MEO Kalorama 2023 (3º Dia): Um fecho de festival celebrado na pista de dança

O encerramento da segunda edição do festival lisboeta contou com casa cheia para receber de novo os canadianos Arcade Fire em Portugal, num terceiro e última dia de programação que ficou ainda marcado pelo regresso há muito antecipado de Siouxsie a solo nacional e pelas atuações assertivas dos britânicos Foals e dos escoceses Young Fathers.

Siouxsie, a “rainha da noite” que instalou o seu baile gótico ao fim da tarde

18 horas no Palco MEO. Pode não parecer, mas na sua primeira digressão no espaço de uma década (e na primeira vez que se cruza com Portugal em praticamente 28 anos), é Siouxsie Sioux, a eterna bruxa da noite, que fica aos comandos do último fim de tarde do festival. Até num horário impróprio, diga-se, não lhe faltaram os seus discípulos, vestidos a rigor para a ocasião e prontos para receber de volta uma das vozes mais incontornáveis das décadas de 70 e 80. A partir do momento em que Siouxsie entra em cena, encapuçada e juntamente com a sua banda de suporte, instala-se no recinto uma espécie de máquina do tempo improvisada. Quase como por magia, o Parque da Bela Vista transforma-se num baile gótico datado, mas não menos impactante, chefiado pela figura que o convocou.

Fotografias da Autoria de Ana Rocha Nené @ DIREITOS RESERVADOS

Ao início, o salão de festas não pareceu convencer, do corredor central que tinha ao seu dispor – nas sábias palavras de Siouxsie, para além de estar vazio, não servia efetivamente “para nada” – à lamentável qualidade do som (uma constante, aliás, nos três dias de concertos). Os hinos do passado, contudo, parecem não ter perdido a sua glória. Descartando alguns êxitos notáveis (a ausência de Hong Kong Garden e Israel, por exemplo, foi mais do que sentida) e dando também lugar a um par de temas editados a solo, não faltaram os clássicos de sempre, desde os muitos temas fortes de Juju, talvez o seu disco mais intemporal ao lado dos The Banshees, às incontornáveis Happy House e Cities in Dust, sem esquecer o icónico cover de Dear Prudence dos The Beatles. Sente-se o passar dos anos na presença de Siouxsie, claro está, mas a sua voz – quando o momento exige – permanece tão assertiva como um relâmpago. Num retorno há muito desejado pelos fãs que cresceram a fazer dela uma figura de referência, nem a fugacidade do concerto pareceu fazer moça. A oportunidade de ver Siouxsie ao vivo é, de qualquer das formas, indubitavelmente rara. O melhor é aproveitar o momento enquanto ainda dura.

A despedida sazonal ao som dos Foals

Para muitos, o MEO Kalorama é sinónimo de fim do verão, o último evento da estação que ninguém deseja que acabe. O sentimento é igualmente partilhado pelos Foals, um dos dois principais cabeças-de-cartaz deste terceiro e último dia de música. A agenda ditou que Lisboa fosse a última paragem de uma digressão atarefada, mas que em nada torna o momento menos desejado. Na missão de envolver o público numa partida sentida dos dias soalheiros e das noites longas, também ajuda que o rock dos britânicos, para além de incrivelmente acessível, quer-se dançável e prazeroso. Deixe-se a volatilidade ou o experimentalismo para outros: guiados por Yannis Philippakis e companhia, estamos todos ali para um “bom tempo”, ao lado de um grupo que já é praticamente da casa.

Fotografias da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

Para o melhor e para o pior, cada concerto do Foals é agradavelmente estável. Quer optem pelos temas que dão forma ao novíssimo Life is Yours ou mergulhem nos clássicos de outrora (destacando-se as incontornáveis Mountain at My Gates, My Number e Inhaler), o entusiasmo foi uma constante e a energia partilhada de perto entre a banda e a onda humana que tinham à sua frente. Convém não esquecer, de igual forma, que a extasiante Spanish Sahara continua a ser, após todos estes anos, a melhor ode dos Foals aos crescendos em lume brando (com uma libertação final que se deseja sempre explosiva). Por outro lado, o trio de faixas apresentadas do já longínquo Antidotes permanece como uma receita infalível, não fosse Two Steps, Twice destinada, inclusive, a encerrar as hostes num novo pico de frenetismo. Enquanto a banda se vai desdobrando em agradecimentos, também o público português vai fazendo as pazes com o avançar do tempo, com a música celebrativa dos Foals a ficar como um marco desta despedida inevitável.

O triunfo glorioso (e questionável) dos Arcade Fire

O que acontece quando uma das bandas mais icónicas das últimas duas décadas atravessa talvez o seu período mais tumultuoso? Tumultuoso, aliás, será uma palavra relativamente leve para descrever o turbilhão de acontecimentos que condenaram os Arcade Fire ao tribunal da controvérsia. Pinte-se o cenário. Num ano de 2022 que coincidiu com o lançamento de WE – um sexto álbum que, à semelhança do seu antecessor, viverá permanentemente na sombra de feitos passados – e da saída amigável do multi-instrumentalista Will Butler, o seu irmão e vocalista do grupo, Win Butler, viu-se envolvido em cinco acusações de conduta sexual imprópria, numa altura em que se preparavam para dar início a uma digressão internacional que passou inclusive pelo Campo Pequeno, no passado mês de setembro. Não restam dúvidas que os Arcade Fire do presente não são os mesmos que se deram a conhecer com um Funeral ou um The Suburbs, referências máximas do seu invejável catálogo. Tendo tudo isto em mente, será possível seguir em frente ou sequer embarcar numa celebração que se propõe ser feita na primeira pessoa do plural, quando todos “nós” não estamos efetivamente no mesmo barco?

Fotografias da Autoria de David Oliveira e Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

A verdade é que, numa vida feita de improbabilidades, o mais recente concerto dos Arcade Fire em território português foi certamente uma delas. Não se conhecesse todo o contexto envolvente da fase atual da carreira dos canadianos e quase que parecia fazer crer que os dias de glória ainda não os tinham deixado, dado o pico de forma com que se apresentaram e a comunhão que se sentiu do início ao fim do alinhamento. Ainda aquecíamos todos os motores ao som de Creature Comfort e já se sentia esta sinergia em plena força, com Butler, no meio do plateia, a chamar para a festa a maré humana que ali se amontoava. Neste campo, não há ritmos tão vibrantes como os de Reflektor, agora com Régine Chassagne no papel de protagonista, debaixo da bola de cristal e assoberbada por um hipnotizante jogo de luzes. Neste regresso estranhamente triunfante dos Arcade Fire, no entanto, não há banda sonora mais apropriada do que a teatralidade dos seus hinos mais cintilantes. A homenagem a David Bowie antes de The Suburbs, os coros afinados que prolongaram Rebellion (Lies) bem para além do esperado ou a mera imponência de Sprawl II (Mountains Beyond Mountains) ou Neighborhood #1 (Tunnels). Difícil foi não ficar abalado com a absoluta tour de force que os Arcade Fire conseguiram evocar, quando menos se esperava que ainda fossem capazes de apresentar atuações deste nível (e, claro está, para quem decidiu separar a arte da sua conjuntura). Enquanto Wake Up ditava um adeus altivo aos heróis mais provavelmente improváveis da noite, a realidade volta a assentar. A mesma banda de antigamente, ainda que mais em espírito do que ao nível criativo ou ético, voltou brevemente à vida e o público lisboeta foi sua testemunha.

A tempestade eletrizante (e azarada) dos Young Fathers

Ao longo de pouco mais de uma década, os escoceses Young Fathers têm-se tornado mestres na arte da união, em todas as suas formas e feitios. Fale-se do enorme aglomerado de estilos musicais que dominam (uma refrescante mistura de hip-hop, eletrónica, soul e gospel, capaz de escapar a qualquer rotulagem) ou da clara mensagem política que propagam (sempre a favor das abordagens progressistas, da imigração ou da multirracialidade), são todos sinais do poder da conexão artística e humana que dá vida à sua música. Nos recantos do quarto e mais recente longa-duração, Heavy Heavy, encontramos, como já é habitual, a angústia da realidade atual, com alvos bem definidos, e formas de tentar ultrapassar essa maré de negatividade. Acima de tudo, e mesmo nos seus instantes mais radiantes, não existe Young Fathers sem espontaneidade e urgência.

Fotografias da Autoria de Sebas Ferreira @ DIREITOS RESERVADOS

Com o papel de encerrar definitivamente o Palco Samsung, o grupo composto por “G” Hastings, Alloysious Massaquoi e Kayus Bankole (acompanhados em palco por um outro trio de instrumentistas) convidou-nos a fazer destes últimos momentos de festival uma oportunidade para descarregar todo e qualquer tipo de emoções, ao som das eletrizantes Geronimo, Rain or Shine ou I Saw. O showcase heterogéneo dos Young Fathers contou, ainda assim, com um falso arranque, devido a vários problemas técnicos que afetaram o equipamento. A certa altura, até Hastings veio interromper a atuação para pedir desculpa pelo sucedido, numa tentativa incessante de não tornar o seu frenetismo estilístico num caos incontrolável. A irritação era justificada, mas, os incidentes, apesar de notórios, em nada afetaram o que, de resto, foi uma amostra impactante de tudo o que torna a sua música singular. Não há como resistir a uma In My View ou Get Up, feitas de batalhas dinâmicas entre vozes, teclados, bateria e guitarras, sem nunca anularem o impacto de cada elemento. E, num culminar de brutalidade, Toy pôs um assertivo ponto final num espetáculo inicialmente conturbado. A certa altura, via-se Bankole a mergulhar na massa humana, Hastings a destruir violentamente a bateria e, sem grandes avisos, o furacão dos escoceses seguia o seu caminho, tendo transformado o azar inicial numa adrenalina infindável.

Já é garantido que o MEO Kalorama regressará em 2024, entre os dias 29 e 31 de agosto, ainda que a organização admita que o evento possa mudar de local. Na sua segunda edição, o festival recebeu cerca de 105 mil pessoas ao longo dos três dias de programação. Aguarda-se agora o anúncio do cartaz para 2024 e o melhoramento de várias componentes adjacentes aos concertos propriamente ditos, desde a poeira e qualidade de som dos palcos à quantidade de casas de banho presentes no recinto. Segue toda a cobertura da mais recente edição do festival (e de vários eventos futuros) através do nosso website e nas redes sociais da CONTRABANDA.

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