10 anos de “The Money Store”: a obra-prima surrealista dos Death Grips
Shock value. Para uns, o poder de conseguir enervar. Para outros, o potencial de surpreender, de jogar a carta que ninguém espera, de inverter qualquer tipo de expectativas e previsões, emoções e sentimentos. Não é novidade que a arte também pode provocar, causar aversão em quem a consome, estranheza até. Ouvir pela primeira vez The Money Store, o álbum de estreia dos Death Grips, parece ter o mesmo efeito. A produção ríspida, as agressivas atuações de MC Ride (que, por vezes, até ficam sobrepostas ao ponto de se tornarem ainda mais crípticas), as raízes de hip-hop e punk a misturarem-se com elementos mais associados a veias industriais e eletrónicas. É a arte do incontrolável, da destruição. Ao início, é difícil de engolir e fácil de ser nauseante. Até é algo interessante pensar que esta primeira experiência com The Money Store, ou com qualquer outro trabalho do trio composto pelo agora emblemático vocalista (e pintor nas horas vagas) Stefan Burnett, pelo baterista Zach Hill (Hella, Team Sleep) e por Andy Morin, é possivelmente a mais marcante. É o primeiro contacto com a sua sonoridade caótica e labiríntica, quase como se entrássemos na máquina de lavar-roupa do vídeo de Hustle Bones, um dos muitos destaques de The Money Store, sobrando só duas opções: ir em linha com a magia negra do trio ou ser consumido pela sua anarquia.
Aliás, este lado anárquico dos Death Grips sempre fez parte da sua imagem de marca. Difíceis de descrever e igualmente difíceis de etiquetar, são e sempre foram uma anti-banda, anti-culto da personalidade, anti-sistema, anti-formalidades e anti-normas. Uma coisa é certa: os Death Grips são também fruto da explosão do mundo digital que se dava em 2012. Nem é preciso ir muito mais longe do que I’ve Seen Footage, que pinta uma visão distópica da internet. Com blogs e websites como o Tumblr, o Reddit e o 4Chan a imporem-se como veículos de divulgação à parte dos meios mais mainstream, com a meme culture a crescer a olhos vistos, e num mundo em que estar online já fazia parte do status quo, conseguiram cultivar uma legião de fãs sem que o trio se desse a uma exposição permanente. Já Exmilitary, a mixtape de estreia dos Death Grips lançada em 2011, encantava muitos e chocava outros tantos com a sua brutalidade e ainda pouco se sabia sobre eles. Mistérios à parte, o facto é que Exmilitary já era de si algo muito pouco tradicionalista no que toca ao hip-hop, não se assemelhando a mais nada nesse meio. E, numa época em que coletivos igualmente polarizadores como os Odd Future conseguiam contratos com major labels, não admira que a Epic Records tenha achado a sonoridade visceral e animalesca dos Death Grips igualmente magnetizante e irresistível.
Em muitos aspetos, The Money Store consegue conciliar a ânsia de uma banda que quer chocar e ser vanguardista e a responsabilidade de terem acabado de assinar um contrato com uma editora de renome. Não é, de todo, um álbum acessível às massas (um sellout moment, por assim dizer), mas sim uma forma de afinar as bases já presentes em Exmilitary. Continua a ter a crueza dessa mixtape, mas acrescenta agora uma maior dinâmica e densidade e, especialmente, um instinto mais pop. Aliás, The Money Store consegue ser memorável onde menos se espera, com MC Ride a retirar constantemente refrões contagiantes da sua cartola, como em Get Got, Hustle Bones ou Hacker.
Por outro lado, a produção de Zach Hill e Andy Morin é agressiva, corrompida e distorcida, mas simultaneamente energética e até catártica, um aspeto que também se reflete nos múltiplos vídeos da banda, bem como nos seus concertos. Ninguém explica melhor esta dualidade de emoções como Tyler, The Creator na sua análise ao disco (lançada na edição inaugural da sua antiga revista Golf), onde chega a comparar Death Grips a metanfetamina – e não está errado. Algo como The Fever (Aye Aye), Lost Boys ou The Cage, apesar de ser nauseante ao início, carrega uma intensidade que é difícil de negar, mas também de escapar.
Outra componente fascinante de The Money Store passa pela originalidade dos seus samples, um traço tão distintivo na discografia dos Death Grips que, por esta altura, já tinham criado o seu próprio sampler para uso público, o RETROGRADE, com 109 loops infinitos de gravações da banda ao vivo. Exmilitary já tinha sabido tirar partido desta técnica, incorporando entrevistas de Charles Manson e músicas de Link Wray, David Bowie ou Pink Floyd de formas inesperadas, resultados que são tudo menos digeríveis para quem está habituado a um hip-hop mais convencional. Com o estatuto de banda independente posto de parte, entra em jogo a parte mais burocrática do sampling. Porém, a seleção feita para The Money Store consegue ser ainda mais bizarra. System Blower, por exemplo, utiliza uma field recording do Vancouver Skytrain em andamento como crescendo, enquanto uma gravação dos gritos de guerra das irmãs Venus e Serena Williams no torneio de Wimbledon é usada como o principal drop da faixa. Já para não falar do uso recorrente de uma obscura compilação de composições recolhidas de telemóveis no deserto do Sahara (Music from Saharan Cellphones, Vol. 1 & 2) em 4 das 13 faixas de The Money Store, ou ainda de uma secção de Manic Depression de Jimi Hendrix em Punk Weight, distorcida ao ponto de estar completamente irreconhecível.
Mas, se calhar, talvez o maior feito de The Money Store não seja só esta visão grotesca e violenta do mundo, até porque a própria banda sempre deixou as suas letras para livre interpretação. Nunca se assumiram como um grupo politicamente motivado (apesar de também se considerarem como progressistas) e até mesmo a capa de The Money Store foca-se numa androginia, livre das convenções de género, tal como a banda quer que a sua música esteja livre de qualquer interpretação fixa. Abriram também as portas para uma maior experimentação no mundo do hip-hop e, neste momento, não é fácil de imaginar um mundo em que a influência dos Death Grips não seja sentida de alguma forma. Muito daquilo que os Death Grips representavam em 2012 ainda se aplica à realidade de 2022, e o mundo digital, que desde então só tem ganho mais poder e possibilidades, é, tal como a arte dos Death Grips, surrealista e incontrolável. As únicas pessoas capazes de prever o próximo passo dos Death Grips são os próprios Death Grips, daí que o contrato com a Epic Records não tenha durado muito. Entre tours canceladas, concertos a serem apelidados de arte performativa ou a peculiar capa de No Love Deep Web, um segundo álbum lançado em outubro de 2012 no BitTorrent, sem o consentimento da Epic Records, e com uma fotografia do pénis ereto de Zach Hill no luxuoso Chateau Marmont em Los Angeles, os Death Grips sabem chocar como ninguém. E sempre que os Death Grips estiverem online, o difícil será manter-se desconectado.