Os Destaques de Maio 2022
Ethel Cain – Preacher’s Daughter
Género: Slowcore; Americana
Data de Lançamento: 12/05/2022
Quem é Ethel Cain? Será só um alter-ego, uma personagem ou então um reflexo das próprias memórias de Hayden Andhedönia? Entre o seu passado de coro e uma infância atribulada no estado da Flórida, marcada pelas normas conservadoras e opressivas da igreja batista, Ethel Cain encontrou na música uma paixão, um escape criativo. Depois de Inbred ter sido um dos EP’s mais intrigantes do ano passado, surge finalmente o seu álbum de estreia, Preacher’s Daughter, inteiramente baseado num argumento escrito pela própria Ethel Cain enquanto frequentava um curso de cinema (que entretanto abandonou).
Preacher’s Daughter pode bem ser a primeira amostra de uma trilogia saída da mente visionária de Ethel Cain, mas faz um excelente trabalho a introduzir-nos no seu mundo e na sua trágica narrativa, repleta de traumas geracionais, abusos e, sobretudo, religião. Aliás, se há algo em que Preacher’s Daughter vai mais além é no uso constante de iconografia, que não só atribui outra dimensão à história do álbum como recompensa quem a escolhe dissecar de forma cuidada. A própria atmosfera do álbum consegue, em muitas ocasiões, acompanhar a dureza dos seus temas. Temas como Strangers ganham muitos pontos com as progressões absolutamente catárticas que executam, enquanto Family Tree e, principalmente, Ptolomea rapidamente instalam o horror e provocam arrepios como poucos outros momentos ao longo das 13 faixas que compõem Preacher’s Daughter. É pena, no entanto, que as duas faixas instrumentais que se sucedem (August Underground e Televangelism) retirem um pouco de ímpeto à segunda metade do disco.
Felizmente, este primeiro disco de Ethel Cain não hesita em navegar noutras direções, ainda que sejam poucas as ocasiões em que haja uma mudança sónica significativa. Enquanto Gibson Girl, um dos singles de Preacher’s Daughter, traz algum erotismo gótico no meio da história devastadora que Ethel Cain reproduz, algo como American Teenager, um tema mais triunfantemente pop, é quase uma anomalia num álbum que tem claramente uma base de slowcore bem vincada.
Apesar de frequentemente unidimensional, o grandioso álbum de estreia de Ethel Cain brilha de tanta ambição e atormenta com a sua narrativa trágica. Concebido como a primeira parte de uma futura trilogia, Preacher’s Daughter pode ser um trabalho denso para ouvir de forma mais casual, mas oferece, sem dúvida, uma experiência rica em estéticas e emoções fortes.
Kendrick Lamar – Mr. Morale & The Big Steppers
Género: Conscious Hip-Hop
Data de Lançamento: 13/05/2022
Kendrick Lamar Duckworth. Muitos vêm nele um génio artístico entre meros mortais, o rapper de uma geração. Porém, o responsável por marcos como good kid, m.A.A.d city e To Pimp a Butterfly não é um salvador, como o próprio reconhece em Savior (com a presença de Baby Keem e Sam Dew), tema saído do seu quinto e último lançamento sob a tutela da TDE. Não surpreende até que, ao fim de quatro álbuns, Kendrick vire desta vez o foco para si mesmo. Muito mudou no panorama musical, político e social nos 1855 dias que passaram desde DAMN., mas Mr. Morale & The Big Steppers prefere espelhar um lado mais despido de Kendrick Lamar, que efetivamente já tinha sido dissecado em parte com DAMN., mas que assume agora outra escala.
Mr. Morale & The Big Steppers é, essencialmente, uma extensa sessão de terapia, um álbum propositadamente sensível, contraditório e complexo até, mas, acima de tudo, um retrato honesto do homem por detrás do microfone. Ao longo das suas 18 faixas, Kendrick salta de tema em tema, de trauma em trauma, em busca de uma luz ao fundo do túnel. Logo a abrir, United in Grief introduz eximiamente uma resistência em procurar uma solução para os traumas explorados ao longo do primeiro disco deste double album, enquanto, por outro lado, Worldwide Steppers retira a cortina por detrás da vida algo secretiva do rapper, que aqui explora o nascimento dos seus dois filhos (que aparecem na capa de Mr. Morale), a sua infidelidade ou até cancel culture.
No centro das excelentes Father Time e We Cry Together, está a toxicidade das relações, sejam elas parentais ou amorosas. A atriz Taylor Paige, que aparece nesta última faixa, terá talvez a melhor contribuição do álbum, protagonizando a outra metade de uma discussão crescentemente desconfortável. N95 e Die Hard são o mais próximo que Mr. Morale tem de faixas mais mainstream-friendly, mas, mesmo assim, a sua aura refletiva consegue sobressair.
Convém também referir que Kendrick é frequentemente guiado pela sua namorada Whitney Alford e pelo escritor Eckhart Tolle em busca da sua própria superação. Mais controversa será a aparição de Kodak Black como motivador, que aparece mais predominantemente em Silent Hill, já no segundo disco de Mr. Morale & The Big Steppers. Igualmente polémica é Auntie Diaries, onde Kendrick se confronta com a sua dificuldade inicial em aceitar o processo de transição da sua tia e da comunidade trans em geral. A sua execução provoca um certo desconforto com os frequentes recursos a deadnaming e ao f-slur, mas não há como negar que as intenções de Kendrick são as melhores. O último momento de génio de Mr. Morale vem sob a forma de Mother I Sober, com uma contribuição magnífica de Beth Gibbons dos lendários Portishead no refrão da faixa. Para além de abordar os abusos sexuais que a sua mãe sofreu, é aqui que Kendrick entrelaça todas as temáticas do álbum, enfrenta por completo os seus traumas e começa finalmente a sarar as suas feridas.
Se com good kid, m.A.A.d city ou To Pimp a Butterfly retratou as injustiças e a dureza do mundo em seu redor, Mr. Morale & The Big Steppers mostra um Kendrick Lamar a confrontar-se consigo mesmo. É um álbum de superação, o seu testamento mais pessoal até hoje, relembrando sempre que, por detrás de uma das figuras artísticas mais importantes dos últimos anos, está um ser humano perfeitamente imperfeito que combate os seus próprios demónios.
The Smile – A Light for Attracting Attention
Género: Art Rock
Data de Lançamento: 13/05/2022
Já lá vão 6 anos desde o último álbum dos Radiohead. O magnetizante A Moon Shaped Pool pode já ser, para alguns, parte de um passado distante, mas não tem havido, desde então, falta de side projects e trabalhos a solo de vários dos seus membros. Para além dos projetos a solo de Thom Yorke, nomeadamente a banda sonora do remake de Suspiria e ANIMA (o seu terceiro álbum em nome próprio), e da rápida ascensão de Jonny Greenwood como um dos compositores mais respeitados na sétima arte, surgiu The Smile, um trio de luxo que conta com a presença destes dois membros fundamentais de uma banda que dispensa apresentações e de Tom Skinner, nada mais nada menos do que o baterista dos Sons of Kemet. Este novo grupo, inicialmente criado como um escape criativo aos confinamentos provocados pela pandemia, tem em A Light for Attracting Attention um encantador trabalho de estreia. Porém, o elefante na sala permanece: serão os The Smile só mais uma peça do puzzle neste vasto universo de uma das bandas mais celebradas dos últimos 30 anos ou algo merecedor do seu próprio mérito?
A verdade é que A Light for Attracting Attention consegue encontrar neste dilema um meio-ponto. É inevitável encontrar pontos de ligação entre muitos temas deste novo disco e uma parte considerável do catálogo dos Radiohead bem como do seu vocalista, com algumas ligações a serem mais diretas do que outras. Open the Floodgates e Skrting on the Surface, que encerra o álbum, não serão nenhuma novidade para os fãs mais atentos, mas surgem aqui muito mais polidas, como um claro melhoramento em relação aos primeiros drafts. Também não ajuda que a produção de A Light for Attracting Attention esteja a cargo de Nigel Godrich, que já há muito fornece os seus talentos nesta área aos discos da banda britânica, mas que aqui também repesca a estética mais eletrónica de ANIMA, com grande sucesso. Por outro lado, faixas como Pana-Vision, Speech Bubbles ou Free in the Knowledge podiam encaixar perfeitamente em A Moon Shaped Pool, muito devido à beleza e plenitude da instrumentação. A última destas duas é um dos destaques indiscutíveis do álbum e até acaba por partilhar a potência, tanto ao nível da mensagem como da sua emoção, com temas passados neste registo.
Onde A Light for Attracting Attention mais se diferencia é na variedade das ideias que executa e no refrescante contributo de Tom Skinner, que se diferencia do de Philip Selway (baterista dos Radiohead). Aliás, a animosidade da sua bateria é uma delícia em temas como A Hairdryer ou Thin Thing. Esta energia até se manifesta de outras formas em You Will Never Work in Television Again ou We Don’t Know What Tomorrow Brings, que capturam na perfeição a rebeldia de outros tempos da longa carreira de Thom Yorke. Não esquecer também o groove inescapável de canções como The Smoke e, principalmente, The Opposite, que surge depois de um falso arranque com The Same.
São mais as semelhanças do que as diferenças entre os The Smile e os Radiohead, mas o que A Light for Attracting Attention prova é que não são de todo a mesma imagem. É um álbum de estreia de um trio de luxo que sabe captar os seus passados artísticos e florescer de formas inesperadas, libertando igualmente a pressão natural da categorização da banda-mãe de Thom Yorke e Jonny Greenwood. Aliás, de todos os side projects associados ao histórico quinteto britânico, este é, possivelmente, o mais encantador e promissor deles todos.
Ravyn Lenae – HYPNOS
Género: Alternative R&B
Data de Lançamento: 20/05/2022
Se os últimos anos servem de alguma indicação, é seguro afirmar que o universo do R&B atravessa uma fase interessante. Na verdade, com a sua crescente ascensão a chegar a patamares de popularidade nunca antes vistos, são frequentes os lançamentos que pouco fazem para se propagar na memória de quem os escolhe ouvir. Felizmente, o reverso da medalha é muito mais satisfatório – e são muitos os artistas a levarem o estilo em direções mais arriscadas e memoráveis. Desde bem cedo, Ravyn Lenae tem sido apontada como uma das grandes promessas desta nova era do R&B, com os seus três EP’s (principalmente CRUSH, um dos EP’s mais cativantes de 2018) a criarem burburinho suficiente para um eventual álbum de estreia. Foi preciso esperar mais 4 anos para poder ouvir HYPNOS por inteiro, mas o disco faz mais do que o suficiente para surpreender.
Com uma vasta lista de colaboradores que facilmente deixa qualquer apreciador de R&B a salivar, HYPNOS é essencialmente a metamorfose de Ravyn Lenae enquanto artista. Alguma da extravagância de CRUSH é descartada por uma estética mais discreta, mas igualmente cativante. Faz lembrar, em certas instâncias, várias divas do R&B que marcaram os anos 90 (Brandy, Aaliyah, Janet Jackson), mas também não esconde a vontade de embarcar em experimentalismos mais contemporâneos.
A voz hipnotizante de Ravyn Lenae também não perde força com esta ligeira mudança. Tome-se a elegância de Wish, faixa que encerra o álbum, ou o single Skin Tight como exemplo, com as letras e a produção e voz de Steve Lacy a serem tão sedutoras como as melodias de Ravyn Lenae. Por falar em duetos, Where I’m From com Mereba e Mercury com Fousheé podem ser um pouco mais minimalistas numa primeira análise, mas a enorme química entre todas estas artistas brilha mais alto.
HYPNOS também abre espaço para alguma versatilidade e, na maioria desses casos, sucede sem hesitações. Xtasy, com o reconhecível selo de produção de KAYTRANADA, vê Ravyn Lenae a aventurar pelo house que qualquer discoteca receberia em euforia, enquanto M.I.A. provoca um admirável choque entre o afrobeats de Sango e um lado mais arrojado de Lenae. Ainda menos ortodoxa é Venom, com Monte Booker (que já tem um longo historial de colaborações com Lenae) a combinar R&B e glitch pop, acabando por oferecer algo completamente distinto de tudo o resto que HYPNOS demonstra.
O que Ravyn Lenae apresenta com o seu aguardado álbum de estreia é uma visão extremamente refrescante do que o R&B pode ser e encarnar. HYPNOS é um dos trabalhos mais criativos e encantadores neste registo dos últimos tempos. Não está repleto de radicalismos e, afinal, não tem de ser totalmente inovador para fascinar. Nesse campo, já Ravyn Lenae revela uma enorme mestria e confiança, estando bem lançada para se tornar um dos nomes mais sonantes de uma nova vanguarda do R&B.