3º Dia EDP Vilar de Mouros 2022 – As nuances do Rock ao vivo e em cores primárias
No terceiro e último dia desta edição, a pequena freguesia de Vilar de Mouros situada no município de Caminha, transformou-se numa cave de morcegos. Por momentos parecia que estivéssemos a ver a cidade de cabeça para baixo. A atmosfera era indubitavelmente diferente se comparada com os outros dias do festival. Vestimentas monocromáticas, sobretudo pretas, eyeliners e cortes de cabelo extravagantes, de repente eram o novo normal. A culpa era de Iggy Pop e Bauhaus, dois grandes nomes da cena Punk e Gótica, respetivamente, que se intersectavam neste dia do mesmo jeito que ditos géneros musicais se intersectam em rebeldia, atitude e transgressão.
The Mirandas
Quando bandas novas têm por trás de si um grande letreiro com o seu nome, a intenção é claramente diferente. Os cinco elementos chegaram em palco com um estilo arrojado reminiscente aos anos 70, que por momentos tornava as comparações deste festival ao Woodstock uma realidade.Esta vontade de que fossem vistos e ouvidos ao de longe, era reforçada por frases como “Não se esqueçam, somos os The Mirandas!”, ou até mesmo “Não se esqueçam de partilhar nas redes”. Para uma geração que partilha tudo e mais alguma coisa, atender a esse pedido não era inusitado, e motivos para fazê-lo não faltavam.
Era a primeira vez que esta banda farense tocava no Norte, mas Inês Miranda parecia muito confortável neste grande palco ancião da Península ibérica. Esticava a sua voz como se estivesse sozinha num quarto, e saltava frequentemente do piano à guitarra. Tocaram músicas do seu primeiro e mais recente EP All Those Years, canções que sobretudo falam de amor, e carregam uma convicção que foi fácil de traduzir ao vivo.
Quase perto do final da sua performance, dedicaram a todas as mulheres uma música intitulada Queens With No Crowns, e não ironicamente se converteu na apresentação mais poderosa do set, que pouco tempo depois o encerrariam com uma energia que se denotou crescente durante todo o concerto.
The Legendary Tigerman
No instante em que os Legendary Tigerman pisaram em palco, a esta altura já nos tínhamos aquecido com o Blues e Rock dançante dos Mirandas. Ao serem uma banda com a extensão destes gêneros musicais, se esperava uma energia ascendente, mas recebemos maioritariamente um concerto denotado pela frustração de Paulo Furtado.
Abriram o set com The Saddest Girl on Earth, e tocavam intensamente virados uns aos outros. Seguiram com Naked Blues enquanto eram projetadas imagens de mulheres nuas por todos ecrãs. A este ponto todas as projeções pareciam mais interessantes que o concerto, especialmente em The Saddest Thing to Say, quando apareceu Lisa Kekaula em vídeo, vocalista da banda americana de rock ‘n’ soul, The Bellrays – emprestou a sua voz durante cerca de dois minutos, e deu alguma alma a este alinhamento que muito ocasionalmente se alinhava com o público.
Em These Boots Are Made For Walkin’ as atenções ficaram viradas para outra mulher, Catarina Henriques, que além de descarregar toda a sua energia na bateria, ainda tinha alguma para vocalizar esta mística canção.
O concerto foi dedicado ao DJ Afonso Macedo, falecido horas antes, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Talvez por isso tenha dado uma performance tão Carpe Diem. “Quem é que já esteve apaixonado?… Fodasse, ninguém?… Se nunca conheceram o amor, ao menos “pinem” incessantemente” – disse indignado, repescando esse assunto no mínimo duas vezes.
Quando ia ao encontro do público em 21st Century Rock ‘n’ Roll para terminar em grande estilo, deparou-se com um cenário que não o permitia ter a linguagem corporal livre de estrela de rock pela qual almejava. O microfone não se estendia para lá das duas primeiras filas – frustrado, atirou uma guitarra ao chão, puxou a câmara de um fotógrafo, e tentava vezes sem conta terminar o show no tom alto que pretendia.
Em suma, deram um concerto que talvez tenha sido prejudicado pela pressão de ter um grande performer a atuar logo a seguir, ou pelo turbilhão de emoções que carregavam por dentro.
Iggy Pop
Se tudo está calmo, é porque Iggy não está presente. No princípio do concerto quando os membros da banda se colocaram em seus lugares, e Sarah Lipstate começou a performar um solo de guitarra de forma nada tradicional, deixamos de procurar por ele. Artista sob o nome Noveller, tocava uma intro de sua autoria, chamada Rune – canção que tem servido de abertura desde o início dessa tournée. Era hipnotizante, junto das imagens dos Stooges que apareciam a preto e branco na projeção. Se o pessoal não andasse por aí a caçar setlists antes dos shows, não saberíamos minimamente o que nos esperava.
Eis que então chega em palco a tão esperada figura emblemática, a pontapear e a esmurrar o ar. Deu o primeiro empurrão do concerto com Five Foot One, e nos desviou totalmente a atenção dessa canção, enquanto tirávamos esse tempo para apreciar estar em sua presença. Não são muitos os artistas que estão na casa dos 70 e carregam toda essa aura eletrizante. Despiu-se logo do casaco que trazia, e deixou-nos com a sua imagem de marca, de tronco nu.
O resto do concerto manteve essa linhagem, oscilando entre canções dos Stooges e o seu trabalho solo, quase a roçar os 50/50. Até para os mais leigos, eram poucas as músicas irreconhecíveis. I Wanna Be Your Dog, Lust For Life, The Passenger, Gimme Danger e Search And Destroy, são alguns dos clássicos que abriram um alçapão no meio do público.
Iggy mostrou querer sobretudo divertir-se, por isso poupou-nos de alguma melancolia presente em seus últimos trabalhos. Em Free apenas disse “I wanna be free”, e pelo contexto do concerto, parecia uma afirmação extremamente real. Sentimo-nos livres, e para um concerto desta magnitude, não há descrição melhor.
Bauhaus
Se pensarmos que a música gótica é uma progressão natural do pós-punk, esse alinhamento não poderia fazer mais sentido. Receber Bauhaus após Iggy Pop foi um movimento necessário para assentar a poeira que o padrinho do Punk deixou no ar. Enquanto os esperávamos, o tempo se montava para congelar esse tão aguardado momento, que convinha não terminar, pois com ele vinha o fim desta enigmática edição. Não é por acaso que ao longo destes três dias, esse fosse literalmente o mais frio.
Quem neste dia tivesse entrado ao recinto com alguma dúvida da relevância da banda, saiu profundamente arrependido de não ter explorado o seu catálogo antes. A grandeza do seu som distorcido e “sujo”, deixou o público totalmente imerso logo na primeira atuação, Rosegarden Funeral of Sores, que a cada riff nos deslizava a sete palmos de terra.
Peter Murphy era dramático e bastante expressivo. Se mostrava intimidante nas margens do palco, e ora levantava uma coroa, ora se colocava no fundo do palco, e com o tripé de microfone sobre os ombros, ilustrava uma crucificação. “In nomine patri et filii et spiriti sanctum” ecoava repetidas vezes no final de Stigmata Martyr.
Com uma primeira parte de concerto intensa, contando com músicas mais introspetivas como Spy in the Cab e A God in an Alcove, foram nas mais dançantes e populares She’s In Parties e Dark Entries que o público mostrou para o que veio. Dançavam de forma coreografada, com as mãos no ar e curvadas em garra. Em termos de atmosfera, junto da inigualável Bela Lugosi’s Dead, são as que efetivamente nos deixaram mais longe de um funeral.
Em um extenso encore, Peter Murphy voltou mais brilhante, envolvido num casaco com “diamantes” para celebrar algumas das suas grandes influências. Começou com uma versão sombria de Sister Midnight de Iggy Pop, passou por Telegram Sam dos T.Rex, e terminou com a já conhecida Ziggy Stardust, de um homem que dispensa apresentações.
Para uma banda que nos remete tanto à obscuridade, soube pouco não ter ficado até ao nascer do sol.