The Avalanches no Hard Club: música e memórias para uma eternidade incerta
Depois de uma frenética atuação em Lisboa no dia anterior, os célebres australianos transformaram a sala 1 do Hard Club numa autêntica pista de dança. We Will Always Love You, o seu terceiro álbum, foi um autêntico guião do concerto, num evento que contou com o selo do Gig Club.
A reinvenção é sempre um processo delicado. Mudar o rumo, deixar para trás a pressão, encontrar uma segunda vida quando já se é um veterano no meio artístico, não é para todos. No entanto, e independentemente das adversidades, os The Avalanches tentaram e conseguiram tal feito. Seria natural, e o mais fácil, que o grupo se deixasse assombrar pelo legado de Since I Left You (2000). No entanto, o seu sucessor Wildflower veio provar que, 16 anos após o seu álbum de estreia, há muito mais lume na fogueira criativa de Robbie Chater e Tony Di Blasi – e quanto mais se afastam de outros tempos de glória, melhor se nota esta evolução na sua música. We Will Always Love You, o terceiro e mais recente álbum do grupo, só vem dar continuidade a este processo metamórfico. Nunca abandonando o amor pelo sampling que os catapultou para o estrelato, dão-lhe uma atmosfera menos colorida e uma filosofia subtilmente otimista, assente na imortalidade da arte (e não só).
Foi necessário aguardar quase dois anos, para ver como Robbie e Tony iriam transpor toda esta narrativa para um cenário ao vivo. Para sorte dos portugueses, a tour de apresentação de We Will Always Love You marcou presença nas duas maiores cidades do país. No caso do Porto, foi mesmo uma estreia absoluta no longo percurso dos The Avalanches. No dia 29 de junho, a sala 1 do Hard Club encheu para receber de braços abertos o (agora) duo australiano. A boa disposição foi mesmo dominante durante um set que durou cerca de uma hora. Na verdade, este ambiente já se fazia prever ainda antes das portas abrirem, tal como, a diversidade do público. Encontramos, algumas camadas mais jovens, e outras que já devem estar bem familiarizadas com o portfólio do grupo, mas a admiração pela sua música foi, sem dúvida alguma, o que nos uniu.
Quem presenciou a passagem do duo pelo NOS Alive (2017) na digressão de Wildflower encontrou aqui um cenário bem diferente. Já não se fazem acompanhar por vocalistas ou instrumentos adicionais. Não tentam reinterpretar aquilo que já resulta tão bem no seu estado natural, nem apostam em cruzar as bases de eletrónica com um espírito mais orgânico de uma live band. Desta vez, Robbie e Tony procuram estabelecer uma constante partilha de alegria com a plateia e colocam o foco, essencialmente, na magia da sua música. É uma jogada segura, que acaba por ser uma expansão da experiência de ouvir We Will Always Love You no conforto das nossas casas, enquanto se navegava pelas marés contingentes de uma realidade pandémica.
Apoiando-se numa panóplia de equipamentos e num impactante jogo de luzes, vimos o duo a saltar e dançar efusivamente, fazendo gala do seu inegável carisma. Ambos comandaram aquilo que se pode considerar um DJ set mais caprichado, com sintetizadores, um laptop e um theremin (que foi levantado duas vezes por Tony Di Blasi, em sinal de vitória) a acompanhar. Também se notou que o mixing e os filtros pareceram ser aplicados no local. Confesso que não esperava tanta presença em palco no meio de uma conjuntura tão simplista, mas sou o primeiro a admitir que, quando apresentadas neste registo, as composições dos The Avalanches funcionam na perfeição.
Desde bem cedo, a sua energia inundou o Hard Club por inteiro. Mal The Divine Chord (com a participação dos MGMT e de Johnny Marr) deu início à festa, já o público respondia com agrado aos ritmos palpitantes dos australianos. Foi apenas um dos muitos temas saídos de We Will Always Love You, que dominou a pista de dança que ambos instalaram. O uso de God Only Knows dos The Beach Boys para introduzir Interstellar Love (com a voz de Leon Bridges a enternecer-nos a mente) e a interpolação de The Carpenters e de Queen entre We Go On arrancaram, da mesma forma, algumas das reações mais eletrizantes da noite.
Tal como seria de esperar, a setlist não deixou de fora nenhuma das distintas obras da discografia dos The Avalanches. No caso de Wildflower, escutou-se Subways, The Wozard of Iz ou If I Was a Folkstar (com esta última a surgir por entre Overcome, saída do seu terceiro longa-duração). E, claro está, este não seria um concerto dos The Avalanches se não houvesse tempo para celebrar o esplendor do magnífico Since I Left You. Ainda que gostássemos de pular ao som de mais do que só cinco faixas deste icónico disco, fizeram-se ouvir Electricity (uma versão abreviada, diga-se), A Different Feeling ou Live at Dominoes, todas elas imediatamente reconhecíveis e que levaram qualquer um ao rubro.
O concerto dos The Avalanches culminou com três dos seus maiores êxitos, cada um deles representativo das três eras do grupo. Running Red Lights foi acolhida com uma calma mais aparente, mas, logo de seguida, Because I’m Me e Since I Left You voltaram a fazer com que os ânimos disparassem pela última vez. Já com Robbie e Tony de saída do palco, Hammond Song das The Roches, que serviu de base para a title track de We Will Always Love You, ecoa nas colunas. Junto às grades, vão de encontro à legião de fãs, apertam mãos e, num dos instantes mais simbólicos do espetáculo, assinam uma bandeira alusiva à capa de Wildflower.
Tal como o próprio álbum que os trouxe ao Porto, que tenta imortalizar a música, a civilização humana e as memórias que lhes ficam associadas, vêm igualmente deixar recordações que não serão certamente esquecidas tão cedo. Na verdade, o set que apresentaram no Hard Club não só celebrou a intemporalidade do grupo australiano (e dos samples que tão frequentemente incorporam nos temas), mas também os momentos que partilhamos ao seu lado, e que perdurarão no universo enquanto tal for possível. Qualquer que seja o futuro que se segue, mais ou menos próspero, festivo ou sombrio, o mundo arranjará sempre uma forma de amar os The Avalanches, do mesmo modo que o duo soube eternizar a música em seu redor.
Após este concerto dos The Avalanches no Hard Club, Robbie Chater e Tony Di Blasi resumiram a sua digressão europeia, que ainda conta com atuações em Espanha, em França e na Bélgica.
Texto: Rui Cunha
Fotografias: André Henriques
Revisão: Ana Duarte