Os Destaques de Agosto e Setembro 2022

Após a habitual temporada dos festivais de verão, a rubrica dos Destaques do Mês está de volta – e, desta vez, a dobrar. Os novos lançamentos de Danger Mouse & Black Thought, de JID, de Julia Jacklin e dos Jockstrap são os principais destaques dos meses de agosto e setembro para o nosso melómano e crítico musical, Rui Cunha.

Danger Mouse & Black Thought – Cheat Codes

Género: Conscious Hip-Hop; Boom Bap
Data de Lançamento: 12/08/2022

Reza o ditado: duas mentes pensam melhor do que uma. Grande parte do ethos criativo de Brian Burton – melhor conhecido como Danger Mouse – anda à volta deste estado de espírito, que anda de braço dado com uma versatilidade absolutamente ímpar. Quer coabite no mundo igualmente multifacetado e colaborativo de Gorillaz em Demon Days, decida envergar pelo rock de Parquet Courts e The Black Keys ou pelo soul de Gnarls Barkley e Michael Kiwanuka, Burton arranja sempre uma forma de se encaixar em qualquer universo sónico e despertar uma vida nova dentro de cada um deles. Contudo, Danger Mouse não seria o nome de peso que é hoje sem os sons do hip-hop. Já desde The Mouse and the Mask em 2005, álbum colaborativo entre o produtor e o enigmático MF DOOM, que não víamos esta sua paixão a tomar um lugar de protagonismo na sua carreira. Foi preciso esperar 17 anos para que tal acontecesse, mas Cheat Codes não só consegue fazer retornar Danger Mouse ao estilo que o popularizou como dar a Black Thought um grandioso álbum a solo, afastado do invejável catálogo dos The Roots.

Juntos, os norte-americanos formam um par de sonho, irresistível para qualquer purista do hip-hop. De um lado, temos Danger Mouse com uma palete de boom bap recheada de samples, com um toque simultaneamente vintage e moderno. Do outro, Black Thought exibe a mestria que já nos tem vindo a acostumar desde a década de 90 e o bravado de quem não tem nada a provar – não fosse Tariq Trotter um dos MCs mais notáveis e tecnicamente fascinantes da sua época. É a receita perfeita para um veterano do seu calibre brilhar e o resultado está à vista de todos.

Cheat Codes consegue atingir uma escala cinemática (que se faz logo sentir com a faixa de abertura, Sometimes) e apontar em várias direções com a sua instrumentação. Com a faixa-título e No Gold Teeth, por exemplo, vemos Tariq a levar uma injeção de energia dos beats de Burton que atiçam o fervor das suas rimas. É seguro dizer que, quer o mood das faixas seja calmo – como em Violas and Lupitas e Identical Deaths – ou enfático, Black Thought nunca baixa a guarda. Mesmo quando a dupla se adapta às sonoridades mais sujas de Wu-Tang Clan ou de Griselda (com Raekwon e Conway the Machine a representarem cada um dos respetivos coletivos em The Darkest Part e Saltwater), são sempre os convidados que têm que mostrar o seu valor. Esse é um dos muitos campos em que Cheat Codes joga o ás de espadas.

Strangers recruta A$AP Rocky e Run the Jewels para um potente posse cut, onde a fasquia é constantemente elevada com cada verso. Os golpes de magia estendem-se a Because, onde até mesmo Russ se afirma juntamente de Joey Bada$$ e Tariq. Não esquecendo igualmente a fenomenal Aquamarine, Cheat Codes volta a triunfar com Belize, faixa que, juntamente com o seu peso simbólico, volta a reunir – talvez pela última vez – Danger Mouse e o falecido MF DOOM.

Após quase duas décadas de especulação, Danger Mouse e Black Thought conjugam as suas forças para trazer a classe e a virtuosidade da velha guarda para o presente. Ao mesmo tempo que celebra o legado de ambos, presta também homenagem à própria cultura do hip-hop, fazendo de Cheat Codes um trabalho que eterniza o esplendor da dupla e agrada a qualquer geração de entusiastas.

JID – The Forever Story

Género: Conscious Hip-Hop
Data de Lançamento: 26/08/2022

I got the shit you could play for your mama/I got the shit you could play for the hoes”. É desta forma que JID remata o início do seu mais recente álbum, The Forever Story. Desde que assinou pela Dreamville que anda em busca de um balanço perfeito entre capacidade técnica e acessibilidade sónica. No espaço de meia década, fixou-se numa posição interessante em relação a muitos dos seus companheiros de vanguarda nas major labels. Estando em várias ocasiões a roçar os holofotes da fama (ser o principal protégé de J. Cole também ajuda), escolheu o seu instinto. Em vez de saturar o seu estilo multifacetado até à exaustão após DiCaprio 2 em 2018, escolheu o silêncio. Tudo em prol da sua própria trajetória e de criar a sequela que o seu disco de estreia, The Never Story, merece. Quem espera sempre alcança e o tempo veio mesmo dar razão a JID.

Quem procura mais bangers contagiantes ao estilo de Dance Now e Surround Sound (com uma excelente reimaginação do beat de Ms. Fat Booty de Mos Def e versos igualmente admiráveis de 21 Savage e Baby Tate), irá certamente ficar satisfeito com o arranque fulgurante do disco. A chapada inicial do dinamismo e dos enigmas de palavras de JID vêm sob a forma de Raydar, com os 808s rompantes, flows imprevisíveis e mudanças repentinas de beats – hábito que se tem tornado algo estéril e previsível na sua música – a marcarem o passo para a restante hora de material. Can’t Punk Me, por outro lado, não poupa em vivacidade, com JID e os EARTHGANG a terem um novo pico de química, por cima da produção vertiginosa de JD Beck e KAYTRANADA.

A segunda metade do álbum, no entanto, adota as sonoridades de neo-soul e jazz rap para proporcionar algumas das faixas mais ricas em narrativa de toda a discografia de JID. Aliás, The Forever Story serve, entre muitos aspetos, para expor em maior detalhe a sua origin story, prestando o devido tributo às personagens principais desta sua trajetória. Bruddanem e Sistanem, por exemplo, celebram o espírito de irmandade, a influência da sua família e o reconectar de relações perdidas de forma impactante. Kody Blu 31, uma dedicatória a um amigo falecido, consegue ir ainda mais longe em termos emocionais, com JID a assumir um registo inteiramente melódico que surpreende qualquer um pela sua qualidade. Entre os muitos destaques de The Forever Story, convém também mencionar a produção à-la old Kanye em Money, que reconta os sonhos inocentes de fama e sucesso na sua infância, e o tema de encerramento Lauder Too (se descontarmos 2007, que foi omitida do álbum pelos típicos problemas contratuais associados aos samples), onde JID questiona o valor e o sucesso de tudo o que já alcançou.

Em 2017, prendeu os olhares do mundo com The Never Story. Cinco anos depois, The Forever Story vê JID a sofrer uma maturação estilística, capitalizando o seu potencial com um dos álbuns de hip-hop mais cativantes e ambiciosos do ano. Quer se foque no seu talento técnico ou escolha dar palco às suas vulnerabilidades, o rapper de Atlanta afirma-se finalmente como um dos nomes mais respeitáveis de toda uma geração.

Julia Jacklin – PRE PLEASURE

Género: Indie Rock; Singer-Songwriter
Data de Lançamento: 26/08/2022

Até que ponto poderá a música ser um espelho pessoal do artista por detrás dela? Para a australiana Julia Jacklin, estas duas realidades – a artista e o seu reflexo – têm tanto de inseparáveis como de complementares. É através das suas próprias ansiedades que procura encontrar resoluções nas suas próprias composições. No seu mundo com mais perguntas do que respostas, mais incertezas do que certezas, e após um segundo álbum onde se deixou guiar pela dor, Jacklin caminha agora em direção à aceitação.

PRE PLEASURE leva o seu tempo a perdurar na memória, mas a escrita impactante de Jacklin acaba sempre por falar mais alto – não é por acaso que este é o principal fio condutor da sua música. Tem um toque intrinsecamente pessoal e autêntico, tornando cada letra numa página de um diário que é demasiado pessoal para não nos sentirmos constrangidos, mas suficientemente tocante para provocar empatia nos intrusos. É um trunfo ainda recentemente usado no belíssimo Home Video de Lucy Dacus – não fosse o facto das faixas Moviegoer e Brando partilharem semelhanças temáticas e este ponto de comparação não saltava logo à vista.

Contrastando com a tempestade de mágoa descrita em Crushing, este seu terceiro disco é notoriamente menos fúnebre, ainda que as angústias sejam continuamente omnipresentes. Em termos instrumentais, temas mais minimalistas como Too In Love To Die, onde a voz da australiana quase que contracena com o seu próprio eco, ocupam um papel minoritário num disco onde os sons de guitarras e cordas majestosas são predominantes.

No que toca ao conteúdo lírico, é surpreendente observar a forma como Jacklin explora o amor em vertentes tão dispersas ao longo de PRE PLEASURE. Não fosse precisamente o amor tudo o que procura, como proclama em Love, Try Not To Let Go, e que acaba por unir as 10 faixas do álbum. Tanto detalha a sua relação conturbada com a religião em Lydia Wears A Cross e os efeitos que estes valores provocaram na sua exploração sexual em Ignore Tenderness, como muda o tema para a sua busca permanente pela auto-aceitação na magnífica I Was Neon. Tanto aponta o foco para a proximidade emocional que tem com a sua mãe em Less Of A Stranger, como se empenha em ajudar a libertar os obstáculos de alguém próximo em Be Careful With Yourself. Qualquer que seja a forma de o expressar ou de o obter, Jacklin dá um passo em frente, alcança a ternura e, ao captar estes sentimentos com uma humanidade palpável, relembra-nos que, às vezes, o verdadeiro consolo está em saber amar.

Jockstrap – I Love You Jennifer B

Género: Glitch Pop; Art Pop
Data de Lançamento: 09/09/2022

Da Guildhall School of Music & Drama para a vanguarda da música britânica. Desde que Georgia Ellery e Taylor Skye assumiram a faceta dos Jockstrap e começaram a partilhar as suas criações, o objetivo do duo tornou-se claro: fazer música desprotegida de estereótipos, de limites. Ainda foi há dois anos que lançaram Wicked City (o seu primeiro EP) e já se percebia a miscelânea de influências que incorporam na sua música: um pouco de glitch pop, uma dose de música eletrónica, uma pitada de hip-hop até. A única característica relativamente constante no ADN dos Jockstrap é mesmo a sua espontaneidade e sede de inovação. O primeiro longa-duração da dupla reflete e amplia tudo isto e muito mais, naquele que é possivelmente o álbum de estreia mais promissor desde que os Black Country, New Road – onde Ellery curiosamente assume o papel de violista – se afirmaram com For the First Time em 2021.

Ao longo de quase 45 minutos, I Love You Jennifer B é uma valente amostra dos pontos fortes das duas metades dos Jockstrap, com a produção camaleónica e audaz de Taylor Skye e os prodigiosos dotes vocais e instrumentais de Georgia Ellery a estarem na máxima força. Igualmente admirável é o modo como conseguem saltar de baladas minimalistas para temas experimentais e eletrizantes, com todos estas variantes a ficarem logo assentes na fulgurante primeira metade do álbum.

Neon, por exemplo, arranca I Love You Jennifer B em lume brando até culminar numa entusiasmante explosão sónica. E se Jennifer B combina um instrumental distorcido com a extravagância lírica de Ellery, Greatest Hits volta a trazer à luz estas peculiaridades, agora rodeadas por sons apaziguadores que não ficam muito distantes do trip hop. Concrete Over Water e Glasgow são, sem grandes surpresas, tão impactantes sob o formato de singles como no contexto deste disco de estreia dos Jockstrap. Enquanto a primeira aposta tudo num crescendo guiado por uma performance mais intimista de Ellery, que culmina em mais um clímax dominado pela euforia, a segunda adapta a mesma beleza instrumental para um registo mais acústico.

Os temas mais folk de I Love You Jennifer B podem nem sempre brilhar, mas assumem um papel relevante, ao fugir um pouco das restantes bases dominantes do álbum. Se a faceta mais bizarra da produção de Skye ainda surge de forma mais diminuta em Angst e Lancaster Court, What’s It All About é o mais próximo que os Jockstrap chegaram de compor uma balada acessível e simplista. A eletrónica mais dance-heavy dos Jockstrap também acaba por estar presente nas profundezas do disco, nomeadamente em Debra e especialmente em 50/50. Esta última vai mesmo na via de um banger irresistível que tem tanto de cómico como de agradavelmente repetitivo.

Com I Love You Jennifer B, Georgia Ellery e Taylor Skye desconstroem a música pop, enchem-na de imaginação e uma dose de surrealismo e fazem dela algo unicamente deles. Nasce com inspirações tradicionais que rapidamente florescem em direção ao bizarro e à quebra do convencional, principalmente ao nível da sua produção. Se um álbum de estreia como este carrega tanta ambição, então imagine-se o que se segue para os Jockstrap.

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