Jessica Pratt no Vale Perdido: Sabedoria folk para o silêncio da noite

O que define e constitui o tempo? O que separa o presente do passado – se sequer se pode considerar uma separação entre as duas dimensões? Numa vontade incessante de encontrar um meio-termo, a música de Jessica Pratt tem atingido persistentemente o pleno: tanto remete para (e evoca) uma era, como orbita entre todas elas. Nas raízes de um catálogo que nunca deixou de encantar, dominam os tons acústicos e solarengos, tão associados à década de 60. São referências que, sem surpresas, também servem de berço para Here In The Pitch – simultaneamente um ponto alto da sua carreira, um dos principais destaques de 2024 e uma evolução cautelosa do seu cunho artístico. Ao longo das suas nove faixas, incorpora conjuntos instrumentais de maior escala (da percussão e baixo aos sintetizadores e sopros), mais do que em qualquer um dos seus restantes discos. Também se deixa guiar pelo calor da bossa nova e psychedelia, mas sempre ao serviço da peça-chave do seu arsenal: uma voz delicada, capaz de elevar a simplicidade angélica e solitária do seu carisma e das influências periódicas que o informam ao patamar de perdurável. É arte fantasmagórica por natureza e impessoal no sentimento, quase como se Pratt estivesse desligada do mundo exterior, num estado permanente de hipnose e mais livre do que nunca, deslizando através das páginas de uma história comum a todos para retirar daí sabedorias perpétuas. Numerosos são os exemplos de contemporâneos que tentam vestir a mesma pele ou cristalizar este misticismo em forma de folk para a alma, mas raramente o conseguem fazer de maneira tão magistral. E dentro das inúmeras qualidades que se podem apontar a Here In The Pitch, talvez o seu maior feito seja precisamente a capacidade de adequar todo o mistério e intimismo de Pratt a escalas, públicos e ambições maiores, sem nunca menosprezar a sua essência única.

Fotografias da Autoria de Vera Marmelo @ DIREITOS RESERVADOS

O aguardado regresso a Portugal, cinco anos após ter apresentado o antecessor Quiet Signs no Musicbox, seguiu as mesmas pautas. Lotação há muito esgotada, uma antecipação palpável em cada recanto do clube B.Leza e um regresso aos palcos com um simbolismo especial à mistura. Depois de ter cancelado cinco concertos consecutivos da sua atual digressão europeia (devido a problemas com as cordas vocais), “é bom estar de volta a tocar” – assim o afirmou timidamente entre os goles da sua fiel caneca de chá. Foi um dos poucos e breves entreatos num serão dominado, desde o primeiro instante, pelo poder discreto da serenidade.

Antes disso,  o pontapé de saída ficou a cargo da portuguesa Leonor Arnaut, a abrir a cortina que envolve o seu processo criativo para desvendar o seu primeiro conjunto de canções a solo – ainda não editadas, mas a caminhar para uma destemida afirmação em nome próprio da vocalista dos Fumo Ninja. Ao lado de Margarida Campelo, Filipe Louro e João Pereira, vimo-la formar “toda uma amálgama de sons e ideias, deste mundo e de outros”, num registo menos preocupado com as sensibilidades pop da banda que chefia e que, em troca, abre espaço para uma jam session em lume brando de ideias espontâneas e repletas de volatilidade. Tão rapidamente assistimos a um conflito amigável entre cada elemento musical como os vemos unidos em torno dos feitiços harmoniosos de Arnaut – entre o seu estado natural e uma versão sintetizada, algo que nem uma mudança ocasional para o inglês conseguiu afetar. Em jeito de despedida, confessou que “é bom saber que existem programadores em Portugal que não têm medo de arriscar”, agradecendo a aposta de Sérgio Hydalgo em oferecer-lhe esta oportunidade para “fazer qualquer coisa”, sem ainda ter lançado qualquer trabalho a solo até ao momento. Avizinha-se um novo e refrescante capítulo na progressão artística de Leonor Arnaut e, para quem aceitou de braços abertos o convite da equipa do Vale Perdido, ficou a ânsia de ver estes esboços ganharem vida própria num futuro próximo.

Fotografias da Autoria de Vera Marmelo @ DIREITOS RESERVADOS

É quando a norte-americana entra em cena, porventura, que a magia desta ceia de quinta-feira realmente ganha a sua força máxima. Bastaram as notas inaugurais de World On A String para instalar um silêncio mais impactante do que mil palavras e discursos paralelos. O foco era claro e ninguém o quis perturbar: aquela maré humana, a própria artista e até mesmo a sua banda de suporte estavam ao serviço das confissões sentidas de Jessica Pratt. Cada acorde na guitarra aparenta parar o movimento em torno de si mesma, todos à espera de serem consumidos pelo segredo metafísico que tem para revelar, ecoando pela sala como um sonho há muito adormecido e concretizado com uma cautela inexcedível. Quando somente confrontada com a potência intimista das suas letras, temas como The Last Year ou As the World Turns ganham ainda mais ímpeto por este tipo de quietude comunitária, como se a sua vida estivesse dependente do que escolhe partilhar com a plateia. Certo é que Pratt nem sempre a enfrenta sem qualquer auxílio instrumental, tal como não pretende elevar a sua presença a níveis proféticos. Get Your Head Out, Better Hate e Life Is, por exemplo, fazem da percussão o mote ideal para intercalar baladas mais introspetivas com uma amostra mais lúcida e descontraída do seu repertório, deixando sempre margem de manobra para que cada sussurro de Pratt continue a erguer-se por entre todo e qualquer adereço. Já Here My Love e a tão desejada Back, Baby vão mantendo esse alento, mas voltando a centrar-se nos eixos centrais da sua música.

Seja qual for o espaço ou a escala, a sua mestria permanece discreta e suprema, para o agrado extasiante dos fãs que tem diante de si, mais do que suficientes para fazer esquecer alguma timidez natural quando se tenta dirigir ao público. É um pertinente relembrar de que espetáculos desta magnitude nem sempre necessitam de testamentos altivos para dominar por completo as emoções de quem assiste: na simplicidade, por vezes, encontra-se a chave para a alma e há muito que Jessica Pratt encarna esse mesmo mantra na perfeição. À medida que On Your Love Again e Fare Thee Well sinalizam o curso final da noite, o relógio volta a mover-se, à mercê de uma artista que encontra sempre uma forma de conduzir a realidade ao seu próprio ritmo.

Após o concerto esgotado de Jessica Pratt e Leonor Arnaut no B.Leza (integrado na programação da mais recente edição do Vale Perdido), a artista californiana retoma a sua presente digressão europeia, que ainda passará por países como Espanha, Alemanha e França nas próximas semanas. Segue toda a cobertura de outros concertos e festivais em território nacional através do website e das redes sociais da CONTRABANDA.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *