente, um dos instantes mais diretamente sarcásticos, cómicos e hilariantes de Cave World.
Ao longo das 9 faixas do disco, os Viagra Boys decidem ainda experimentar apontar noutras direções. Punk Rock Loser poderia facilmente integrar os dois primeiros álbuns dos suecos, enquanto Big Boy vê Sebastian Murphy e companhia a navegar pelas tonalidades do blues. Não é de todo um dos pontos fortes de Cave World, mas ajuda a quebrar uma certa monotonia temática e sónica. Para encerrar o disco com mais uma dose de insanidade, Return to Monke vê Murphy a ordenar que os principais alvos do álbum voltem a ocupar a selva e a subir para as árvores, rejeitando a sociedade e retornando ao seu estado mais primitivo.
O encanto dos Viagra Boys sempre se expôs melhor em temas dominados por um post-punk eletrizante e pelo cunho humorístico e frequentemente absurdo de Sebastian Murphy. Felizmente, Cave World tem estes dois elementos em abundância, naquele que é o álbum mais coeso, caótico e vigoroso da banda sueca.
black midi – Hellfire
Género: Avant-Prog; Jazz Rock
Data de Lançamento: 15/07/2022
Numa mão cheia de anos, os black midi fizeram-se donos do caos e do inferno. Cada trabalho do agora trio britânico leva-nos numa constante montanha russa de emoções e adrenalina, com os espantosos dotes técnicos de Geordie Greep, Cameron Picton e Morgan Simpson a comandarem a peça. Todos eles possuem a classe de quem já desvendou todos os truques de um jogo de xadrez e está agora a tentar replicar as mesmas jogadas vendado. E se os seus concertos já são, por si só, um potente espetáculo (prova disso foi a passagem do grupo pela última edição do NOS Primavera Sound), as versões de estúdio só vêm provar de novo esta virtuosidade. Quando se está perante uma banda tão imprevisível como os black midi, o melhor é mesmo deixar-se levar pela viagem, sendo que o mais certo é ficar fascinado com a mestria dos seus discos. Foi assim com Schlagenheim e o mesmo se repetiu com Cavalcade. Não é, por isso mesmo, uma surpresa que o terceiro e mais recente álbum dos black midi os mostre a alcançar um novo pico de genialidade.
Hellfire é, em vários campos, uma evolução direta em relação ao seu antecessor. Se Cavalcade já tinha revelado algum maximalismo, então Hellfire leva essa ambição instrumental a um extremo, num disco mais afirmativamente prog e que redobra também os níveis de intensidade. Há, no entanto, um maior foco na criação de uma narrativa envolta de teatralidade. Sugar/Tzu, por exemplo, leva-nos para uma luta de boxe tão bárbara e frenética quanto a bateria de Morgan Simpson ou a guitarra de Geordie Greep. Welcome to Hell, igualmente convulsa, introduz Tristan Bongo, um recruta que sofre de stress pós-traumático, navegando pelos horrores da guerra. Cada um destes contos diabólicos vai sendo desenvolvido ao longo do álbum, adicionando mais uma intrigante camada a um trabalho que não se cansa de surpreender.
Ainda que Hellfire seja dominado pelos sons da devastação, o trio consegue contrabalançá-los com temas mais solenes, embora igualmente impetuosos. A par de Dangerous Liaisons, Eat Men Eat faz o melhor trabalho a representar este balanço, com o saxofone de Kaidi Akinnibi e a voz distorcida de Cameron Picton a desestabilizarem a sonoridade mais acústica. Picton regressa ao lugar de frontman em Still, faixa que encerra com drones e instrumentos de corda a instalarem a paz por breves instantes, antes de serem quebrados por uma emissão de rádio. Os toques majestosos de temas anteriores como Marlene Dietrich também estão de volta, desta vez com The Defence, que contém algumas das letras mais memoráveis das 10 canções de Hellfire. Falta ainda mencionar a ferocidade de The Race Is About to Begin, que, à medida que detalha a crescente espiral de loucura em que Tristan Bongo se encontra, vê todos os seus elementos a romperem como arame farpado ao lado de mais uma performance maníaca de Geordie Greep.
Neste mundo grotesco e apocalíptico de Hellfire, a imponência dos black midi só fica mais aparente. O terceiro álbum da banda londrina recusa-se a estagnar e não se cansa de deslumbrar. Para alguns, será um osso duro de roer. Para outros, uma atormentada viagem pelo abismo, ao som do prog rock mais vanguardista desta geração. Afinal, este é o inferno dos black midi e nós, meros mortais, já estamos a viver nele.
Steve Lacy – Gemini Rights
Género: R&B; Neo-Soul
Data de Lançamento: 15/07/2022
Tudo começou com um iPhone e uma guitarra. Não foi preciso uma panóplia de ferramentas para fazer de Steve Lacy um autêntico prodígio em poucos anos, e tal só joga a favor do seu indubitável talento. Os seus grooves deliciosos já embelezaram temas de Kendrick Lamar, Tyler, The Creator, Vampire Weekend ou Ravyn Lenae, não esquecendo também os The Internet, que acabaram por colocá-lo no mapa, antes de partir para voos mais aventureiros. O maior desses desafios, contudo, tem sido fazer com que o seu estilo tão distinto brilhe na sua carreira a solo. Apollo XXI (2019) foi uma entrada desapontante nos álbuns de estúdio, diga-se, com muitas ideias soltas que, apesar de terem o toque de Lacy, tanto passam por inacabadas como por pouco carismáticas. Contudo, o seu sucessor vem aperfeiçoar (e muito) o que estava em falta em Apollo XXI e dar uma nova vida à estética de Steve Lacy.
É verdade que Gemini Rights aproveita a base colorida que tornou, por exemplo, Steve Lacy’s Demo (o seu EP de estreia) tão aliciante. Este seu segundo disco vê igualmente um corte significativo na duração em relação a Apollo XXI. Porém, nunca houve, até ao momento, um trabalho de Lacy que conseguisse misturar eficácia e criatividade com tanto sucesso. Continua a ser um artista assertivamente DIY, mas partilha agora o palco com mais instrumentistas do que ele próprio, com caras conhecidas como o baterista Karriem Riggins, o compositor e pianista John Carroll Kirby ou o produtor DJ Dahi a aparecerem na lista de créditos do álbum.
Ao longo de Gemini Rights, Steve Lacy também se deixa levar por andanças mais psicadélicas e menos ortodoxas, como acontece com Buttons, e isso só lhe traz uma agradável variedade. Give You the World e Amber, por outro lado, têm um toque orgulhosamente vintage. O primeiro destes dois temas ecoa alguns dos instantes mais enternecedores de um The Belle Album de Al Green, enquanto o instrumental da segunda podia passar por algo saído da discografia de Stevie Wonder, outro titã da música soul. Estas influências e tantas outras são fáceis de identificar por entre as 9 faixas de Gemini Rights, mas nunca assombram o input de Steve Lacy – e muito menos os dilemas amorosos que dão forma ao álbum.
No entanto, as suas canções mais irresistíveis são precisamente os três singles. Entre guitarra acústica e trompetes, Mercury possui uma estética quase tropical, tendo nas suas melodias absolutamente infecciosas o seu maior trunfo. Este aspeto é partilhado por Bad Habit, que conjuga a simplicidade do bedroom pop que dominou os primeiros anos da sua carreira com um novo sentido de maturidade e uma enorme aptidão para compor refrões contagiantes. Convém não deixar passar a oportunidade para enaltecer Sunshine, com Steve Lacy e Foushée a formarem um par encantador. Apesar de ambos terem vozes relativamente subtis, conseguem brilhar e reforçar-se mutuamente, partilhando um carisma notável e redobrando a emoção e a tentação das letras. Sem dúvida, um dos duetos mais magnéticos deste ano e, em relação a Gemini Rights como um todo, um enorme e tão aguardado salto na qualidade da produção e composição de Steve Lacy, que finalmente se afirma confiantemente enquanto artista a solo.
Beyoncé – RENAISSANCE
Género: Dance Pop; House
Data de Lançamento: 29/07/2022
Tal como vários ícones da música pop, Beyoncé sabe bem o que é renascer (artisticamente, claro está). Já lá vão 7 álbuns de estúdio ao longo de 19 anos, somando também a discografia das Destiny´s Child e EVERYTHING IS LOVE, o único lançamento do seu side project com JAY-Z, The Carters. A sua evolução ao longo deste percurso é uma evidência, mas a sua mais recente transição será talvez o seu salto mais extremo. Depois do magnífico Lemonade, com traições, reflexões e confissões a pintarem o olhar mais íntimo que lhe vimos até hoje, Beyoncé convida-nos para a ballroom com RENAISSANCE.
Num período pós-pandemia que já viu tantos artistas a mergulharem em sonoridades originárias das décadas de 80 e 90 (Dua Lipa, Jessie Ware ou The Weeknd são casos de sucesso nesta matéria), Beyoncé também se rende a esta revitalização de algumas das mais relevantes tendências musicais dessa época. Talvez seja o desejo generalizado de um retorno às partilhas coletivas de alegria a falar mais alto, mas RENAISSANCE consegue comemorar os pioneiros destes estilos, ao mesmo tempo que promove os mantras de inclusão e segurança que os respetivos movimentos tentam passar desde a sua génese. Até é interessante ver que, em pouco mais de um mês, dois dos nomes mais sonantes da indústria musical se juntaram a este ressurgimento do dance pop. A par de Beyoncé, Drake também escolheu esta trajetória com Honestly, Nevermind, por muito que o produto final seja comicamente fraco quando equiparado com este sétimo longa-duração de Beyoncé.
Os 16 temas de RENAISSANCE estão sequenciados de uma forma praticamente ininterrupta, quase como se os seus 62 minutos de música estivessem já prontos para conquistar a discoteca mais próxima. Somos presenteados com um autêntico rodízio de influências musicais, que fazem deste álbum o mais estilisticamente variado da discografia de Beyoncé. Para além de ser vasta, a lista de colaboradores partilha igualmente este sentido de diversidade, com nomes tão distintos como Honey Dijon, Tricky Stewart, Grace Jones ou Skrillex a darem o seu contributo para reforçar a produção eclética de RENAISSANCE.
Já seria de esperar um foco considerável nos sons da música house, como BREAK MY SOUL fez antecipar. O single conta com samples de Big Freedia (uma das principais embaixadoras do bounce) e sintetizadores fortemente alusivos ao famoso remix de Show Me Love de Robin S. a marcarem o passo. Neste campo, destacam-se ainda temas como AMERICA HAS A PROBLEM ou PURE/HONEY. São também muitas as pinceladas de disco espalhadas por RENAISSANCE, com os grooves de CUFF IT e VIRGO’S GROOVE a pedirem uma multidão com quem se possa partilhar a energia. Com ENERGY e HEATED, os toques mais contemporâneos de afrobeats também não são deixados de fora, mas talvez a maior surpresa de todo o álbum seja ver Beyoncé a chocar com o hyperpop de A.G. Cook em ALL UP IN YOUR MIND. Um crossover inesperado que volta (e bem) a salientar o papel colossal que a PC Music tem tido nas formas que a música pop tem vindo a assumir.
RENAISSANCE é serotonina pura e dura pela mão de uma das artistas mais célebres do século. Se Lemonade funcionou como um testamento mais pessoal, focado e denso, o seu sucessor não segue (nem pretende seguir) as mesmas pegadas. Tenta, isso sim, mostrar Beyoncé numa versão bem mais liberta e arrojada. É uma admirável celebração de tantas vertentes musicais, nunca perdendo a noção que, neste retorno às pistas de dança, o que se anseia é ouvir bop atrás de bop e sentir, acima de tudo, a diversão a fluir.