Os Destaques de Janeiro e Fevereiro 2024
Os novos lançamentos de Kali Uchis, The Last Dinner Party, Brittany Howard e Mk.gee são os lançamentos em análise pelo nosso crítico musical e editor-chefe, Rui Cunha.
Kali Uchis – ORQUÍDEAS
Género: Latin Pop
Data de Lançamento: 12/01/2024
Editora: Geffen

Nas mãos de Kali Uchis, a música e a língua nunca foram nem serão alvo de quaisquer fronteiras. Desde que se estreou nos trabalhos de estúdio com Isolation em 2018 (talvez o seu melhor até à data), tem sabido moldar confortavelmente a cultura latino-americana e criar, pelo caminho, um universo totalmente esculpido à sua imagem, onde o feminino, o luxuoso e o desejo de empoderamento em todas as suas formas e feitios impregna todos os ângulos dos seus cenários vibrantes. É algo, aliás, que não se perde na alternância entre os seus projetos cantados em inglês e em espanhol (e, por sequência, na tradução entre estes dois idiomas). Apresenta, porventura, uma oportunidade única de navegar confortavelmente entre a sua herança norte-americana e latina, redefini-la ao próprio gosto e encontrar elementos diferenciadores nestas duas dimensões, por vezes, tão convergentes. ORQUÍDEAS, intitulado em homenagem à flor nacional da Colômbia, é, claro está, um símbolo desta última e, mais do que nunca, um fortíssimo argumento na imaginação da sua arte como algo complementar e tremendamente rico em variedade. Editado menos de um ano após Red Moon In Venus, mas concebido como um digno sucessor de Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) ∞, Uchis apresenta com exuberância a pluralidade dentro da música latina, integrando os sons do novo e do antigo e fazendo-os convergir numa amostra completa e incontida da sua identidade.
As 14 faixas que dão forma a ORQUÍDEAS, mais do que ambiciosas ou de emoções e energia altivas, alterna harmoniosamente entre as suas diversas referências sónicas e cria assim um alinhamento errático e executado com grande mestria. Fica também claro, logo à partida, a possibilidade de este ser uma excelente porta de entrada para introduzir qualquer um à multiplicidade estilística da cultura latina, muitas vezes subvalorizada, infelizmente, quando debatida dentro e fora da indústria ocidental. Servem de exemplo as declamações teatrais de Te Mata (um ótimo caso de estudo de como o bolero pode ganhar um toque inequivocamente moderno), naturalmente elevadas pela capacidade de Uchis de ser simultaneamente sedutora e vulnerável, ou os ritmos sumptuosos de Dame Beso // Muévete, culminando num final irresistível, pautado pelas suas influências de merengue. Muñekita, que recruta o rapper dominicano El Alfa e JT (da dupla City Girls), irrompe a cada mudança entre dembow e reggaeton, ao passo que Labios Mordidos e No Hay Ley Part 2 (com a participação de Karol G e Rauw Alejandro, respetivamente) prometem e cumprem uma celebração ardente do melhor que o reggaeton tem para oferecer. É Igual Que Un Ángel, contudo, que mais impressiona no departamento dos duetos, com Uchis e o mexicano Peso Pluma a fazerem da paixão (e de como escapar à sua possivel superficialidade) uma procissão celestial rotundada pelas suas tendências synth pop. Mesmo a abordagem mais moderada de ¿Cómo Así?, Me Pongo Loca e Diosa, tal como a dupla soturna de Young Rich and In Love e Tu Corazón Es Mio…, mantêm a uniformidade onírica e inequivocamente romântica que palpita em cada recanto de ORQUÍDEAS, um álbum que se deleita com o poder de combinar tradição e contemporaneidade para propor uma discussão desprovida de rótulos e limites, sobre aquilo que a música latina e a própria Kali Uchis conseguem ser daqui em diante.
The Last Dinner Party – Prelude to Ecstasy
Género: Glam Rock; Pop Rock
Data de Lançamento: 02/02/2024
Editora: Island Records

Os efeitos colaterais da antecipação na esfera musical conseguem ser algo intimidante para todos os atores envolvidos, capazes de colocar tanto o artista como os fãs entre a espada e a parede. É uma realidade que tem circunscrito o ainda breve trajeto das The Last Dinner Party, tendo tido uma das ascensões mais repentinas dentro do panorama indie (um rótulo tremendamente abrangente, diga-se) desde a explosão de Wet Leg, três anos antes. Ambos os casos são incrivelmente semelhantes em natureza e, até certo ponto, em desfecho. A viralidade dos singles inaugurais provoca contratações praticamente imediatas por parte das grandes editoras. Seguem-se vários espetáculos esgotados de ambos os lados do Atlântico e lugares no alinhamento de alguns dos maiores festivais ocidentais (com uma estreia em Portugal, no caso do quinteto londrino, marcada para a próxima edição do Primavera Sound Porto). Junta-se a tudo isto, claro está, uma onda de reconhecimento que as eleva ao patamar de novo talento geracional e a atribuição praticamente instantânea do termo industry plant – um rótulo cuja aplicação tanto pode ser compreensível como revelar uma certa misoginia internalizada. Mesmo tendo em conta a crescente divisão na opinião pública e mediática, há muito para desvendar sobre a forma como as The Last Dinner Party e o seu revigorante álbum de estreia têm ressoado desde o seu lançamento.
Prelude To Ecstasy tem sido descrito pela própria banda como uma “arqueologia de si mesmas”. A grandiosidade orquestral, a estética renascentista, os embelezamentos poéticos com substância suficiente para ganhar lugar num post do Tumblr ou até mesmo as tendências glam rock e art pop que evocam a mesma sonoridade operática encontrada em qualquer um dos grandes álbuns de Kate Bush ou Florence + The Machine – o produtor do disco, o renomeado James Ford, já trabalhou, aliás, com esta última. Tudo isto é ponderado e aplicado com enorme cuidado a uma experiência teatral de proclamação e subversão feminina, onde a instrumentação opulenta e a crueza das atuações, encabeçadas pela vocalista Abigail Morris, dão lugar a uma surpreendente coleção inaugural de temas e momentos arrebatadores. Ainda que nunca escapem por completo a apresentação algo plastificada da grande maioria das faixas, refrões como os de Caesar on a TV Screen, Burn Alive e The Feminine Urge são puramente incontornáveis, enquanto Beautiful Boy e On Your Side ganham os seus merecidos crescendos e subsequentes explosões derradeiras através da sinceridade cabal que revelam nas suas frechas de intimidade. É neste campo, aliás, que Morris atinge o seu pleno. No caso de Sinner, dá voz à ambivalência da atração e do arrependimento e consegue encapsulá-la com uma intensidade emocional tão melodramática como genuína, mesmo para além do seu ponto de rutura. Contudo, é Nothing Matters, o êxito que as projetou rumo ao estrelato, que funciona como a peça central de Prelude To Ecstasy, um hino fascinante em que todo o ethos das The Last Dinner Party é exaltado ao mais alto nível: um grupo que comanda a atenção de quem as escuta sem nunca ter medo de ser condescendente, e que faz da sua estreia nos discos uma liturgia inebriante e libertadora, carregada pelos prazeres da devoção e as angústias da contemporaneidade, e que demonstra ser, acima de tudo, uma verdadeira extensão de si próprias.
Brittany Howard – What Now
Género: Psychedelic Soul
Data de Lançamento: 09/02/2024
Editora: Island Records

Na sequência do desmembramento dos Alabama Shakes, Brittany Howard manteve-se fiel à sua essência imponente, fazendo da carreira a solo uma oportunidade para reimaginar e evoluir para além das tendências rock mais tradicionalistas, tão associadas à sua banda-mãe. Olhe-se, precisamente, para o seu arrebatador disco de estreia autoproduzido, um poderoso monumento de descoberta pessoal e artística que soa instantaneamente mais ousado, incisivamente político e mais volátil do que qualquer um dos seus esforços anteriores. Equilibra-se a ternura das suas baladas com o extravagante e o desordeiro dos seus momentos mais gritantes, à medida que vai refletindo sobre a sua vida com um domínio total. Cinco anos mais tarde, Howard regressa aos trabalhos de estúdio com uma coleção de temas igualmente expansionistas que entrelaçam maravilhosamente as sonoridades do funk, do rock ou do R&B e analisa-os sob uma lente caleidoscópica.
Com Shawn Everett a assinar desta vez o papel de produtor, What Now transborda dinamismo e diversidade sónica, fluindo com enorme naturalidade nas suas componentes mais maximalistas, que perpetuam os ritmos influenciados pela música house de Prove It To You ou a fascinante Power To Undo (uma de várias ocasiões onde Howard encarna a energia irresistível de Prince), e uma abordagem mais subjugada – o blues de To Be Still e a suavidade melancólica de Samson prosperam neste campo. Uma constante, no entanto, é a presença imponente de Howard, em primeiro lugar e acima de tudo, enquanto vocalista. É, claro está, a força indomável que eleva cada crescendo e o fio condutor das atuações mais imperativas do álbum. Nas passagens mais soltas, mas igualmente calculadas de Every Color In Blue (com as suas guitarras ao estilo de In Rainbows) ou nos grooves eletrizantes que dominam a faixa-título, assiste-se à inegável personalidade de What Now no seu esplendor máximo. A partir de paisagens sonoras massivas e aventureiras, Howard presenteia-nos com temas grandiosos e sentimentos com uma escala à medida, permitindo que cada uma das suas 12 canções se mostrem tão dominantes e fiéis a si próprias quanto o meio as permite.
Mk.gee – Two Star & The Dream Police
Género: Neo-Psychedelia; Alternative R&B
Data de Lançamento: 09/02/2024
Editora: R&R Digital

O salto artístico de Mk.gee era apenas uma questão de tempo. Desde os seus primeiros lançamentos a solo até aos seus contributos colaborativos, a estética de Michael Gordon sempre primou pela complexidade instrumental e um desejo incessante de inovação, dentro dos domínios da possibilidade. É algo que, mesmo por detrás do psicadelismo seguro, misturado com algumas tendências pop e funk, com que começou a dar nas vistas, se tornou numa evidência clarividente. O seu papel, porém, no primeiro longa-duração de Dijon é fulcral para compreender tudo o que se segue, tendo a dupla juntado esforços para escapar à unidimensionalidade que tirou valor aos trabalhos anteriores de cada um. E tal como Absolutely marcou um salto marcante para a carreira de Dijon, Mk.gee alcança um resultado semelhante dois anos depois, esculpindo uma amostra transcendente, metódica e orgulhosamente ousada de exploração musical que mergulha nas entrelinhas da vulnerabilidade com um magnetismo inescapável.
A grande maioria de Two Star & The Dream Police opera como um portefólio melodicamente rico e subversivo de temas deambulantes e fugazes. Englobando o recente trajeto artístico de Gordon e reimaginando as suas tendências DIY, através de uma produção isenta de convencionalismos, os seus 12 temas conseguem balançar um repto à nostalgia e familiaridade com a vontade de expansão sónica. Podem ouvir-se algumas nuances de Arthur Russell em Candy ou até de Phil Collins em Dream Police, ao passo que a paisagem onírica de Breakthespell ou Rylee & I se sente frequentemente informada pelo trabalho de contemporâneos modernos como Jai Paul e Bon Iver. Uma amálgama inegavelmente vasta de referências musicais que, nas mãos de Gordon, alcançam um novo e intemporal sentido de personalidade. Em New Low e Alesis, o alcance vocal e tenacidade de Mk.gee, muitas vezes esmagada por percussões vibrantes, guitarras rompantes e alguns efeitos de pitch-shifting, dão azo a explosões fascinantes de emoção e até imperfeição sob a forma de quebras na voz, cordas dedilhadas e a inseparabilidade do ruído ambiente. O maior feito de Two Star, contudo, chega na forma de Are You Looking Up?, um epítome da sua escrita cativante que aqui ganha contornos triunfantes, deixando a experimentação de Gordon revelar, por baixo de toda a volatilidade do álbum, a sua própria humanidade. É música reconfortante, arrojada e profundamente contagiante que serve de banda sonora à ânsia e ruminação da autodescoberta, num disco de estreia que encontra precisamente a sua magia em ver um talento de longa data dar finalmente frutos.